sábado, 14 de outubro de 2017

A mineiridade

Depois da visita dos meus amigos cubanos e da confissão de que aqui se sentiram em casa, fui ler a declaração de amor à Minas, que Guimarães Rosa escreveu. Um belo texto, publicado na revista "O Cruzeiro", em 1957, há 60 anos. Guimarães fala da geografia, à personalidade do mineiro. Fala sobre como as montanhas que compartimentam, distanciam, dificultam e isolam, faz do mineiro um espectador, antes de tudo. Pensativo, sério, introspectivo, desconfiado, cauteloso. Fala de suas gentes, dos africanos de estirpe, dos negros reais, das Minas moçambiqueira e conga. Fala dos seus belos rios, dos nomes de suas cidades, do sul cafeeiro, da fortaleza do triângulo, do oeste calado, do noroeste dos chapadões e dos campos-gerais. E fala do pedaço que conhecia melhor, o centro do estado, o vale do Rio das Velhas, aberto à alegria de todas as vozes novas, o meu pedaço. Guimarães fala de como o mineiro é bondoso, comedido, mas também engraçado, irônico. É justo, leal, prudente, respeitador, roceiro, sensato, trabalhador, tímido. Que acha mais importante ser, do que parecer. Que possui uma filosofia cordial, sincera. O mineiro é para Guimarães, aquele que não tolera tirania, mas que se precisar brigar, briga. É aquele que busca o essencial, não as cascas. Que aprecia um enigma, picado como o mineiro pica o seu fumo de rolo. Para Rosa, o mineiro sabe que a vida dá muitas voltas, que tudo pode tornar a voltar. Minas, que na verdade, são muitas, é desconfiada. Dá a poucos a oportunidade de conhecer as suas várias faces. Não sei, mas fiquei com a impressão que meus amigos foram mordidos pelo bichinho da mineiridade. Se voltarem, é sinal de que também pegaram gosto pelo enigma.

Travessia

Esta é a estória de um menino que veio de longe fazer a travessia. Uma viagem inventada no feliz, produzida em caso de sonho. Ele sorria, gargalhava alto. Na sala de aula se entusiasmou, levantou da cadeira, foi ao quadro, pegou o giz, falou do que mais gosta, confortalvelzinho, como o jeito de uma folha a cair. Coisas benfazejas estavam por vir, tudo numa harmonia prévia. O menino atento para ver as novas tantas coisas que aos seus olhos se pronunciavam num transbordamento e já o chamavam para passeio. O menino repetia em intimidade o nome dos lugares, das coisas. A lagoa, a igrejinha, o estádio, os prédios grandes, os corguinhos todos enterrados, a roda gigante no parque, a serra que deu nome ao arraial, uma reminiscência de ipês atrasados em sua floração. A praça, o mercado, os queijos, o feijão no tropeiro e no tutu, a carne de porco, o povo morando nas ruas, as desigualdades, as injustiças, as problematizações. Os palácios, o parque, o burburinho das famílias com suas crianças em dia de feriado. Sentindo todos os músculos das pernas subiu e desceu ladeira, entrou e saiu de rua. Sentiu o peso de um lugar fundado sob o signo da violência, exterminando primeiro os povos originários, depois os negros escravizados, transplantados do continente mãe. Ouviu poesias na voz de seus autores, Drummond, Guimarães, viu a beleza do artesanato do 'Valo', 'incelente maravia'! Experimentou muita cachaça, tentou registrar tudo o que viu em retratos para gastar depois, no quente das lembranças. Viu a cidade lá de cima, ao pé da serra e entendeu o seu nome ao contemplar o belo horizonte. Seguiu com a alma aumentada e com sensações que criarão raízes em seu peito. Esta é a estória de um menino que veio de longe, que fez a travessia. É a estória de uma viagem inventada no feliz.