sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Natal

sou um fracasso para o natal, eu confesso! como mário de andrade, eu também tenho horror a grandes ocasiões e prefiro as quartas-feiras. o máximo do espírito do natal que consegui, foi rir do menino lembrando do dia que descobriu que papai noel não existia. ele, lá pelos seus 7 anos, havia pedido um boneco' max steel', caríssimo, mas ganhou mesmo foi um saquinho com dinossauros, que eu, incompetente, não retirei nem o preço: $1,99.  ele, teve ali, a certeza para um desconfiança que já existia, essa "história de bom velhinho era uma grande palhaçada, quem comprava os presentes era mesmo a mãe da gente". ontem, inconformado porque não haveria jantar especial, ele resolveu preparar o menu: anéis de cebola empanada. desde que viu essa receita, num desses vloggers de culinária, que ele queria fazer. era chegada a hora. enfim, uma ocasião especial. e não é que ficou bom? a massinha que sobrou do empanado virou panqueca que ele guarneceu com pedacinhos de bacon. eu, envergonhada, resolvi fazer um suco de laranja com acerola para completar. teve até sobremesa, um geladinho de chocolate que ele comprou na vizinha por 70 centavos. foi a nossa ceia. meu irmão colocou pilha na história dos brinquedos nos contando da vez que gastou um salário mínimo comprando uma carreta de madeira, enorme, para o filho, que não deu a mínima. o menino gostou mesmo foi de uma tartaruga ninja, comprada por centavos no camelô, em belo horizonte, e dormiu abraçado com ela durante muito tempo. sem coragem para sair de casa, fui dormir embalada pelo som da folia de reis que, na igreja, cantava para o presépio. minha camisola velhinha, ganhada de segunda mão, me abraçou num carinho gostoso e o sono só não foi melhor, porque a frida, com saudades da vida loka dos tempos que vivia na rua, nos deu 'um perdido' e foi atrás de restos de alguma ceia mais promissora que a nossa. acordei às três e meia da manhã com o som das patinhas dela no portão, me pedindo para abrir. agora, a danadinha vai dormir o dia inteiro, aposto!

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Era raiva não...

mamãe era muito parecida com a mãe do conto "sem enfeite nenhum", de adélia prado. fazia esforço pra sair a rua. é que ela não sabia fingir e não era todo mundo que queria encontrar, então preferia ficar no seu cantinho. no máximo, chegava na porta de casa, ia a missa. muitas vezes, quando eu estava junto com ela, atravessamos a rua em passos apressados para não encontrar com algum chato que estava do outro lado. mamãe era assim, nervosa, sem paciência. foi amaciando à medida que os filhos foram crescendo, as responsabilidades e os problemas diminuindo. mamãe vivia com pouco, não gostava de ostentação. dois ou três vestidinhos estampados, sempre do mesmo feitio, sem mangas e com golas. dindinha maria era quem costurava. reciclava tudo. o vestido velho, já puído, ganhava um elástico e virava anágua, depois a anágua virava pano de tirar poeira, até não restar mais nada. mania de quem viveu por muito tempo abaixo da linha da pobreza. mamãe não abria mão era da tinta para o cabelo. a pela enrugada, a boca ficando murcha, mas o cabelo pretinho. era a vaidade dela. nunca colocou uma calça comprida. os vestidinhos eram sua marca registrada. os vestidinhos e o sapato moleca. apesar de não ler as letras, lia o mundo, e inteligente que só, abstraia: "aquele ali tem espírito de águia", me disse certa vez, se referindo a um vizinho, rapaz jovem, mas muito empreendedor. falou assim se referindo ao livro "a águia e a galinha", de rubens alves, que um dia li pra ela. eu gostava de ler pra ela. choramos juntas quando li o começo de "só as mães são felizes" da lucinha araújo e da regina echevarria. o livro começa justamente com os momentos finais do cazuza. ela também chorou quando li "poema esquisito" de adélia prado. não conheceu o pai, teve uma história difícil com a mãe e quando eu li os versos finais: "ôôôô pai, ôôôô mãe, dentro de mim eles respondem tenazes e duros, porque o zelo do espírito é sem meiguices, ôôôôi fia." ela não aguentou e caiu no choro. Acho que ela nunca ouviu um "ôôôôi fia", pois se casou ainda adolescente, aos 16 anos. talvez, por isso o choro. nem teve tempo de ser filha. virou logo esposa e mãe. pouco antes dela morrer, quando a visitei no hospital, ela nem abriu os olhos e só falou com sua voz grave: "é, acho que desta vez eu não aprumo mais não." e não aprumou. mamãe era muito brava. como a mãe do conto a "terceira margem do rio" de guimarães rosa, ela era "quem regia, e que ralhava no diário com a gente". ela era assim, "sem enfeite nenhum". nunca passou um batom, não usava brinco, mas adorava suas roupas perfumadas. todos os sabonetes que ganhava iam para as gavetas da cômoda, além dos saquinhos com folhas secas do patchouli que ela tinha na horta. até outro dia eu guardava o que ela fez pra mim, mas sumiu no meio de tantas mudanças. o tempo foi abrandando mamãe, ela foi ficando mais tolerante, administrando melhor os conflitos, mais paciente com as diferenças dos filhos. quando ela morreu, seu rosto sereno me convenceu, que assim como a mãe de "sem enfeite nenhum", o que ela tinha, "era raiva não". era marca de dor".

sábado, 19 de dezembro de 2015

Travessia

essa semana reli o conto "sequência" do livro "primeiras estórias" de guimarães rosa. em tempos de travessia é sempre bom (re)ler o velho guima. o conto narra as aventuras de uma vaquinha desgarrada que resolve voltar a sua fazenda de origem. determinada em seu intento, só parava mesmo para beber água. não hesitava nem nas encruzilhadas. e olhem que encruzilhada é lugar de decisão. esperta, fingia pastar ou se alonjava quando avistava algum cavaleiro. não parava para comer,  ia arrancando os capins do barranco, sem diminuir a sua marcha. até que no meio do caminho, um dos filhos de séo rigério resolveu seguir a vaquinha.como ela trazia em seu couro marca de grande fazendeiro, talvez o moço almejasse alguma recompensa. o moço atou o laço a garupa e pôs-se atrás da vaquinha. perdeu-a de vista várias vezes. atravessou rio, atravessou serra e nada de laçar a danada.o moço se cansou, pensou em se arrepender, sem saber para onde aquela vaquinha o levava. teimoso e obstinado, não desistiu. a vaquinha também não. e apesar do atropelo chegaram juntos ao destino. no belo livro "céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica", alfredo bosi entrega a chave do conto: "quem elegeu a busca não pode recusar a travessia." 'tendeu'?

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Caminhada


um ano e meio morando em baldim e já aprendi algumas coisas. graças ao meu irmão, que tem fascínio por pássaros, aprendi a identificar alguns: sabiá, canário, tiriziu, pardal, rolinha e até o pica-pau que de vez em quando dá o ar da graça no pé de manga. durante a caminhada também já consigo identificar algumas árvores do trajeto. depois de acompanhar duas florações, já sei onde estão os ipês amarelos e os ipês rosa. além, é claro, dos pés de cagueiteira, de gabiroba e de jamelão. caminho na última rua da cidade, uma rua de cascalho de onde é possível apreciar uma das mais belas vistas da cidade. algumas casas estão localizadas em lugares estratégicos de onde se avista, além da serra de baldim, o nascer e o pôr do sol. de um lado as casas, do outro, o cerrado desmatado e transformado em pasto. as casinhas simples, sem acabamento, sempre chamam a atenção com os jardins à porta e as hortas: os pés de quiabo,a rama de batata doce, pés de mamão, de couve, mostarda, cebolinha... quando o sol desponta eu já estou no meio do caminho, passando em frente a casa, onde todos os dias, um pai peleja acendendo o fogão a lenha para fazer o café dos filhos. já conheço até os cachorros. na ida, as vacas e os bois que preguiçosamente ainda estão deitados no pasto, já começavam a se levantar quando estou voltando. o morador solitário fez uma varandinha que agora está enfeitada com samambaias choronas plantadas em latas de doce. e por falar em doce, o cheiro que se espalha no ar avisa que hoje é dia de bananinha cremosa na fábrica


na casa seguinte uma árvore de natal feita com algumas fitas amarradas em um galho seco, que com certeza, foi apanhado no mato em frente. a mesma casa onde mora um cachorro branco parecido com o scooby, que pelo tom avermelhado de poeira em seu pelo, parece que nunca tomou um banho. talvez eu esteja sendo injusta com a dona, coitada. às vezes, você termina o banho e eles vão se secar esfregando justamente na terra. é de chorar. sempre encontro com um ou outro conhecido, que devido a assiduidade com que agora me vê, pergunta se estou passando uns dias ou se estou de férias. eu, com preguiça de contar a verdadeira história, que é uma moradia temporária, que vim escrever a tese, confirmo: sim, estou de "férias-prêmio", seis meses. já no asfalto, a ambulância passa com a "médica da família" indo atender seus pacientes. em sentido contrário, vem o ônibus escolar com as crianças da zona rural. esses daí ficaram de recuperação, pois a essa altura, os alunos já não vão mais à escola. chego no trevo, na encruzilhada. seguindo em frente o caminho vai dar em belo horizonte, se virar à direita, sete lagoas. baldim fica aqui, nesse entre-lugar. na volta o sol já vai alto. o dia já está acendido, como diria minha sobrinha. o pai que pelejava com o fogão a lenha, já coou o café e pelo cheiro é como aquele que mamãe preparava. a primeira água com o café mais forte e sem açúcar era o dela, a segunda ia para a garrafa dos adultos e a terceira, sim, a terceira, um cafezinho ralo e muito doce era o das crianças; o "café da lata", chamado assim porque era armazenado numa lata de óleo reciclada, transformada em bule. a essa hora as pessoas já estão caçando um jeito a dar na vida e eu, implorando aos céus, aos santos, aos espíritos e aos orixás que me ajudem na empreitada das correções da tese para entregá-la dentro do prazo e começar 2016 uma mulher parida. na volta passo na padaria. o dono e eu somos quase parentes. ele é tio-avô do menino, filho da bisa e carrega a responsabilidade de fazer pães e biscoitos tão bons como os da mãe. dessa vez não esqueci o dinheiro. se esquecer também não tem problema, sou filha da dona dulce e do séo zezinho, irmã do zezé do caminhão. com um currículo desses tenho créditos, muitos créditos

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Chove



Chove. Aquela chuva constante, de engrossar rio, fazer o milho crescer, lavar tudo. A grama do quintal que estava estorricada está verde de novo e precisando de corte. Incrível essa capacidade de renovação da natureza. Será que a gente também é assim? Eu queria fazer poesia com a floresta de cogumelos que nasceu no quintal, cada dia em um canto diferente. Ou com a revoada de cupins brotando do chão. Aqui, chamamos de "catarina" esses insetos que, saídos da terra, voam em dias de chuva. Ou ainda, com os cinco pezinhos de 'bem-me-quer' que nasceram no quintal. Um deles já está com o botão quase em flor. Mas, sou só mulher do povo, mãe de filho, sonhando em ser Adélia. Aprendi que não se pode jogar a semente de qualquer jeito, em qualquer lugar. Foi assim com o bem-me-quer e com as sementes de tomate, pimenta e feijão que joguei na horta. Nascer, elas até nasceram, mas o mato está competindo com elas e não tem jeito de capinar, pois está tudo misturado. Aprendi que é preciso fazer o canteiro, preparar a terra, esperar a época certa. Algumas  mudas gostam de pouca, outras, de muita água. Tudo tem ciência, omo na teses que estou escrevendo. Scooby perdeu o lugar e está visivelmente aborrecido. Agora, quem  fica enrodilhada aos meus pés é Frida e suas meninas. Elas são tão lindas quando estão dormindo. Acordadas não param quietas e tudo oferece perigo. Os dentinhos já nasceram, já posso senti-los nos meus pés enquanto trabalho. Outro aprendizado para o posfácio da tese: os bichos humanizam a gente.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

"Uma viagem inventada no feliz"

Meu irmão chegou ontem, de viagem. Eu ansiosa, querendo saber como tinha sido a experiência de viajar pela primeira vez de avião. O entusiasmo dele me fez lembrar do conto "As margens da alegria", de Guimarães Rosa. No conto, um menino viaja de avião, também pela primeira vez. Para nós, que tivemos acesso a esse direito há tão pouco tempo, até o 'afivelar do cinto vira afago'. Meu irmão viajou com a filha, que há tempos calculava tudo: dia dos pais, jogo do galo no Serra Dourada, ela de férias... por que não levar o pai para ver o jogo? Quantos coelhos não matariam com uma cajadada só? Como ela já tinha vivido a experiência, deixou o 'lugar da janelinha' para o pai. Quando ele chegou, eu quis saber de todos os detalhes: as comissárias de bordo, da cara feia da filha quando ele disse que queria um de cada, daqueles pacotinhos minúsculos de bala e biscoitos da Azul. Eu dei uma força: 'Não ligue, Zé! Eu também sempre pego um de cada e ainda trago para o menino'. Mas o que encantou mesmo meu irmão foi 'o chão plano em visão cartográfica'. Motorista de profissão, ele já viajou muito e reconhecer os lugares onde já esteve, lá de cima, foi uma experiência surpreendente. Ele acompanhou toda a viagem no mapa da tv, à sua frente. Falava com entusiasmo de ter localizado a BR 040, a fábrica da Iveco, o Rio São Francisco, a represa de Três Marias, a Serra do Cipó e até a Serra de Baldim. Achou a viagem rápida demais, queria ficar mais tempo no ar, 'no macio rumor do avião', nas 'nuvens de amontoada amabilidade'. Ontem, quando ele chegou, mostrei o sucesso que fez a foto dele no avião. Vi, que ele reviveu toda a emoção sentida na companhia da filha. Li cada comentário que meus amigos postaram na foto. Com a marmita de comida na mão, ele não saía da frente do computador. Ficou parado em frente à tela um tempão, olhando a foto, visivelmente emocionado. Engoliu o choro, pegou sua marmitinha com a janta e foi comer no barracão, no fundo do quintal, onde ele dorme. Parafraseando Guimarães Rosa, 'está é a estória' de um pai com sua filha e uma 'viagem inventada no feliz'.

Olhos novos e novas maneiras de olhar

acordo às 5 da manhã, com os sinos da igreja chamando para a reza. é que a 'festa de agosto' já começou. mas por que tão cedo?  "é para rezar antes de ir para o trabalho", explicou minha irmã. já que acordei cedo, aproveito para fazer a minha reza também: um poema de matilde campilho, uma crônica de manuel bandeira, outra de drummond: "se a poesia é a linguagem de certos instantes, e sem dúvida os mais densos e importantes da existência, a prosa é a linguagem de todos os instantes, diz o escritor. leio mais um pouco e o mineiro me enche de esperança: "se querem que a literatura tenha algum préstimo no mundo de amanhã (o mundo melhor que, como todas as utopias, avança inexoravelmente), reformem o conceito de literatura. já não é possível viver no clima das obras-primas fulgurantes e... podres, e legar ao futuro apenas esse saldo dos séculos, reformem a própria capacidade de admirar e de imitar, inventem olhos novos ou novas maneiras de olhar, para merecerem espetáculo novo de que estão participando." repito pra mim mesma: " reformem a própria capacidade de admirar e de imitar, inventem olhos novos ou novas maneiras de olhar"... novas maneiras de olhar... olhos novos... olhos novos, reformem a capacidade de admirar e imitar... 'tendeu'? que assim seja. amém, drummond! amém!

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Bença, Dindinha!


Ainda estou impactada pela visita à Dindinha Maria. Dindinha era casada com o irmão de mamãe, tio Bolivar e é madrinha do meu irmão mais velho. Mas nós todos, os dez irmãos, também a adotamos como madrinha. Virou a dindinha de todos nós. Nossos quebrantos, mau-olhados e espinhelas caídas foram curados por ela e seus raminhos de arruda e guiné, 'panhados' em sua horta. Dindinha enterrou recentemente suas duas únicas filhas em um espaço curto de meses. Ainda assim, continua lá, firme e forte. 'Agora a Senhora está sozinha, Dindinha?' Meu irmão perguntou. Ela respondeu: 'Não, tô com Deus!' Seu terreiro parece uma aldeia, com as casas dos filhos, netos e bisnetos, todas construídas ao redor da sua. Sentados na cozinha, eu observava sua boca murcha, sem nenhum dente, e ouvia suas histórias. Olhava, olhava e só via beleza. Apesar da pele vincada, do corpo já curvado pelo peso do mundo, as rugas eram poucas para quem está com 80 anos e forjou sua vida no cabo da enxada. Enquanto ela falava eu via mamãe em suas histórias, nos detalhes da sua casa. A luz da manhã entrando pelos brechas do telhado, a cinza no fogão ainda quente, confirmando que o café oferecido, tinha sido coado ali, naquele fogão, recentemente. A cozinha, agora, abriga um desses armários tipo 'casas bahia' , mas a prateleira antiga, com as vasilhas de alumínio extremamente ariadas (como também eram as vasilhas de mamãe), também estavam lá. O papagaio irritado em dividir a companhia dela conosco, a chamava o tempo todo: 'mãe, mãe, ô mãe!'. É isso o que ela é: uma mãe! Até os netos a chamam assim. Saí de lá, convencida que esse é o meu lugar. Minha força vem dessas mulheres, simples e guerreiras, grandes matriarcas; minha descendência vem desse império.  Cada dia eu me convenço mais que sou é mulher do povo, mãe de filho, sonhando em ser Adélia. Quero ser carpideira, encomendadora de almas, dançadeira de São Gonçalo. É desse lugar que vim, é nesse lugar que gosto de estar.
A bênção, Dindinha!

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Um teto todo seu ou um quarto de despejo?

despachar o menino para escola, cozinhar feijão, comprar, ainda pela manhã: carne, frutas, leite... são os lembretes do dia pregados na porta da geladeira. e a tese? lembro de virgínia woolf: "dê-lhe um teto todo seu e quinhentas libras por ano, deixe-a abrir sua mente e liberar metade do que agora ocupa-a, e ela escreverá um livro melhor em algum dia desses." dê-me 5 dias, apenas 5 dias, desafogada das obrigações de dona de casa e mãe de filho, para só me dedicar à leitura e à escrita e verás o belo texto que sou capaz de escrever. um teto todo meu e 500 libras por ano... até que não seria nada mal... suspiro fundo. o apito da panela de pressão me traz de volta para a realidade. esqueço a escritora inglesa, branca e burguesa e lembro de outra: "deixei o leito as 4 horas para escrever. abri a porta e contemplei o céu estrelado. quando o astro-rei começou despontar eu fui buscar água. tive sorte! as mulheres não estavam na torneira. enchi minha lata e zarpei." (...) " preparei a refeição matinal. cada filho prefere uma coisa. a vera, mingau de farinha de trigo torrada. o joão josé, café puro. o josé carlos, leite branco. e eu, mingau de aveia. já que não posso dar aos meus filhos uma casa decente para residir, procuro lhe dar uma refeição condigna." "terminaram a refeição. lavei os utensílios. depois fui lavar roupas." (...) "estendi as roupas rapidamente e fui catar papel. que suplicio catar papel atualmente! tenho que levar a minha filha vera eunice. ela está com dois anos, e não gosta de ficar em casa. eu ponho o saco na cabeça e levo-a nos braços. suporto o peso do saco na cabeça e suporto o peso da vera eunice nos braços. tem hora que revolto-me. depois domino-me. ela não tem culpa de estar no mundo.  quando fico nervosa não gosto de discutir. prefiro escrever. todos os dias eu escrevo. sento no quintal e escrevo." 3 filhos, favelada e catadora. suas palavras ficam ecoando em mim: "todos os dias escrevo. sento no quintal e escrevo"... quando eu tiver minha casa e um altar para os meus santos, junto das imagens de são benedito, santa efigênia, são francisco e são gonçalo (virei devota recentemente, depois de descobrir que ele é padroeiro das mães solteiras) e das fotos de santa clarice e são joão guimarães rosa, também vou colocar uma de santa carolina maria de jesus. hoje, a vela acesa será em sua homenagem: mulher preta, mãe de filhos, catadora, favelada e escritora. valei-me carolina!

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Pai, ô pai...

"Meu pai, minha mãe descansaram seus fardos,
não existe mais o modo
de eles terem seus olhos sobre mim.
Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?
É dentro de mim que eles estão."
(Poema esquisito, Adélia Prado)

José Soares Gonçalves. Seo Zezinho Miçangueiro, como era conhecido. Eu meço 1,55 m e ele conseguia ser menor do que eu. Grande mesmo era o coração.Tinha doença de chagas, morreu por causa dela. O coração foi crescendo, crescendo até não caber mais no peito e parar de bater. Foi picado pelo barbeiro na casa de pau a pique, lá em Santo Antônio do Baú, povoado onde ele começou a vida com minha mãe.

Tenho muita inveja dos meus irmãos e irmãs mais velhos que têm sempre mil histórias de afeto e carinho, para contar sobre ele. Eu, das filhas mais novas, peguei o casamento já no final. Lembro mesmo é da violência doméstica, das brigas, ele querendo bater na mamãe, ela querendo se separar, mas ainda com filhos pequenos. Uma mulher analfabeta, o que fazer?

Tenho poucas lembranças dele, porque convivi pouco e mesmo quando morávamos juntos, quem ralhava com a gente era mamãe, ele nunca dizia nada, não se metia na criação dos filhos. Lembro dele, reformando as caixas de madeira para levar "miçanga" (frutas e legumes) para a Ceasa, em BH. Lembro que às vezes, ele chegava da rua, já tarde da noite e fritava carne de porco. Um cheiro bom invadia a casa e nessa hora sempre dávamos um jeito de levantar da cama, para fazer sei lá o quê, só para passar na cozinha e ouvir ele oferecer: "come um torremo, minha filha". Eu não esperava ele falar duas vezes.

Lembro dele tentando aprender a tocar cavaquinho pra acompanhar a folia de reis, que era um dos sonhos da vida dele. Um dia, nessa mesma mesa que escrevo, em uma das nossas conversas, mamãe me disse: "ele era péssimo marido, mas era um bom pai". Eu tomei um susto! "Como assim, mãe? Eu cresci achando que ele era "o marido safado que trai a esposa" e agora a Senhora me diz isso? Depois que ele morreu?" Rindo, ela insistiu: "mas ele era um pai amoroso, sempre foi". Mamãe sempre falava com sua voz grave: "se seu pai estiver no céu, eu quero ir para o inferno. Não quero encontrar com ele não."

Eu, solidária à mamãe, sempre fui respondona, sofrendo junto com ela quando o víamos subir para o puteiro, no final da rua. Até me envolvi em uma confusão com uma amante dele, que um dia pediu dinheiro, quando eu passava perto deles. Senti que era para me provocar, e depois daquele dia, sempre que passava por ela, eu pedia dinheiro a quem estivesse comigo. Um dia ela quis me bater, eu me escondi na casa de uma amiga. Ela, a amante, foi atrás do meu irmão reclamar de mim, disse que eu a estava provocando. Meu irmão saiu em minha defesa: "eu vou é bater em vocês dois, porque você e o papai são muito safados", ele disse. Me senti amada, com meu irmão me defendendo. Vai ver é por isso que temos uma relação de afeto tão forte, até hoje.

Só desconstruí a imagem do "homem safado que traía a esposa", anos depois de sua morte, quando eu já desejando ser mãe, quis conhecer o lugar onde ele começou a história com minha mãe: Santo Antônio do Baú. Era 6 de janeiro, dia de Reis, remate da folia. Naquele dia, a folia do Baú completava 50 anos de existência e as crianças da escola fizeram uma linda homenagem. Tomei outro susto quando vi que meu pai era um dos homenageados, pois foi um dos fundadores da folia. Todos ali tinham histórias para contar sobre o bom humor do papai e o mau humor da mamãe. De como ele gostava de receber a folia de reis em casa e mamãe ficava extremamente irritada, pois a dança estragava o chão de terra batida que ela cuidava com tanto zelo, inclusive passando barro do córrego para o chão ficar branquinho.

Certa vez, em Sete Lagoas, quando eu acompanhava a folia de reis de Baldim numa caravana, conheci um senhor, um folião, que caiu em prantos quando descobriu que eu era filha do Seu Zezinho Soares. Entre soluços, aquele 'tiozinho', já alterado pela cachaça que ia bebendo durante a peregrinação da folia, me disse que o primeiro sapato que ele calçou na vida, tinha sido presente do papai. Que ele, ainda menino, trabalhou para o papai ajudando a colher quiabo e que descalço, um dia furou o pé num prego. Naquela mesma semana, quando papai voltou da Ceasa, trouxe um par de botinas para ele. Foi outro susto: "como assim, papai era uma pessoa sensível?". Foi então, que a 'ficha caiu' e eu percebi que como todo mundo, papai tinha defeitos e qualidades.

"Ôôôô pai
Ôôôô mãe
Dentro de mim eles respondem
tenazes e duros,
porque o zelo do espírito é sem meiguices:
Ôôôôi fia."

(Poema Esquisito, Adélia Prado)

sábado, 8 de agosto de 2015

Pé no chão





 desceu do salto
aposentou as sandálias
agora, é pé no chão.




sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Filho é pro mundo?

hoje ouvi pela primeira vez "mãe", faixa do novo álbum do emicida. "em tudo ouvia a voz de minha mãe, diz o refrão. não tem como não lembrar da minha. tô aqui morando na casa que foi dela, que ela comprou e que trabalhou tanto para pagar. "não esqueci da senhora", emicida canta. eu também não esqueço da minha. faço arroz na mesma panela que ela fazia; estendo a roupa no varal, como ela estendia. como o rapper, eu também, em tudo ouço a voz de minha mãe. até hoje. "em tudo eu via nois". "marcas várias, senzalas, cesárias, cicatrizes, estrias, varizes, crises..." "enquanto enfrenta a guerra, os tanque, as roupa suja, vida sem amaciante"... "até meu jeito é o dela"..."vi deus, ele era uma mulher preta". a emoção é tanta que a filha cede lugar à mãe. lembro do menino. pauso a música que rola no computador na mesa da cozinha e vou até o quarto, já em prantos. "a beleza sozinha é triste, disse o poeta", preciso dividir com alguém. "tô ouvindo a música nova do emicida", falo já em soluços. ele diz: eu também! e solta o plug do fone ligado no tablet. o som ecoa pelo casa: "em tudo eu via a voz de minha mãe". o meu choro aumenta. o menino me abraça e eu choro ainda mais. "a sós nesse mundo incerto"... ele que por tanto tempo coube em meu colo, agora é quem me acolhe em um abraço apertado e, enquanto as batidas do seu coração colado em meu ouvido se confundem com os bits da música, ouço dona jacira, mãe do rapper dizer, "alguém prevenia: filho é pro mundo", e ela mesma, fazendo minhas as suas palavras, responde: "não, o meu é meu!"


terça-feira, 4 de agosto de 2015

Um afeto que eu não conhecia



eu não escolhi o nome dele, nem o vi filhote. quando cheguei, ele já estava aqui. nossa história começou tumultuada com ele roubando bife, batata frita, pão quentinho, recém chegado da padaria. chegou a comer um bolo inteiro. um instante só, e restaram apenas farelinhos em cima da mesa. me irritava os pelos espalhados pela casa e as marcas de pata na varanda, em dias de chuva. passado alguns meses, basta eu ligar o computador e ele se enrodilha aos meus pés. alguém sabe  explicar sobre o afeto que nasce entre pessoas e animais? justo eu, que sempre resisti a ter cachorros em casa...

domingo, 2 de agosto de 2015

Pré-texto

Sentada na mesa da cozinha me esforço para concentrar na leitura, buscando inspiração para a escrita. Os cadernos e livros se misturam com o bolinho de cenoura com cobertura de chocolate que fiz para o menino forrar o estômago, antes de ir para a escola.  A mesma janela azul onde mamãe se debruçava com as mãos no queixo, observando o movimento da rua está aberta. Agora, quem olha através dela sou eu. A madeira azul, já gasta pelo tempo, define a moldura de um quadro por onde vejo o que restou dos pezinhos de quiabo que plantei. Eles praticamente não produzem mais, mas eu ainda não tive coragem de arrancá-los. Depois do muro vejo o troca-troca de passarinhos pousando no emaranhado de fios da rede elétrica. Vejo também uma parte do telhado da casa que foi da Dona Maria do Heitor. Depois do telhado vejo o morro e a estrada poeirenta nesses tempos de falta de chuva.  Vez ou outra, sobe ou desce um carro levantando a poeira do caminho.  Por aqui tudo gira lentamente, me dando a impressão que,  a vida mesmo, "explode em bombas e dádivas de toda espécie" é depois do morro. Essas "confissões" sem importância nenhuma, são na verdade, pré-textos/pré-tese, uma espécie de oração para iniciar a escrita. Sem esse exercício eu não consigo sair do lugar.

Cheiros e sons

Baldim é sobretudo cheiros e sons. É o cheiro da fumaça do fogão a lenha, do café ralo coado no coador de pano, do alho socado na hora, do arroz refogado em gordura de porco, da bananinha e da goiabinha cremosas das várias fábricas espalhadas pela cidade. Baldim é também o som das caixas do catopê e da guarda de congo. É a voz do leiloeiro anunciando as prendas a serem arrematadas na quermesse do Asilo de São Vicente de Paulo. É o som do alto-falante da igreja que toca a ave maria, todas as tardes, na hora do ângelus. É também o coro de vozes infantis acordando a cidade para a missa aos domingos, pela manhã. Do mesmo alto falante vem as notas de utilidade pública: o celular perdido, a menina que parou de se alimentar porque o cachorrinho sumiu, o levantamento da demanda para a educação de jovens e adultos na escola estadual. Só um som não  é bom de se ouvir. Quando o alto-falante anuncia o canto "vinde todos os povos da terra para juntos a paz celebrar (...) vinde pobres, entrai rejeitados, aceitai o convite do Pai..." não é um bom sinal.  Depois desse hino, vem sempre a voz firme do Zé da Bilinha anunciando uma "nota de falecimento". A respiração fica suspensa até ouvirmos o nome do falecido e sabermos se é ou não alguém da nossa rede de afetos.

Alma de artista

Eu tenho vocação para artista. É sério!

Tudo começou quando fui alfabetizada e descobri o universo da leitura. Lembro de passar as tardes na biblioteca municipal que ficava na prefeitura de Baldim. Li todos os livros infantis que havia lá: "Camilinha no país das cores", "Camilinha no pais da beleza". Lília Malferrari era minha escritora preferida nos meus 7 anos de idade. Lembro que a bibliotecária, sempre muito carinhosa, me sugeria livros e eu adorava ficar ali; só eu, ela e aquelas prateleiras todas de livros só pra mim.

Talvez por causa da leitura comecei a gostar de escrever, até fui premiada em um concurso de redação no município. Fiquei em segundo lugar, mas como o menino que ficou em primeiro não estava na cidade, a minha redação é que foi para Sete Lagoas concorrer com as outras selecionadas nas escola do Estado. Poderia ter sido uma escritora.

Depois entrei para a Banda do Seu João de Afonso, era o destino de toda criança baldinense. Ainda hoje, muitas seguem esse caminho. Sonhava em tocar a clarineta e o sax, mas ele nos torturava, antes, com as aulas de teoria musical nos ensinando a ler as partituras. Lembro que um dia solfejei tão bem, sem um errinho sequer, que Seu João ficou tão impressionado, que me deu os parabéns e ele nunca fazia isso. Poderia ter sido cantora, pois até hoje sou bem entoadinha.

Teve também os teatrinhos dirigidos pelas irmãs Rosali e Roseni. Lembro de uma seleção que elas escolheriam a protagonista para uma peça que elas estavam escrevendo. Eu tive que improvisar uma cena romântica com um garoto, mas foi um desastre. Perdi o papel e a peça "Quem matou o fazendeiro" foi protagonizada por outra menina. Teve até bilheteria. Hoje, quando vejo atores e atrizes como Irandhir Santos, Jesuíta Barbosa, João Miguel, Hemila Guedes, Alice Braga, fico com a impressão que a arte de representar é uma das coisas mais fáceis do mundo.Quem dera eu ter 30 anos a menos e me matricularia, hoje mesmo, num curso de teatro.

Teve também a dança. Fui rainha da discoteca no final da década de 1970. Ganhei vários concursos na discoteca Punk que havia na praça e no Midlab, clube da cidade. Até recebia convites para dar aulas de dança. Assistia todos os videoclipes  na Tv, para depois dar show aos finais de semana, ao som dos Bee Gees, Diana Somer, entre outros. Quando colocava a minha sandália "francesinha" e a saia rodada, não tinha pra ninguém, me transformava numa "Sandy" e não faltavam "Tony(s) Manero(s) querendo dançar comigo e transformar todos os sábados em "Saturday night fever".

Mas o tempo passou e não virei artista. Sou só uma mulher do povo, mãe de filho e com um desejo enorme de ser "Adélia". Ainda buscando me acostumar com a ideia de ser uma jovem senhora de 49 anos. Mas, como Adélia mesmo diz: "não posso mais fazer curso de dança, escolher profissão, nadar como se deve."... Fazer o quê, né?

Mas continuo com a alma de artista.

Qu'é-de mamãe?

domingo de sol, sem nuvens. hoje, eu queria mamãe, sem fadiga, me respondendo com doçura. a gente ia sair pra passear de braços dados, caçar uma sombra a beira de um corguinho desses que tem por aí, sentar e depositar os pés. ficar sentindo a friagem da água até adormecê-los. mas qu'é-de mamãe para fazer bolas de carne pra gente comer com pão no passeio? qu'é-de mamãe pra gente fazer piquenique no dondóia?

sábado, 1 de agosto de 2015

Carta

Baldim, 23 de abril de 1980.

Oi mãe,
Como estão as coisas por aí? Por aqui, só saudades. Demais... Da Senhora e dos meninos. Todos... Penso, penso e não consigo achar uma solução. Como vamos viver assim, mãe? Vocês longe, e eu aqui, sozinha com o vovô? Eu tento esconder, mas ele percebe a minha tristeza. É anoitecer e eu me enfio embaixo das cobertas, para dormir logo e para chegar o dia seguinte logo e o tempo passar bem rápido e chegar novamente o dia de ir visitar vocês. Vovô disse que vai comprar uma televisão para eu me distrair. Tadinho, mãe... A aposentadoria dele não dá pra comprar nem um fogão a gás, que eu sonho há anos, quanto mais uma TV, que é muito mais caro. Quando chove, colocamos a lenha pra dentro de casa, porque acender fogo com lenha molhada, ninguém merece, né? A Senhora sabe bem do que estou falando. A cozinha fica meio bagunçada e a Senhora sabe como eu sou chata com arrumação, mas fazer o quê, né? Mãe, por que que tem que ser assim? Por que não podemos ficar todos juntos, conviver? Não existe a menor possibilidade de vovô mudar para Belo Horizonte mãe, ele não aguentaria. E as criação? As galinhas, os porcos? A plantação de fumo? A Senhora acha que ele aguentaria ficar sem isso? Por falar nisso, a plantação de fumo deu bastante esse ano, quase não teve pulgão nas folhas. Eu ajudei ele a fiar e rendeu bastante. Fiamos também fumo preto. Quando eu for, mês que vem, vou levar um pedaço para a Senhora experimentar. Mãe, outro dia o vovô passou mal. Eu tive que ir correndo chamar o Iton para vir socorrer ele. Sempre que ele adoece, eu vou até a igreja, rezo e faço promessa. Dessa vez, não fui, mãe. Por favor, não conte isso pra ninguém, só tenho coragem de contar pra Senhora. Das outras vezes que ele adoeceu, ela ia melhorando, e eu ia ficando alegre, assim, junto. Dessa vez mãe, a melhora dele foi me dando uma tristeza. Sabe por que, mãe? Porque só vejo possibilidade de mudar para Belo Horizonte e ficar junto de vocês, quando ele morrer. Isso não é terrível, mãe? Mãe, reze por mim. Não esqueça de acender a vela em intenção do meu anjo da guarda. Não esqueça do meu segredo. Peça a quem ler a carta para a Senhora, para não contar isso pra ninguém. Por favor, mãe. Eu tenho muita vergonha desse sentimento. Só estou escrevendo isso, porque além de mãe, a Senhora é também minha amiga. Fica com Deus.
Bença.

Sobre filhos

Novamente a casa ficou quieta, silenciosa. O computador voltou pra mesa da cozinha e o café da manhã foi somente na companhia do Scooby, que desanimado, nem cobiçou o meu pão.

Qué'de a algazarra dos últimos dias? Qué'de os meninos correndo pelo casa? Qué'de a barraca montada no quintal, onde as crianças dormiram, pois a casa pequena não cabia todo mundo?

A amiga, de 'milianos', retornou à cidade. Quando veio aqui, pela primeira vez, era ainda uma criança. Hoje, já é mãe de filhos, profissional respeitada. Mas tem uma essência, ali, que não mudou. É a mesma menina espevitada da infância, extrovertida toda vida, conversando com a cidade inteira.  "Sou quase direita, se o senhor confiar em mim, posso trazer o dinheiro depois", ela brincou com o moço do açougue; "essa turma tá bonita, hein?" gritou para o grupo que caminhava do outro lado do asfalto, quando íamos ver o pôr do sol. Sempre disposta, assumiu o fogão e fez mil coisas gostosas. Todos esses dias, o riso dela ecoou pela casa, trazendo uma energia boa. Sempre animada, topou todos os passeios, enfiou o pé na poeira do caminho, se arriscando a pegar alguns carrapatos.

Mas, o mais bacana mesmo, foi ver os nossos filhos convivendo, se divertindo juntos, inventando brincadeiras. Um sentimento novo brotou em mim. É como se fosse um prolongamento de todo amor e admiração que temos pela família uma da outra. Ver os filhos dando continuidade a isso deixou o meu "coração amolecido como um figo na calda".

O tempo não para


Parafraseando o poeta: quando se vê, já são 10 horas, quando se vê, já estamos em julho, quando se vê, passou-se 1 ano. Quando se tem prazos a cumprir o tempo é uma espada, constantemente, cravada em nossa cabeça. A ave-maria saída do alto-falante da igreja, todo final de tarde, me comove por demais. Mas também me angustia, pois é o sinal de que mais um dia chegou ao fim e nem sempre foi produtivo. As mangueiras,  novamente em flor, também anunciam: o tempo não para.  Plantei milho, ele embonecou, pendoou, madurou, colhi, foi cozido, transformou-se em mingau, em bolo. Plantei quiabo, brotou, cresceu, colhi, até perdeu. E agora está lá, uma dezena de pés, sem folhas, que me recuso a arrancar. Talvez, seja na tentativa de deixar o tempo um pouco em suspenso, afastar um pouco a ponta dessa espada que não me deixa fazer nada sem me sentir culpada. Mas não adianta, os pés de quiabo estão lá, paralisados, depois de uma produção que nem dei conta de comer toda, mas a floração do tomate cereja avisa que não há formas de driblar o tempo e como diz o poeta, "agora é tarde demais para ser reprovado". Sigamos então...

Sonhos

ontem, o menino chegou de viagem. foram só alguns dias, mas eu e o scooby já estávamos sentindo falta, das conversas e dos afagos. arrumei o quarto a espera dele, troquei a roupa de cama, ajeitei as poucas roupas no caixote improvisado em armário, lavei o tênis usado para andar de skate. quando ele chegou, deitei na outra cama e ficamos conversando, sonhando com o fim da tese, minha aprovação num concurso, um salário legal e uma casa só nossa. ele quer um quarto só pra ele e sonha com um armário para as roupas:
- sem caixote reciclado mãe, por favor! quero uma gaveta para cuecas e outra para meias. cansei dessa sacola aí, onde elas ficam guardadas. tênis? pode ser só dois mesmo: um para sair e outro para andar de skate. só tenho dois pés! quero também uma escrivaninha para fazer as tarefas de escola, uma caixinha e um apoio para minha guitarra e outro para o violão. shapes, eu quero vários.
- Ih... shapes você vai ter que comprar com o seu próprio dinheiro. o armário eu dou. agora, vários shapes?
- pô mãe, não quebra a vibe! ah, quero também pôsteres na parede: tupac, iron maiden,  black sabbath,  acdc e um de skate. ah, e quero uma estante para os meus livros. mãe, imagina poder fazer uma compra de supermercado decente, com biscoitos e chips?
- e desde quando biscoitos e chips são decentes, menino?
- mãe, posso sonhar? não quebra a vibe...

pode filho. podemos! afinal nosso sonho não é assim, tão impossível de ser realizado.

Oração

o dia amanheceu  com um céu escandalosamente azul e sem uma nuvenzinha sequer. a amiga convidou para o sítio: "tenho muito trabalho, mas a preferência, hoje, é para os amigos, venha!". recusei, não posso! sei que a vida lá fora explode em bombas e em dádivas de toda natureza, drummond já me contou. mas hoje, a minha luta é com as palavras. preciso arrancar mais um capítulo dessas páginas em branco. vou até o meu altar particular, ajeito a foto de  santa clarice e a de são joão guimarães rosa. acendo uma vela. de um lado, abro um livro de adélia; do outro, um de drummond.  leio em voz alta "o lutador" e "antes do nome". esta é minha oração. adélia, com a calma que lhe é frequente, sussurra:  pegar a palavra na mão, tal qual um peixe vivo, é coisa infrequentíssima. drummond ratifica: algumas palavras são fortes como um javali, outras precisam ser enlaçadas, seduzidas, gostam de carícia. é preciso humildade para persuadi-las, algumas são sistemáticas, viram-nos o rosto. fruir a essência de cada palavra é um duelo. adélia insiste: mais que a palavra, o que importa mesmo é a sintaxe. a palavra é apenas disfarce. e assim sigo, sem zanga ou desgosto, sem queixume, até que o ciclo do dia se conclua.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Roupa nova

A Festa de Agosto se avizinhava. Desde o começo do ano, ela e os irmãos juntavam moedinhas para as compras nas bancas dos camelôs que se amontoavam na praça. Vinham de longe, da capital. Cada brinco, cada pulseira, cada colar mais lindo que o outro. Faltava a roupa nova para a Festa. Eis, que de repente, a mãe surgiu com retalhos comprados em Sete Lagoas, sentou-se na sua máquina de costura Elgin e de lá só se levantou para fazer a menina provar a peça que acabara de costurar. Era inacreditável que daquelas mãos calejadas pelo trabalho pesado pudesse nascer peça tão bonita. Uma bata florida de manguinhas bufantes. Era aberta na frente e duas fitas do mesmo tecido formavam o laço que arrematavam a peça num charme único. No domingo, a ansiedade para exibir na praça a roupa nova fez com que a missa demorasse mais do que de costume. Quando o padre disse: "vão em paz, que o Senhor vos acompanhe", ela não conseguiu esconder o sorriso. Mas, a certeza do sucesso veio mesmo, foi na segunda feira, quando a filha do delegado da cidade bateu à porta, pedindo emprestado a roupa para copiar o modelo.

domingo, 5 de julho de 2015

Caminhar pela cidade

Nosso trajeto começou na estação  do 'move', em frente à ufmg, onde atento, o menino observava os estudantes entrando e saindo do campus. "Já, já sou eu né, mãe? Não vejo a hora..." Os olhos curiosos buscando identificação, cabelos parecidos com os dele, camisetas de banda de rock... "Viu a camiseta do Nirvana, mãe?" Pela avenida Antônio Carlos ele foi observando os pixos e os grafites que sempre rendem boas conversas. Se entrar vendedor no ônibus, ele compra, não interessa o quê. "Tem que dar uma força, mãe. O cara tá batalhando..."  Se não estão vendendo nada, mas pedem uma moeda, ele contribui. "Não interessa o que ele vai fazer com a grana mãe, ele é livre, até para comprar drogas, se quiser", e tira as moedas do bolso. Próximo ao conjunto IAPI, de um lado os usuários de crack, do outro uma igreja evangélica também viraram temas de discussões. Embaixo do viaduto um morador de rua e seu cachorro na casa improvisada: "seus amigos são, um cachimbo e um cão, casa de papelão", o menino canta a música do Criolo. Na praça da Rodoviária ele me cutuca, mostra o casal de moradores de rua se beijando deitados em um pedaço de espuma, transformado em colchão. Os dois se abraçam e trocam carinho revelando que a rua também é lugar de afetos. Mais a frente um grupo, dessa vez, num fogão improvisado, preparando o rango. "A boia parece que vai ser boa, hein mãe? Eles têm até uma certa "infra", ele brinca. Na praça Raul Soares uma barraca montada no gramado, em volta prédios vazios e abandonados. Desta vez o papo gira em torno da função social da propriedade. Na galeria da Praça Sete, ele pira. Várias lojas de equipamentos de skate, 'milhão' de camisetas de bandas de rock, poster do Tupac. Mas a grana ficou mesmo foi nos rolamentos novos. "Paciência, vou ter que juntar, de novo. Cê volta aqui comigo, né mãe? Mãe, não vejo a hora de começar a trabalhar e ganhar meu próprio dinheiro, poder comprar minhas coisas"... Mais a frente um salão afro. Chegamos na porta, ele observa. Há tempos namora a ideia de fazer dreads. O rapaz dá um cartãozinho, "quando quiserem, é só aparecer. Podem ligar que a gente marca um horário". Uma negra linda trançando o cabelo. "Que lugar 'manero', mãe..." Na saída da galeria, o espaço da praça é dividido pelos skatistas que fazem manobras e pelos vendedores de artesanato. "Tenho vontade de dar um abraço em cada um deles, mãe..." Já encaminhando para o ponto de ônibus, um desconhecido pega em seu próprio cabelo, aponta para o cabelo do menino e faz um sinal de positivo com o polegar. O menino retribui a gentileza movimentando a cabeça e não consegue esconder o sorrisão que ilumina seu rosto. Inconscientemente, apruma o corpo e levanta a cabeça. Seguimos nosso destino.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Terceira Margem




Estamos sempre atravessando, não para o outro lado, mas para uma terceira margem. Uma travessia que não se efetiva porque a terceira margem está dentro de nós. Depositados que somos "numa canoinha de nada, nessa água que não para, de longas beiras". E a gente segue "rio abaixo, rio a fora, rio a dentro", porque a terceira margem não se alcança, mas é ela que nos move a remar.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Viver é muito perigoso

"Mas, então, de repente, Miguilim parou em frente do doutor. Todo tremia, quase sem coragem de dizer o que tinha vontade. Por fim, disse. Pediu. O doutor entendeu e achou graça. Tirou os óculos, pôs na cara de Miguilim. E Miguilim olhou para todos, com tanta força. Saiu lá fora. Olhou os matos escuros de cima do morro, aqui a casa, a cerca de feijão-bravo e são-caetano; o céu, o curral, o quintal; os olhos redondos e os vidros altos da manhã. Olhou, mais longe, o gado pastando perto do brejo, florido de são-josés, como um  algodão. O verde dos buritis, na primeira vereda. O Mutúm era bonito! Agora ele sabia." (JGR, Campo Geral, p. 151)

Miguilim foi a primeira obra que li de Guimarães Rosa. Quem me apresentou foi minha irmã Luia, que, no final dos anos 80, lia o livro para o vestibular. Já perdi a conta de quantas vezes li, reli e tresli. E sempre me emociono. Este livro fez uma revolução em mim. As lentes que o doutor emprestou para Miguilim foram as mesmas, que também, pelas mãos do doutor, eu coloquei na cara. E este gesto provocou em mim um turbilhão que ainda hoje me desarruma.

Os personagens de Guimarães Rosa me fizeram olhar para meus pais de forma diferente. Também me fizeram reconciliar com Baldim, que durante muito tempo significava pra mim, ignorância e atraso. Quando percebi a grandeza da obra de Rosa e vi que o universo Baldinense era muito próximo do universo de seus personagens, foi uma revolução. Foi ali, que pela primeira vez, usando as lentes que o doutor me emprestava, enxerguei minha aldeia. E foi ali, que vi que Baldim também era bonito, como o Mutúm de Miguilim. Passei a admirar os caminhos poeirentos e pedregosos, as árvores baixinhas e enfezadas do cerrado, que como o próprio Rosa explicou, em carta ao seu tradutor italiano, possuem raízes longuíssimas. Foi com essas lentes que também passei a admirar as gentes, a me comover com a sua devoção, apesar da minha fé ser pequenininha, pra não dizer nenhuma.

São estas mesmas lentes que recebi das mãos do doutor, que hoje empresto ao menino. As lentes da curiosidade. Sempre procurei despertar nele um olhar curioso a respeito do mundo. E modéstia à parte, penso que não faço feio não. A indignação que o menino já revela diante das injustiças sociais, é na mesma proporção da ternura  que enchem seus olhos ao ouvir um senhor de noventa anos. A forma amorosa como que trata os irmãos, o respeito que revela pelos mais velhos, me deixa sempre muito orgulhosa.

Tem sido através dessas lentes que o menino tem aprendido a admirar a cultura popular e a respeitar a fé e a devoção do outro. Lembro que, há cerca de 1 ano, quando morávamos em Lisboa, ele estudava para uma prova de história e geografia de Portugal. Era a primeira vez que ele lia sobre a inquisição e ficou extremamente chocado. "Como assim, mãe? Era ali, onde hoje é o Terreiro do Paço, aquele lugar lindo que você gosta tanto, que uma fogueira enorme queimava as pessoas? Só porque elas pensavam diferente? Como assim?" Ele questionava indignado.  Lembro que, neste dia, na hora de dormir, ele me abraçou e disse: "obrigado mãe, por não me impor uma religião e por me educar sempre para questionar". Na hora, eu engoli o choro e retribui o abraço.

Desde então, temos conversado muito e ele, hoje, se define como agnóstico. Já deixei claro que ele pode mudar de ideia. Só tem 13 anos e um mundo inteiro por descobrir. As lentes do doutor continuam na minha e na cara do menino, e é assim que temos seguido, olhando o mundo.

Ele está descobrindo o rock e comprou várias camisetas de bandas com o dinheiro que juntou. O rap também fornece mil respostas pra ele. Aliás, eu comecei a escutar rap quando, aos 8 anos de idade, ele chegou em casa cantando "Negro Drama" dos Racionais. Foi ali, que eu quis  entender o que tinha naquela letra para seduzir uma criança tão pequena e me "converti" também. Hoje, vamos juntos aos shows.

Tenho observado que todos os dias, na hora de ir pra escola o assunto "religião" é tema na mesa do café. Percebi, conversando com ele, que muitos colegas não aceitam o fato dele se definir como agnóstico. Acham um absurdo ele vestir preto e tem alguns, até, que acham que todo roqueiro é satanista. Ele chega a achar graça, mas às vezes, a opressão é grande.

Eu fico assustada porque o mundo parece que encaretou, está mais intolerante, reacionário. E o mais impressionante é que esta intolerância que me parecia ser específica do mundo dos adultos, já chegou na meninada. Esses dias ele teve uma discussão interminável no whatsapp, com uma colega,  que não aceitava o fato dele não ser cristão. Ele dizia pra ela: "olha, eu não quero que você mude de opinião, você pode acreditar no que quiser, mas não aceito que você queira me obrigar a pensar como você". Foram tantos os argumentos dele e todos tão consistentes que eu fiquei orgulhosa.

Mas, sigo preocupada. Afinal, que lentes temos oferecido aos jovens para enxergar a vida? Será que estamos todos míopes? Que São João Guimarães Rosa tenha piedade de nós e nos forneça as lentes pra olharmos pra esse mundo louco. Porque, mais do que nunca, viver tem sido muito perigoso.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Um dia "não-qualquer"

o dia ontem amanheceu como um dia qualquer. o galo da vizinha me avisou a hora de levantar. abri o portão para o scooby sair e o cazumbá e a frida aproveitaram para entrar. despachei o menino para a escola e lembrei que tinha que cozinhar feijão para o almoço. 23 de junho. mais um aniversário. 49 anos. não é pouca coisa não. o poema "espelho", de silvia plath, não me saía da cabeça. espelho, em cuja superfície afogou-se a menina que um dia eu fui, e que, dia após dia, ergue uma senhora em minha direção. ainda estou aprendendo a conviver com ela, a aceitar os sinais que ela me traz, mas temos convivido bem. liguei o computador  e a partir daí, os afazeres de dona de casa, mãe de filho e de escrevedora de tese foram cerzidos com o carinho que recebi dos amigos. os de longa e os de recente data, os de perto e os de longe. obrigada a cada um que cerziu um pontinho sobre a minha rotina doméstica, deixando o meu dia tinindo de bonito e fazendo dele um dia "não-qualquer". agradecida. de coração.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Pré-texto/Pré-tese




mãe, depois daqui, a gente vai pra onde? não sei te responder, filho. é que eu queria me preparar, avisar meus amigos. ainda não tenho essa resposta. no meio do caminho tem uma tese, tem uma tese no meio do caminho. primeiro, preciso terminar a tese e defender; depois arrumar um emprego, de preferência passar num concurso. mãe, você me promete que a próxima cidade que a gente for morar vai ter pista de skate? não posso prometer isso, filho. sabe onde eu gostaria de estar neste domingo, mãe? não, filho. onde? no skateboarding day, em sp. eu também gostaria de estar em sp, neste domingo, na virada cultural, assistindo ao show do emicida, em frente ao museu da língua portuguesa. mas há 8 anos nossa vida tem sido assim: viver o presente. esse desconhecimento do futuro também me angustia, filho. o pior mãe, é que nem é o futuro daqui a 5 anos, é o futuro daqui a 5 meses. vamos dar a volta ao morro, mãe? espairecer a cabeça, tirar umas fotos? vamos, filho!

terça-feira, 16 de junho de 2015

A volta


Há quase um mês sem notícias, angustiada, ela já pensava no pior, imaginando como criaria os cinco filhos sozinhas.  Afinal, o marido nunca havia ficado tanto tempo longe de casa. Como o sol já ia se pondo atrás do morro, ela juntou as crianças e foram até o lago, à procura de algum peixe para a janta. Vendo a farra dos meninos brincando na água, por alguns instantes, ela até esqueceu as preocupações e riu junto com eles. O mais velho exibia orgulhoso a traíra que conseguira pegar, os menores se divertiam pescando piabas com as peneiras. Subiram de volta para a casa, ela foi limpar e preparar os peixes e os meninos ficaram no quintal brincando. Se esforçando para espantar a tristeza e o desânimo, ela soprou as brasas quase apagadas no fogão a lenha, com a mesma força que desejava que a esperança voltasse a habitar o seu coração. Quebrou os gravetos que os meninos trouxeram do mato e soprou as cinzas, fazendo com que uma centelha se espalhasse, acendendo o fogo novamente. No mesmo instante em que o fogo começou a trepidar ela ouviu um alvoroço no quintal. Em coro os meninos gritavam:
- Papai voltou! Papai voltou! Papai voltou!
Ela chegou na porta da sala, esticou o pescoço e reconheceu, ao longe, o chapéu do marido. Sim, era ele! Enquanto as crianças desciam o morro correndo para encontrar com o pai, ela lembrou da panela no fogo e voltou para a cozinha. Soltou um suspiro comprido de alívio, enquanto colocava mais um prato na mesa pra janta.

sábado, 6 de junho de 2015

Propaganda enganosa


já me disseram que eu faço "propaganda enganosa" de baldim; que aqui não tem nada, mas que por causa das fotos e do que escrevo meus amigos ficam querendo conhecer a cidade. ontem, recebi a visita de um amigo querido que não via há muito tempo. ele chegou querendo conhecer os pontos turísticos da cidade. fiz com ele, o que sempre faço com as minhas visitas. comecei pela minha casa. ele viu a hortinha, os pés de quiabo já no final de  produção; viu onde plantei o milho, a hortelã pimenta, o manjericão, o pé de boldo, a moita de capim cidreira. ele observou o quintal, os "resíduos" que meu irmão pendura pela varanda, brincou com o scooby, conheceu o cazumbá e a frida. ajudou no almoço, comeu a salada de alface com rúcula que comprei na carroça do seu domingos. a sobremesa foi a bananinha cremosa feita na fábrica de doces daqui. depois saímos para caminhar pelo cerrado.
mostrei a rua e a casa onde nasci; fizemos a volta ao morro. encontramos jatobá pelo caminho e ele aproveitou para comer um, apesar daquele cheiro horroroso de chulé que a fruta tem. ele também conheceu o córrego onde lavávamos roupas e tomávamos banho na infância, mas que hoje está morto, depois de receber todo o esgoto da cidade. mostrei a ele os pés de gabiroba onde fui na infância e onde hoje, levo meu filho e sobrinhos. mostrei a capelinha de santo antônio onde frequentei as rezas e assisti muitos leilões. mostrei as ruínas do que foi o clube da cidade, mostrei o grupo escolar onde fiz o ensino primário. também apresentei algumas personagens da cidade que passaram por nós, enquanto tomávamos uma cerveja na praça. ah, e ele até conheceu uma amiga minha de infância que eu não via há muitos anos e que encontrei, por acaso. penso que ele gostou e que ficou com vontade de voltar pra ver muitas outras coisas que não deu tempo de mostrar. mas só ele poderá dizer se a minha propaganda é enganosa.

Saber com sabor

eu não entendo de escrivaninha, já dizia minha amiga gabina sanavaga. é daqui, da mesa da cozinha, olhando para o morro que, por enquanto, tapa as minhas vistas para o que há do outro lado e me obriga a ficar presa às minhas memórias e aos meus dados de campo que vou juntando os ingredientes da minha escrita. é desse lugar que, devagarinho, as letras vão se formando sobre o teclado e vão marcando, pouco a pouco, as páginas em branco. lentamente os capítulos vão tomando forma. computador, livros e cadernos dividem o espaço com o pote de pimenta, a lata de pão, o vidro de azeite. é mexendo uma panela e outra, experimentando uma receita e outra, parando um instantinho para testar um novo suco com as frutas do quintal, que vou dando sentido ao vivido e experimentado com os sujeitos da minha pesquisa. as anotações de campo estão todas marcadas: uma gota de gordura que caiu do prato, a marca da pata do cachorro, que de tanto esperar, já ficou entendiado, pingos do café entornado que apagou o escrito e da sopa que coloriu de urucum, justamente a passagem onde escrevi sobre o caboclo. é daqui, do espaço da cozinha, que vou colocando os temperos e arrumando lentamente as ideias na cabeça, na expectativa que o resultado dessa escrita fique gostoso. afinal, saber tem que ter sabor.

domingo, 24 de maio de 2015

Resposta a carta de mãe

Baldim, 10 de fevereiro de 1979.

Oi Mãe,

Cheguei bem, viu? O ônibus furou o pneu logo depois da ponte sobre o Rio das Velhas, ali, quando começa a estrada de chão. Por isso, atrasamos bem e eu só cheguei em Baldim por volta das 10h. Me contaram que o vovô já me esperava no ponto, desde as 7 da manhã.

Quando cheguei em casa, notei que ele tinha arrumado tudo, varreu o quintal, a rua, passou pano na casa. Daquele jeito, sabe? O cimento vermelho ficou todo rajado, mas eu não falei nada. Aceitei o carinho.

Assim que chegamos, como faz todas as manhas pra mim, ele esquentou o  pão e derreteu queijo na chapa do fogão a lenha. Ele estava ainda mais carinhoso. Acho que no fundo, ele tem medo d'eu ir morar com vocês, em Belo Horizonte. Mas eu não tenho coragem de deixá-lo sozinho, mãe. Até porque, antes da vovó morrer, eu peguei ela, várias vezes, chorando e quando eu perguntava por que, ela sempre dizia: "eu tenho medo de morrer e ocê deixar o Izé sozinho". Só de lembrar dela falando isso me dá vontade de chorar.

Mas eu choro mesmo é quando escuto o radinho que a Senhora deixou comigo. A rádio mineira e a rádio cultura tocam todas as músicas que eu gosto. Quando escuto o MBP4 cantando "amigo é pra essas coisas" eu lembro da Luia e das vezes que eu a acompanhei ao Patrimônio, quando ela ia dar aulas na escola rural. Quando voltávamos, a gente sempre cantava essa música, uma perguntando e a outra respondendo. Acho que era para espantar o medo que a gente tinha de voltar a pé, sozinhas. Ela sempre via pegadas na poeira e tinha certeza que era de onça.

Mãe, o vovô já prometeu que todo mês, quando ele receber, vai separar o dinheiro da passagem para eu ir visitar vocês. Ele já percebeu a minha tristeza em ficar longe da senhora e dos meninos. Até disse que se eu quiser, eu posso ir morar com vocês, mas eu nunca teria coragem de deixá-lo sozinho. Mesmo assim, quando a tristeza bate, eu não consigo disfarçar e ele percebe. Como não tem televisão,  eu tenho ido dormir assim que escurece, só para chegar o dia seguinte rápido e o tempo passar mais depressa e chegar logo o dia que eu vou visitar vocês, novamente. Eu queria tanto morar aí...

Bom mãe, vou ficando por aqui. Mande um abraço pra todo mundo.

Bença,

Sua filha,

Dalva

terça-feira, 19 de maio de 2015

"Escrever é triste"

"Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos", já dizia Drummond. "Lá fora a vida estoura não só em bombas como também em  dádivas de toda natureza". E eu aqui, "os dedos sobre o teclado", vagarosamente reunindo as letras e tentando arrancar um capítulo das páginas em branco. Do quintal chega o burburinho das crianças brincando. O irmãozinho grita para o mais velho: "Eu te amo, João Pedro!". Ele responde: "Eu também, Raoni!" . Da mesa da cozinha, carente, chateada por não estar participando da farra, eu reclamo: "Ninguém me ama, até o Scooby hoje me abandonou e foi brincar com vocês." Pela janela, entra outro grito, numa vozinha infantil tentando me consolar: "Eu te amo também, Dalva!". E a vida segue sem mim, porque comigo não é possível contar.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Carta da mãe


Belo Horizonte, 15 de janeiro de 1979.

Oi filha,
Ponho-lhe a bênção.
Como estão as coisas por aí? E Sô Zé Dias, melhorou?
Aqui, as coisas vão se ajeitando. Os meninos pequenos já estão matriculados na escola e os maiores estão todos trabalhando. Ainda não posso ir lhe visitar porque o dinheiro está curto, a maldita inflação come quase tudo. Mal sobra pra comprar um torresmo de vez em quando. Ainda bem que, diariamente, o dono da padaria fornece dez pãezinhos para a sua irmã. Isso ajuda um bocado nas despesas.
Sinto falta do quintal e da horta. Aqui, praticamente não tem espaço, mas mesmo assim, eu consegui plantar uns pés de couve, cebolinha e umas plantinhas no barranco. É pra ver se dá um pouco de vida pra casa nova. A D. Olívia é um amor de pessoa e tem nos ajudado bastante. A Maria, minha vizinha, também tem me socorrido nas horas de aflição. É com ela que eu saio para procurar ofertas nos supermercados. Você sabe, né? Eu fico muito insegura em andar nessa cidade, desse tamanho, sem saber ler. Que falta que os estudos fazem, viu? Ainda bem que com vocês será diferente.
Filha, não se preocupe com o rádio de pilha. Pode ficar com ele o tempo que quiser. Eu sei o quanto que você gosta de ouvir música e que carrega ele para todo canto, quando vai arrumar a casa, ou varrer o quintal. Faça bom proveito que ficarei feliz. Quando der, você vem nos visitar. Fique bem.
Dê lembranças ao seu avô.
Sua mãe,

Maria Dulce

quinta-feira, 7 de maio de 2015

"E lá se vai mais um dia..."


Convivência

Quando nos mudamos para Florianópolis, em 2011, o menino tinha 8 anos. Lá, quando não dava para me acompanhar nas aulas, ele ficava sozinho em casa. Aprendeu a se virar, a fazer pipoca, miojo, de fome não morria. Em 2013, já em Lisboa, foi um salto de autonomia. Ia sozinho pra escola atravessando a cidade no "electrico 28". Na Praça da Figueira conheceu os "trutas" do skate, galera solidária, que dividiu com ele shapes, trucks e rodas.

Há quase um ano estamos no interior de Minas. Agora, o melhor amigo é um adolescente que quando não tem aulas, ajuda o pai na roça e já consegue comprar suas coisas com o próprio dinheiro.  O menino vendo o exemplo, já sonha com um trabalho, esperando ansioso completar 14 anos para entrar em algum programa de "jovem aprendiz" e ganhar a própria grana. Afinal, desde que se entende por gente, a mãe vive de bolsa, o dinheiro sempre contadinho, sem poder fazer "gracinhas".

Hoje, os dois chegaram juntos da escola e foram para o computador pesquisar preços de skate. O amigo, que há pouco tempo ganhou um cavalo de presente, agora quer ser skatista. O menino, mais "experiente", deu uma "consultoria" explicando sobre peças, marcas e sites. Enquanto explicava as vantagens e desvantagens de cada equipamento, o colega ia fazendo as contas de quantos dias de trabalho seriam necessários para adquirir o mais novo objeto de desejo. Navega daqui, navega dali, se depararam com os preços de tênis. 1200 reais em um par. O amigo olha para o tênis no pé, custou 120, cinco dias de trabalho.
- Nó vei, 1200 dava para comprar 10 desse daqui. Mais mil conto e dava até pra comprar uma moto velha pra ir pra roça trabalhar.

Ficaram ali um tempão fazendo contas. Essa convivência tem feito um bem danado ao menino. Acredito que ao amigo dele também.

sábado, 2 de maio de 2015

"Papel, caneta e coração"


as mãos habilidosas no trato com a enxada e a terra, na lavação das roupas e na feitura dos biscoitos se tornavam extremamente desajeitadas nas poucas vezes que ela pegou num lápis. só uma vez a vi insistindo com papel e caneta. foi quando o filho mais velho se candidatou a vereador. durante dias e dias, ela passava as horas de folga bordando as letras no papel: Z E Z E.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Ensaboa mulata, ensaboa...

Enquanto esfregava o décimo sexto lençol, ela percebeu gotinhas de sangue  no tecido branco. Os dedos já doíam quando ela ia, lá, pelo décimo primeiro. Mas, perfeccionista do jeito que era, enquanto houvesse uma sujeirinha sequer, ela não parava de esfregar. Depois, ainda colocava para quarar, pois aprendera com a mãe, que o sol tira todas as manchas que as mãos e o sabão não conseguem. Foi só quando esfregava o décimo segundo, que percebeu que os dedos sangravam. Mas tinha que continuar mesmo assim, pois ainda faltavam seis lençóis. Quando colocou o décimo oitavo para quarar sobre a grama do quintal, a patroa enfim, a chamou para tomar o café. Ainda bem, pois a barriga já reclamava. O almoço servido tinha sido pouco, mas ela ficou sem jeito de pedir para repetir. Patrões, normalmente, não gostam de empregados que comem muito. Ela mesma, já ouvira muita patroa reclamar das empregadas comilonas. Os  dias em que lavava roupas pra fora eram bons, porque não precisava se preocupar com a comida. Pelo menos, pra ela e pra filha pequena que sempre a acompanhava ao serviço. Já eram quatro horas da tarde e ela lavava as roupas desde as oito da manhã. Ainda faltava enxaguar e torcer. Para tirar todo o sabão, caprichosa do jeito que era, repetia a operação do enxágue quatro vezes. Neste dia eram só lençóis. Dezoito, todos brancos, de saco alvejado. Ela não entendia, porque sendo ricos, os patrões não compravam outro tecido, mais fácil de lavar. Vai ver era porque a patroa não sabia o trabalho que dava, pensava ela,  enquanto mastigava o pão com margarina. Margarina... Hum... Ela fechou os olhos se deliciando com o pãozinho! O dinheiro pago pelos dezoito lençóis lavados não permitia comprar essa iguaria. Em casa, passavam no pão pasta de gordura fria. Ainda bem que os filhos gostavam. Enquanto engolia o café, ela ia fazendo as contas sobre o que daria para comprar com o dinheiro recebido pela roupas lavadas: meio quilo de toucinho, um quilo de farinha, um quilo de fubá, macarrão para sopa e batatas. Ah, não podia esquecer os pães. Só dava para levar dois, que eram divididos exatamente ao meio, o que permitia a cada um, dos três filhos, comer a metade de um pãozinho.  Como ela já havia comido na casa da patroa, nesses dias abria mão da metade que lhe cabia,  se divertindo com a disputa que os filhos arrumavam entre si, para ver quem ficava com o meio pão da mãe.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Mais uma carta perto do coração


Gabina, amiga querida!

Acabo de despachar João para a escola e o Scooby já suspira aos meus pés. Você já ouviu o suspiro de um cachorro? É uma coisa impressionante. Se eu soubesse, faria um poema sobre isso. É algo entre melancólico e triste.

Que coisa linda a sua carta/resposta. Adoro o seu português mestiço, me soa extremamente poético.Penso que você não deveria fazer revisão da sua tese. Sua fala parece a de uma personagem saída das novelas de Guimarães Rosa. Aquela figura bem específica, mas que ao mesmo tempo é atemporal e universal. Por que não sou escritora? Se fosse, escreveria um romance com uma protagonista inspirada em você. Será que um dia eu consigo?

Olha, essa história da arruda murchar é coisa séria, viu? Outro dia, uma conhecida esteve aqui e me falou que depois que ela deixou uma vizinha apanhar o fruto, o pé de chuchu nunca mais produziu. Segundo ela, "quando o coração não é bom, o olho é ruim e até a mão não presta." Por isso, faz todo sentido o seu ciúme com o jardim. Você já ouviu falar em  radiestesia? Uma vez assisti uma reportagem mostrando como se localiza água usando uma forquilha. Fiquei muito impressionada e passei a acreditar em energia. Por isso eu assumo logo quando estou invejando alguém. Dizem que quando você assume, a inveja perde a negatividade. Eu tenho muita inveja de você, Gabina. Você é tão inteligente! E ainda por cima é linda, fala inglês, sabe nadar, canta super bem, fica de ponta cabeça naquelas posições de ioga e agora, ainda toca um instrumento.  Assumo logo a minha inveja para ela perder a energia ruim e chegar até você, só o amor que sinto, que é imenso. Chega a me dar vontade de chorar.

Você fala da chuva e do frio chegando por aí. Aqui, choveu durante a noite, mas amanheceu com o céu azul e o sol visível. Chove pouco por aqui e praticamente não faz frio, afinal estamos localizados bem na região centro-norte do estado, porta de entrada do sertão.

Bom, vou ali acender duas velas para me inspirar com a escrita. Uma é para Santa Clarice Lispector e a outra, para São João Guimarães Rosa, santos de minha devoção. Peço a eles que me ajudem  a comer minha barata e a me livrar da terceira perna. Descobri que essa tarefa tem que ser diária. Não é assim, comeu, cortou e ficou livre. Não! Se você ficar fazendo muita hora, a barata se regenera, mesmo depois de morta, e aí, temos que começar tudo de novo. E é a mesma coisa com a terceira perna; você corta, mas se não tomar cuidado, nasce outra rapidinho... Aí, ficamos, de novo, equilibrados como um tripé, mas presos ao chão.

Vou trabalhar! Beijo grande em você. Lembranças ao Davi.

Me escreva, Gabina... Me escreva...

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Mais uma carta

Baldim, 20 de abril de 2015.

Glória querida,

Hoje, repito um gesto realizado ainda na infância, escrever uma carta para você. A primeira carta que escrevi na vida foi para você. Eu começava a ser alfabetizada, queria grafar seu nome como lhe chamava, alguém me soletrou as letras, acho que foi a Luia. Durante muitos anos as quatro letras, escritas a caneta, em letra de forma, ficaram marcada na parede da sala: GÓIA.

Hoje, escrevo para lhe dizer da alegria que tem sido conviver esses dias com sua filha Sara e com seus netos, Lucas e Mirian. Sara foi das sobrinhas que menos convivi. Quando ela nasceu a minha vida e a sua já tinham tomado rumos diferentes e convivíamos muito pouco.

Foi com uma alegria imensa que fiquei de longe, observando Sara e João trocarem confidências sobre música. Tão lindo verem esses primos convivendo. João ficou muito  impressionado com a prima que, embora mais velha que ele, divide o mesmo gosto musical pelas bandas de rock. O assombro foi tanto que ele me confessou: "nossa mãe, ela só tem 30 anos e já é mãe de família". E eu completei: "e ainda estuda e trabalha fora."

Entre um cuidado e outro com as crianças (que mãe paciente e amorosa ela se tornou), Sara nos ajudou nas tarefas e ainda fez um trabalho da faculdade. Chamei a atenção do João para o fato de não competirmos em pé de igualdade. Como uma mãe de dois filhos pequenos, que ainda demandam tanto cuidado, trabalha fora e ainda estuda pode competir com os colegas de sala? Ah, a falácia da meritocracia... Ainda bem que, recentemente, ela  conseguiu o Fies. Não pagar as mensalidades faz uma diferença enorme no orçamento familiar.

Glória, consigo perceber na Sara a mesma indignação diante das injustiças sociais que via em você. Ela quer se formar em direito, não para ganhar muito dinheiro e ficar rica, mas para ajudar aqueles que não têm como pagar um bom advogado. Oxalá, ela se torne uma excelente defensora pública. Em uma das que fiz à sua casa, lembro dela pequenininha, chegando com a Débora (acho) da locadora com vários vídeos e lhe entregando um em especial, cujo título era "Justiça" e lhe dizendo, "Mãe, esse a gente pegou especialmente pra você!"

Nesses dias que ela esteve aqui, fomos intercalando "horinhas de descuido" com momentos de tensão. João e Léo brigaram algumas vezes e quando a gente pensava que nunca mais eles se falariam, lá estavam eles já pensando em uma nova brincadeira. Precisamos mesmo aprender a arte da convivência com as crianças.

No primeiro dia, a programação das crianças e do adolescente (João não aceita mais ser chamado de criança) incluía dormir na barraca, armada no quintal. O Léo, segundo os meninos, arregou e sobrou para o João e o Lucas a aventura.

Ontem, teve piscina, caminhada pelo cerrado e futebol à noite. Na caminhada, o Léo, se sentindo o próprio guia turístico, ia  à frente conduzindo a Ana Clara (da Vivi) e o Lucas e explicando tudo. Só pararam e voltaram correndo quando encontraram um monte de bois e vacas pelo caminho.

Na volta teve mais um tibum na piscina, mas desta vez não dormiram na barraca, que sobrou para o Scooby, que confortavelmente, teve um colchão enorme só para ele. Estamos pensando em não devolver a barraca e transformá-la na casa definitiva do Scooby, mas está difícil convencer o Léo.

No apagar das luzes, fui dormir com o coração aquecido, depois de saber que a pequena Mirian confessou à mãe: "eu gosto da tia Dalva."

Parabéns pela família, Glória!

Abração,

sábado, 18 de abril de 2015

Carta

Baldim, 18 de abril de 2015.

Querida Gabina,
Como vai? Tá mais calma?
Por aqui, vou como os meus irmãos congadeiros cantam: "é devagarinho, é devagarinho, é, no rosário eu vou..." Vou alternando momentos mais produtivos com momentos de deserto. Acordei um pouco antes das seis horas com o Scooby arranhando o portão, querendo sair. Para não incomodar a vizinha, que já reclamou várias vezes dos cachorros, levantei e fui abrir. Já que estava de pé, resolvi ligar o computador e trabalhar um pouco. Como tem feriado prolongado a casa vai receber visitas e aí fica mais complicado escrever. Uma pena que o mundo não para pra gente escrever, né? Você continua tendo tpm, enxaquecas, tendo que ir ao supermercado, lavar o banheiro, limpar o quintal, cuidar da horta, ir a reunião na escola do filho, cuidar da saúde, etc. Por falar em saúde, em 10 meses de caminhada não emagreci 1kg sequer, mas melhorei os meus índices de colesterol e glicemia. Tá tudo uma beleza. A barriga, eu acho que só a lipoescultura para resolver, ou a aceitação mesmo.
Ah, tô pensando em adotar uma cadelinha, acredita? Cansei de ficar expulsando ela daqui. Ela está quase sem pelo e com bastante feridas pelo corpo. Acho que vou levá-la ao veterinário e cuidar dela. Como ela é pequenininha, talvez dê para levá-la quando formos embora. Me converti aos cachorros, Gabina! Agora troco segredos com ele. E essa cadelinha tá implorando ajuda. Ai... ai... ai... O João a chama de "Nego V elho" porque quando a conheceu achava que ela era macho. Mas fêmea nenhuma merece um nome desses, não é? Tô pensando um nome bacana pra ela. Gosto de Frida, acho que combina com aquele corpo machucado dela. Agora a pouco ela estava deitada no sofá, lá na varanda, com uma carinha. Ela viu o portão aberto e entrou. Eu fingi que não vi, para não ter que expulsá-la.
Bom, vou trabalhar. Mande notícias e "uma palavra bem amiga". Hahaha
Abração

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Terceirização, não!


Eu também tive experiência com a terceirização. Não, não foi porque contratei algum serviço terceirizado! Eu fui a terceirizada! Fui telefonista, por anos, na antiga Telemig - Telecomunicações de Minas Gerais, antes das "teles" serem privatizadas no governo FHC.

Era o final da década de 1980, num tempo em que poucas cidades tinhas DDD - Discagem direta a distância e a maioria das ligações era feita via telefonista. Para não caracterizar vínculo, a cada três meses, meu contrato era rescindido e eu era contratada por outra empresa. Conheci todas as empresas que terceirizavam em BH: Conape, Conset, Selp, entre tantas outras.

Além da insegurança de ser terceirizada, tinha também a pressão de sermos monitoradas pelas supervisoras que, numa outra sala, fiscalizavam nossos serviços, ouvindo a forma como atendíamos aos clientes. O uso da fraseologia correta era rigorosamente cobrado. - Telemig, boa noite, Dalva! Para onde deseja falar? Com que telefone? Número desse telefone. Um momento, por favor. Como esquecer?

Além disso, trabalhávamos por produção: você tinha por obrigação de atender um certo número de ligações por minuto. Era tudo medido, monitorado, controlado. Até os minutos que você ia ao banheiro e tomava o café. Conversar na "posição"? Imagina!!! Não podia de jeito nenhum... Mas mesmo assim, encontrávamos nossas brechas e fiz amizades, que permanecem ainda hoje, e que nasceram das conversas intermináveis, entre uma ligação interurbana e outra.

Além do estresse do trabalho em ritmo de produção, tínhamos que lidar com a incerteza da renovação do contrato, já que não tínhamos garantia nenhuma de estabilidade. Ganhávamos menos e não tínhamos os mesmos benefícios das telefonistas efetivas. O que eu mais invejava era o plano de saúde que elas tinham: telemed. Até o nome eu achava bonito: TELEMED! 

Muitas companheiras tiveram a sorte de serem efetivadas sem concurso, pelo então governador de Minas, pelo PMDB, Newton Cardoso. (PMDB e PSDB adoram efetivar sem concurso, haja vista, a trapalhada feita em Minas, pelo PSDB, recentemente, com a efetivação de quase 100 mil funcionários estaduais) Não é de estranhar que estes partidos sejam favoráveis à terceirização. 

Eu não tive a "sorte" de ser efetivada na Telemig! Minha primeira carteira de trabalho, inclusive, foi preenchida rapidinho, justamente por conta destes contratos temporários, via terceirização. E foram muitos! Por isso, eu me arrepio toda vez que ouço falar nessa tal de PL 4330. Trabalhador(a) nenhum(a) merece um retrocesso desse. Eu digo não à PL 4330! Nenhum passo atrás!

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Sobre energia...




"o pé de chuchu tava uma beleza! a rama tava linda que só! carregadinha que só ocê vendo! aí, a dona pediu e eu deixei ela panhar. ocê acredita que secou tudo? quando a pessoa não tem o coração bão, o olho dela é ruim também e até a mão num presta. num é qualquer pessoa que pode pôr a mão nas planta da gente não! senão, seca tudo mesmo!"

quarta-feira, 8 de abril de 2015

A delicadeza que nos salva nas horas brutas

 a voz de socorro lira cantando "senhora santana" me embalava, enquanto distraída eu lavava a louça do almoço. só percebi que alguém me chamava no portão quando os cachorros latiram. era maria luca. em uma das mãos ela trazia uma abóbora e quiabos da sua horta, na outra um embrulhinho com sementes. fiquei emocionada com a singeleza do gesto. é essa a delicadeza que me salva nas horas brutas.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

O "meio" pão ou sobre essa gente que gosta de se vitimizar


o dinheiro disponível só dava para comprar dois pãezinhos que eram divididos ao meio. quatro "meios". quem buscava o pão era recompensado com o "meio" da mãe, que raramente comia sua parte. até hoje não se sabe se era por não gostar de pão, ou se para sobrar mais um "meio" para os filhos. só assim, uma das três crianças tinha o privilégio de comer "um" pãozinho inteiro.

enquanto o professor, em sala de aula, enchia a boca pra falar desse "tipo de gente que adora se vitimizar", ela só conseguia pensar na disputa das crianças, na infância, pelo "meio" pão.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Rua da Amargura



A sexta-feira da paixão começou pra mim, com um som de explosão. Era 4 horas da manhã. A notícia chegou instantânea: estouraram um caixa eletrônico. Um não, três. Os três caixas eletrônicos da cidade de 7 mil habitantes foram estourados. 

Às 5 horas acordei novamente. Dessa vez era o som da procissão dos sete passos da paixão. O cântico era o mesmo que o grupo Galpão entoa no espetáculo "Rua da Amargura".  Lembrei da cena onde Teuda Bara, no papel de Maria, chora a morte do filho:
- "Meu filho, e em que estado! Filho que eu amei tanto e com quem morrer só desejo." Maria Madalena tenta acalmá-la:
- "Acalme vossa dor Virgem Maria".
- "Que minha dor acalme? Pede ao Eterno que o sol radiante apague seu fogo intenso, que em gelo torne a larva do vulcão, que ele pode as estrelas apagar o brilho, pode os rios secar, secar os mares, não os olhos da mãe que perde um filho".

Triste coincidência em plena sexta feira da paixão: Dona Teresinha Maria de Jesus, 40 anos, chora hoje, a morte do seu filho Eduardo, uma criança de 10 anos, assassinado ontem, pela polícia, no Morro do Alemão. 

sexta-feira, 27 de março de 2015

Basta um beijo




fragilidades tão bem escondidas que pareciam nem existir, mas que brotam ao menor sinal de solo fértil.

quarta-feira, 25 de março de 2015

"Eu tenho um sonho"


quando ele viu a camiseta na vitrine, endoidou!
- "mãe, eu quero! compra pra mim?"
realmente ela era linda, uma gravura metade martin luther king, metade leão.
- "você, pelo menos, sabe quem é esse cara"...
- "sei sim, mãe! é o que diz "eu tenho um sonho". já ouvi o Racionais falar dele na música "Jesus chorou".
entraram na loja, 70 reais.
- "é muito caro, eu não tenho esse dinheiro".
- "eu tiro da minha poupança, mãe. sabe os 100 reais que a minha vó me deu? então... deixa, deixa, por favor..."
- "eu posso emprestar, depois você me paga". -  a tia interveio, sensibilizada.
a mãe ficou sem argumentos... deixou.

terça-feira, 24 de março de 2015

Luz


nos momento de decisão
de encruzilhada
ela sempre acendia uma vela
em intenção do nosso anjo da guarda.

salve maria!

segunda-feira, 23 de março de 2015

A vida que não cabe no lattes

Onde eu coloco que nesses 4 anos de doutorado eu redescobri o prazer de cozinhar? E que, para o dia render mais, aprendi a acordar cedo, e de quebra vejo o sol nascer todas as manhãs? Onde eu coloco que acima de tudo, o meu estágio doutoral em Portugal, me rendeu um amor imenso por Lisboa? Não há agradecimento possível que caiba os amigos que fiz nesses anos. Como que faz? Onde que põe essas coisas? O ponto do doce, difícil de achar, mas que me salva nos momentos de estresse da escrita? Hein? Isso tudo cabe onde? Me diz, me diz? Os poemas que li, as músicas que ouvi, os shows bacanas que fui, os lançamentos de livros, os autores que descobri? Isso cabe no lattes?

domingo, 22 de março de 2015

Receita de domingo


A nova receita de pão de queijo deu certo, três ingredientes apenas e ficaram ótimos! O irmão, na mesa para o café da manhã, elogiou: ficou bom, sem base! A conversa acabou girando em torna do queijo, de quem o fez, da comida na mesa e de como muitos dos agricultores que eram da época do pai, hoje, conseguem sobreviver da agricultura familiar.

Depois do café, ligou o computador e deu uma passeada pela timeline. Viu as fotos da manifestação global contra o racismo que aconteceu no dia anterior, dia internacional pela eliminação da discriminação racial, em Berlim; depois assistiu um vídeo do Tambor Mineiro cantando "Um ser de luz", de Paulo César Pinheiro; em seguida um vídeo da manifestação de ciclistas em SP contra a ordem da juíza que mandou parar as obras das ciclovias; existe amor em SP sim! Depois viu uma foto com os brasileiros bombando no salão do livro em Paris: Marcelino Freire, Rodrigo Ciríaco, Conceição Evaristo... só feras!

Da cozinha escutou o filho ouvindo Bob Dylan, depois Bob Marley e em seguida Cartola...

Pensa, se um domingo que começa assim pode dar errado?

quinta-feira, 19 de março de 2015

Rua do Campo



Antigamente, antes da rua ter nome oficial, chamava-se "rua do campo". O campo de futebol, fica bem no fundo da sua casa e naquela época, quando haviam poucas cercas e poucos muros, o quintal era usado como atalho para quem ia assistir os jogos.






Nos domingos de jogos, a alegria de sua mãe contrastava com a sua tristeza. Nesses dias, ela e a irmã vendiam "K-Suco" gelado na porta do vestiário. Detalhe: não tinham geladeira. Os vizinhos eram quem forneciam o gelo. Tinha mais essa, sair pedindo gelo de casa em casa. Ela odiava, morria de vergonha, detestava ficar ali, na porta do vestiário ouvindo os jogadores falando palavrões, um ambiente onde só tinham homens. Quantos anos tinha? sete, talvez oito, nem se lembra mais... Mas a mãe, empreendedora como era, sabia das coisas. Quem, senão ela, teria a ideia de vender refresco gelado na porta de um vestiário em dia de jogo? É óbvio que vendia, e muito! 



 Era tradição entre os irmãos, os mais velhos levarem o dinheiro para a mãe. Só os mais velhos poderiam desempenhar tarefa de tamanha responsabilidade: carregar duas ou três notas no bolso, morrendo de medo de perdê-las.  Na medida em que iam crescendo se recusavam a fazer determinadas tarefas e sempre sobrava para os menores. Depois ela descontaria na irmã mais nova o que a irmã mais velha fazia com ela: ir, sem pressa nenhuma, levar o dinheiro para a mãe. A alegria da mãe quando as filhas chegavam com o dinheiro, compensava toda a vergonha que sentiam. Nesses dias dava até para comprar carne!

Fazer o quê? Foi assim, com esses pequenos empreendimentos que a mãe ajudou o pai a pagar a casa onde moravam. Às vezes, com o dinheiro do K-suco dava até para rolar uma roupa nova para a "Festa de Agosto".

Hoje, a rua mudou de nome. O campo está gramado, murado, tem até arquibancada. Mas, o vestiário está lá, do mesmo jeitinho que sempre foi. E a cada caminhada não tem como não reviver essas lembranças...