sábado, 30 de abril de 2016

"Reza é o que salva da loucura"


"Reza é o que sara da loucura". Já dizia Guimarães Rosa, de quem sou devota. Desde que a depressão se avizinhou de mim, não paro de rezar. Em contrição escuto Jaloo. Só o Brasil profundo para produzir um menino desses. Só o Pará com o seu carimbó e o techno-brega para nos presentear com tanta boniteza. Ouço uma, duas, três vezes. Tiro o menino para dançar. "Quer ouvir no sotify, no playstation, mãe"? "Quero!" Rodopiamos pela casa. Coloco os vídeos poemas de Matilde Campilho e rezo mais. Nem dou trela para Ronaldo Caiado. Seu discurso eu conheço desde as eleições para presidente de 1989. Tenho memória boa e além do mais, o google está aí para nos ajudar a lembrar. Também não esqueci de Aloysio Nunes, vice na chapa de Aécio Neves, fazendo campanha para redução da maioridade penal, em 2014. Foco na luta dos secundaristas se espalhando pelo Brasil. Me emociono com a foto dxs meninxs jantando à luz de velas, no Colégio Estadual Chico Anísio, no RJ. O governador mandou cortar as luzes da escola ocupada.
Ouço Violeta Parra e rezo mais:
¡Que vivan los estudiantes,
jardín de las alegrías!
Son aves que no se asustan
de animal ni policía,
y no le asustan las balas
ni el ladrar de la jauría.
Caramba y zamba la cosa,
¡que viva la astronomía!
Vejo os rostos marcados dos trabalhadores rurais sem terra e dos trabalhadores sem teto e me emociono com as suas lutas. No campo e na cidade, tá tendo luta, sim!
Rezo, rezo, rezo. A poesia é minha reza. Ela é que me salva da loucura!


(fonte da foto: facebook)

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Transformar o luto em luta


Ontem fui dormir arrasada. Um misto de frustração, tristeza e impotência com a situação política no país. Hoje, li uma entrevista com a Pilar del Río, que saiu na revista TPM. Ri e chorei com o texto sensível da Luiza Sahd. Pilar é uma mulher incrível. Tive oportunidade de lhe dar um abraço, quando morei em Lisboa. Foi na primeira vez que fui à Fundação José Saramago. Quando subi as escadas lendo as frases dos livros de Saramago, já tive que engolir o choro, Quando estava na livraria, ouvi uma voz feminina, falando em espanhol e imaginei ser a Pilar. Dito e feito. Não resisti. Fui até ela e com a voz embargada falei da minha admiração por Saramago e da inveja que sentia dela. Como ela mesmo disse na entrevista, na TPM, "tem gente que passa a vida inteira estudando um único livro de um único autor", ela teve "a oportunidade de viver com o autor!" Quando pedi se podia tirar uma foto, ela disse:"vamos ficar ali, perto dos livros dele". E pousou a mão em meu ombro. Mas, o que espantou o meu baixo astral enquanto lia a entrevista, foi quando Pilar falou a respeito da morte de Saramago. Luiza, perguntou: "Mudou muito depois que Saramago partiu? Ficou um buraco na sua rotina?" Pilar respondeu: "Nada. De novo, lamento desmistificar tudo isso. Fizemos o luto juntos. José sabia que estava morrendo e fomos nos acostumando à ideia de viver separados, falamos sobre o destino das cinzas. Ponto final. Ele ia morrer e eu viveria o tempo que fosse, sem desabar. E, olha, estou em pé, cumprindo o meu compromisso com o legado dele." Luiza insiste: "E a Pilar, como continua, com esse marido onipresente e os relógios da casa parados às 16h [horários que Pilar e Saramago se conheceram]?" Olha, não sou uma viúva desolada de jeito nenhum. Não sou viúva, nem muito menos desolada. Não choro pelos cantos, tenho meus amigos e, quando me visto de preto, é porque gosto de roupa preta. Não estou de luto, nem de corpo, nem de alma.(...)" Penso que é isso. Aconteça o que acontecer, precisamos seguir firmes, de pé e lutando. Nada de ficar chorando pelos cantos. É transformar o luto em luta.
A entrevista está disponível aqui: http://revistatrip.uol.com.br/tpm/entrevista-pilar-del-rio-esposa-jose-saramago



Barquinhos de papel

Nada como um dia após o outro, e uma noite no meio. De preferência bem dormida. Fui dormir desanimada, triste. As amigas tentando me consolar. Mas dormi bem, a noite toda. Só acordei com o despertador me chamando para a caminhada. Na volta, foi colocar os pés em casa, e caiu um torô. Choveu grosso, encarreirado, como diz Adélia em seu poema. A temperatura baixou um pouquinho e como a mãe do poema de Adélia, também decidi, inspirada: mingau de couve com carne de porco para o almoço. Daqui a pouco Seo Domingos passa com sua charrete de verduras. Vou comprar. Os sabiás estão duplamente felizes. Primeiro, porque de tanto chamarem a chuva, ela veio. E segundo, porque estão se banqueteando com os abacates caídos do pé. Passarinho gosta de chuva. Já reparou? Da janela da cozinha vejo uma andorinha no fio da rede elétrica. Ela levanta a cabecinha, se estica toda e abre o bico. Depois, abre as asas como se fosse voar, mas fica ali, quietinha. No pé de acerola da vizinha tem 2 sanhaços azuis, lindos. A chuva cessou, mas é possível ouvir o som da enxurrada. Lembrei da infância e da mãe brigando com a gente porque, em dias assim, arrancávamos páginas dos cadernos para fazermos barquinhos de papel. Não resisti. Arranquei uma folha, dobrei ao meio, depois as pontas, fiz um chapeuzinho de soldado, prendi dos lados, dobrei de novo, de novo e eis o barquinho. Fui até a porta da rua e o coloquei na enxurrada. Depois, fiquei feito boba, vendo ele descer rua abaixo. Às vezes me acho tão ridícula...

quinta-feira, 28 de abril de 2016

E se ela sair?

Enfrento o desânimo, levanto e vou caminhar. Voltei para o caminho pedregoso do cerrado. Choveu forte ontem e apagou toda a poeira. A aragem fria da manhã confirma a mudança de estação. O tempo segue alheio às minhas angústias. Os cachorros enrodilhados no meio da rua, o pé de tamarindo carregadinho, de novo. O cheiro de fumaça dos fogões à lenha se confundem com o cheiro de doce que vem da fábrica. A cidade ainda dorme, ainda não são seis horas da manhã. Só o som dos meus passos pelo cascalho. Olho para os meus pés. Lembro do menino me zoando por causa dos tênis furados.
- Mãe, você precisa de tênis novos.
- Que nada, menino! Esse ainda dura mais uns 5 anos. Esse furinho aqui, no dedão, não atrapalha nada não. Se calçar meias pretas nem dá para perceber.
- Mas mãe, você comprou quando a gente morava em Florianópolis. Deve ter uns 5 anos.
- Foi mesmo. Fui ao shopping com o Vitor, lembra? Era tão interessante sair com ele.
- Sim! Vocês formavam um casal tão esquisito. Ele louro, todo arrumado, parecia um empresário. E vc, com essas roupas estilo anos 70, sandália rasteirinha. As pessoas ficavam olhando. Saudades do Vítor.
Os pintinhos cresceram e a galinha preta, agora, segue acompanhada de franguinhos que ciscam os montes de lixo. Por entre a cerca, vejo dona Geralda lavando o bule. O rapaz da casa em frente, com o uniforme da fábrica de doce, toma café, sem pão. Lembro da música do Criolo: "às 4 da manhã, ele acordou, tomou café, sem pão e foi à rua, pôr o bloco pra desfilar" ... A senhora da casa da esquina capinou o quintal: ora pro nobis, cansanção, batata doce, quiabo, couve, cebolinha, andu, laranja, banana. Aqui, ninguém passa fome não. A flor de seda no alpendre está florida. Esse povo também tem fome de beleza. O cachorro que outro dia era um filhotinho, agora dorme fora da gaveta velha, que ficou pequena pra ele. O sol desponta e tenta romper as nuvens que o escondem. Hoje não teve espetáculo. O dia parece triste.
- Bom dia, Dalvinha!
- Bom dia!
- Choveu, apagou a poeira e você veio caminhar, né?
- É que tinha mudado meu percurso, só para variar um pouco.
- Ah... Se você tivesse vindo mais cedo, um pouquinho só, teria visto uma revoada de patos selvagens, contei uns 30.
- Pôxa, que pena! Um bom dia pro Senhor.
- Bom dia!
Lá vão as duas irmãs, carregando suas foices e sacolas, buscar lenha. A casa da esquina está com a varanda quase pronta.
- Bom dia!
- Bom dia! Ocê tá sumida, hein?
- É que estava caminhando por outras bandas. Como vai o Senhor?
- Como Deus permite. Essa perna que não ajuda. Tô preocupado com Brasília. Será que vão conseguir tirar Ela?
- Não sei, Seo Pedro.
- O que será de nós? Tava melhorando tanto pra gente. Ocê num acha não? Já ouvi falar que vão mexer nas aposentadorias.
- Pois, é!
O coração aperta e não sei o que dizer para animar o Seo Pedro.
- Um bom dia pro Senhor, viu?
- Bom dia pr'ocê também. Que os céus tenham piedade de nós, porque daquele povo em Brasília, não dá para esperar boa coisa não. Aquele tal de Cunha... Só por Deus, viu? Ô homem do capeta.
- Bom dia, Seo Pedro!

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Sem limites

Hoje é dia da empregada doméstica. Venho de uma família de 10 irmãos. 7 mulheres, 3 homens. Todas nós, as 7 irmãs, fomos empregadas domésticas. Minha mãe também foi empregada doméstica, mas era daquelas que as patroas não gostam, "sem limites". Ainda novinha, aos 13 ou 14 anos, abandonou o trabalho quando recebeu das mãos da patroa um prato de comida azeda. Feito Scarlet Ohara, Dona Dulce jurou naquele dia, que nunca mais teria patrões. Virou empreendedora. Quem, senão alguém com um espírito muito empreendedor, colocaria os filhos na porta de um vestiário, em dia de jogo de futebol, para vender Q-suco gelado? Foi assim que criou os filhos, mas nos criou "sem limites". Não aceitamos o lugar subalterno que nos quiseram impor, nos rebelamos, perdemos o limite. Na última década, os pobres "perderam o limite", invadiram shopping, aeroportos e universidades. Isso exacerbou um ódio de classes que sempre existiu. Há cerca de 1 ano foi aprovada a Pec das domésticas que estende às trabalhadoras alguns direitos há muito conquistados por outras categorias. Agora, à beira do precipício, vemos tudo isso ameaçado. O sentimento que me invade é um misto de frustração, tristeza e impotência. Mas deixo aqui, um viva às trabalhadoras domésticas, mulheres que com suas mãos, liberam as mãos de outras, para fazerem a revolução.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Choque cultural

Meu primeiro choque cultural foi quando, aos 12 anos de idade, minha família mudou para BH. A cidade grande me assustava. Morria de medo de me perder, não entendia os quarteirões fechados da Praça Sete, não sabia usar o telefone público. Foi em BH que a ficha da desigualdade social caiu. Vi mendigos na rua pela primeira vez e percebi o quanto minha família era pobre. O segundo choque cultural foi quando entrei na universidade. Era começo da década de 1990, o muro de Berlim havia caído e discutia-se o fim da história. Influenciada pelos irmãos Souza (Betinho, Henfil e Mário), lá fui eu fazer Ciências Sociais. Lembro de uma greve de ônibus que teve, e como ia a pé para a UFMG, fui assim mesmo. Achava que ia perder a caminhada, pois com greve nos transportes, como é que as pessoas se deslocariam até lá? Quando cheguei e vi o estacionamento tomado de carros, alheios à greve, percebi o espaço elitista onde estava me metendo. Lembro do primeiro período, tendo que ler Pierre Bourdieu e não entendendo nada. Lembro de um trabalho que fui fazer na casa de uma colega de curso. Um menina branca, que estava na segunda graduação, que já havia morado no Canadá e falava francês fluentemente. Essa colega, às vezes zoava o meu sotaque da roça, eu, que nem sabia que tinha, porque morando em BH há mais de 10 anos, achava que já dominava todos os códigos. Mas não adianta, pobre tem cara de pobre, jeito de pobre e alma de pobre. Já disseram por aí. Quando cheguei no apartamento da colega para discutirmos o texto de Bourdieu, tomei outro susto. Localizado na zona sul de BH; num prédio de 1 apartamento por andar, com cerca de, sei lá, 150/200m2. Era um apartamento de 4 quartos e ficamos discutindo o texto numa mesa enorme, na sala de jantar. Minha colega morava sozinha e deve ter percebido o meu espanto, pois ficou justificando de onde vinha a riqueza, que o apartamento era do pai, que enriqueceu durante a ditadura, na década de 1970, com aquela história que o bolo tinha que crescer, para depois dividir. Foi a primeira vez que ouvi isso. Depois estudaria sobre o período nas aulas de economia e aprenderia que o bolo cresceu sim, mais foi dividido somente com uma pequena parcela da população, aquela que ficava no topo da pirâmide, às custas do empobrecimento de quem estava na base. Como diria Dona Jacira, mãe do Emicida, nesses "dias escuros, mesmo com sol quente", tenho buscado onde me apoiar. Meu amigo Fernando, escreveu hoje, que já está se preparando para o "dia seguinte". Senti um frio na espinha quando li isso. Não quero pensar no dia seguinte. A escritora Noemi Jaffe também escreveu um post onde diz que, "mesmo que tenha golpe, não haverá golpe, pois a vida se espreme como vontade de potência"; que "não temos a chave, mas que procuraremos as portas" e que "continuaremos a contar histórias". Eu fico pensando na família da minha colega que enriqueceu durante a ditadura e que são as mesmas que estão no poder há 500 anos, herdeiros das capitanias hereditárias, que não admitem perder seus privilégios, que destilam ódio diante do pouco que conquistamos. Tenho evitado pensar no "dia seguinte", eu, que ainda não consegui ascender à classe média. E embora, o menino fique me consolando dizendo que "não temos dinheiro, mas temos cultura", fico pensando que nossa cultura não paga as contas. Ou paga?

domingo, 24 de abril de 2016

Choro e riso





Hoje meu irmão saiu chorando da mesa do café. Na verdade, choramos os dois. Mas eu sou chorona. O menino mesmo sempre diz quando vê alguma coisa que sabe que vai me emocionar: "Ih, cenas inadequadas para mães que choram à toa." Mas meu irmão, não. Ele é o irmão mais velho e eu o vi chorar pouquíssimas vezes, nem mesmo quando mamãe e papai morreram. Não que ele seja insensível, é machismo mesmo. Eu o vi chorar, há cerca de dois anos, quando li para ele os motivos pelos quais eu votaria em Dilma. Chorou de soluçar. Eu até fiquei com medo que ele passasse mal. Também o vi chorar quando o Lula, depois de ser conduzido coercitivamente, fez um pronunciamento na sede nacional do PT, em SP. É que a família quase toda é fã do Lula. A gente se vê nele. Em sua cara de pobre, sua fala de pobre e até, na sua alma de pobre, como disse o prefeito do RJ. Outro dia, na entrevista que Glenn Greenwald fez com ele, eu ouvi Lula dizendo "óidio". Isso mesmo: "óidio". "Óidio" de classe. Mamãe também não conseguia falar ódio, falava "óidio". Como preto e pobre dificilmente se vê representado, talvez seja esse um dos motivos do Lula ser tão popular. E hoje, enquanto conversávamos sobre a situação política do país, meu irmão chorou novamente. Envergonhado ele se levantou da mesa e saiu. Eu lembrei que as coisas nunca foram fáceis pra nós. Mas também lembrei do pé de tomate alemão que nasceu numa gretinha entre o passeio e a parede da casa. Meu irmão amarrou o pezinho que se esparramava pelo chão com um barbante e ele foi pra frente. Já até colhemos tomates. Não foram muitos, mas estão deliciosos. Na mesma situação e no mesmo lugar nasceu um pé de mamão que estamos cultivando. E na parede, vejam bem, em um buraquinho na parede, nasceu um pé de "mulata na sala" que já está até florida. Estas a gente cultiva com gosto, porque eram uma das preferidas da mamãe. Aliás, essas sementes que teimam em germinar pelo quintal, devem ser ainda da época de mamãe viva, cuidando das suas plantas. Eu fui até o meu irmão que estava na varanda e lembrei ele disso: aconteça o que acontecer, sempre fica uma brechinha onde uma sementinha adormecida espera condições de germinar. Meu irmão abriu um sorriso. E meu dia se iluminou novamente.

Pós-aniversário

Ontem foi um dia bom. Meu irmão caçula apareceu com a esposa, filha e filhos. Minha irmã Tina e seu filho Léo também vieram. Fiz um bolinho de fubá, um pão caseiro, café e cantamos os parabéns para o menino. Ele tímido, segurava a vela acesa na mão. Peguei emprestado das velas dos santos. Sou uma agnóstica que acendo vela para as almas santas, às segundas-feiras. Aprendi acompanhando a capitã Pedrina durante o meu trabalho de campo para a tese de doutorado. Segunda-feira era dia de tratar das almas, dos tambores de candombe, dos santos, dos nkisis. Fiz e servi, muitas vezes, café para São Benedito, um dos meus santos preferidos porque é pretinho. Enfim, voltemos ao dia de ontem. Depois do café, vivemos horinhas de descuido sentados à mesa, na varanda. Enquanto as crianças, numa algazarra só, corriam pelo quintal e pela casa, a gente refletia sobre o momento político. Meu irmão mais velho é aposentado, mas continua trabalhando com seu caminhão velho, transportando areia, terra e pedras para construção e com sua pickupzinha velha, fazendo pequenos carretos. Ele está preocupado com o futuro. Como é dos mais velhos, passou pelos momentos mais difíceis, quando a família vivia abaixo da linha da pobreza. Hoje, vive com muita dignidade, apesar de ter pouquíssimas coisas materiais. Minha irmã Tina e meu irmão Nilson são os mais novos, foram ainda pequenos para BH, quando mamãe decidiu buscar uma vida melhor na capital. Passaram muitos perrengues. Tina, apesar de, na época, ser ainda uma criança, trabalhou de doméstica e babá. O caçula começou a trabalhar aos 15 anos de idade, numa loja de autopeças como estoquista. Depois virou bancário e hoje é funcionário federal.Também está preocupado, pois a oposição já falou em privatização. Ficamos lembrando dos tempos de UFMG e de como escolhemos nossos cursos numa época que não tinha cotas, Reuni, nem Prouni. Tinha que ser na universidade federal, porque não tínhamos dinheiro para pagar um faculdade particular. Mas tinha que ser um curso que não fosse muito concorrido e que possibilitasse, logo, o ingresso no mercado de trabalho. O que escolhemos? Licenciaturas, porque professor ganha pouco, mas não fica desempregado. Somos uma família de professorxs. Nilson fez educação física.Tina fez geografia e eu, ciências sociais. Nós duas fizemos não só a licenciatura, como o bacharelado para ampliar as possibilidades de trabalho. Tina é professora da rede pública municipal de BH, há mais de 20 anos. Ficamos lembrando da mamãe e pensando se na época dela tivesse bolsa família a diferença que teria feito em nossas vidas. Mamãe, empreendedora do jeito que era, seria uma daquelas milhares de mulheres que já devolveram o cartão do benefício porque melhoraram a renda. Nilson falava das possibilidades de escolher outros cursos, se na nossa época, tivesse as políticas públicas de educação que têm hoje. Ficamos pensando na geração que não viveu as décadas de 1980 e 1990 e não sabem o que é desemprego a uma taxa de quase 20%, inflação a 100% ao mês e desabastecimento nos supermercados. Discutimos o por quê de uma geração que viveu isso tudo e ainda assim, odeia Lula, Dilma e o PT. Não falo da frustração pelos erros cometidos, mas de ódio mesmo, ódio de classe. São pessoas do nosso círculo familiar e de amizade que ascenderam socialmente e que hoje, querem apagar as marcas de onde vieram. Eu, não! Eu tenho muito orgulho da minha história. Sempre tive! Meu pai, um lavrador, como ele orgulhosamente se definia, morreu sonhando com a reforma agrária. Baixinho e espirituoso, Seo Zezinho trazia no corpo as marcas de uma vida forjada no cabo da enxada, aparentava muito mais idade do que realmente tinha, por trabalhar durante décadas embaixo do sol. Minha mãe, embora analfabeta, lia o mundo como ninguém. Era muito mais crítica do que muitos que tiveram acesso a educação formal. Por isso, pra mim, a quebrada não é só um lugar geográfico, é existencial. É como o sertão de Guimarães Rosa, está dentro de mim. São seus personagens que me comovem. Arrepio dos pés à cabeça quando vejo os trabalhadores rurais sem terra com seus instrumentos de trabalho levantados, passando por uma porteira de alguma fazenda grilada e improdutiva. Choro de lágrimas quando vejo mulheres e crianças vivendo em situações precárias em ocupações de imóveis abandonados há anos, muitas vezes imóveis públicos que são verdadeiros ultrajes à função social da propriedade. É desse lugar que falo: mulher, negra e periférica. Por isso me emociono quando, junto com o menino, escuto as crônicas dos Racionais MC´s, ou as letras ácidas de Criolo e Emicida. A quebrada é minha terceira margem, minha canoinha, estou sempre atravessando, numa travessia que não se efetiva, que não tem fim. E sigo, como o velho do conto de Guimarães Rosa, "rio abaixo, rio a fora, rio a dentro", porque a terceira margem não se alcança nunca, mas é ela que nos move a remar.

Niver do menino

Foto de Dalva Maria Soares.
Foto de Dalva Maria Soares.
Foto de Dalva Maria Soares.
Foto de Dalva Maria Soares.
Textão de aniversário

Era 21 de abril de 2002. Completavam-se exatas 40 semanas, desde o dia 29 de julho, um domingo à tarde, quando você foi gerado. Lembro que imitei a filha de Antônia no filme “A excêntrica família de Antônia” e fiquei com as pernas para cima para ajudar os espermatozoides. Dito e feito! Na única tentativa, engravidei. O resultado do exame de sangue comprovava; "maior que 1000,0 mUI/mL. Você já era desejado há algum tempo, depois d'eu ter consigo, com muita terapia, desconstruir um discurso de uma vida inteira de que não queria ser mãe. Enfim, acontecera! A bolsa rebentou logo cedinho, mas você só nasceu, às 18:32h, de uma cesárea difícil. Justo eu, que me preparei durante meses para o parto natural. Não consegui! A dilatação foi insuficiente e quando, naquela tarde de domingo, há poucos km dali, no estádio Independência, os fogos anunciavam gol no jogo Atlético X Cruzeiro; na maternidade Santa Fé, eu ouvia o seu choro pela primeira vez. 51 cm, 3.770kg. Não é de surpreender estar medindo quase 1.80m e calçando 43. Quando você pousou os olhinhos em mim, eu só sabia repetir: que menino lindo! Que menino lindo! Quantas vezes encenamos esse gesto? Enquanto você coube no meu colo. Agora você não paga mais esse mico. Fiquei hiper, mega, super insegura. Não queria voltar pra casa. Tinha medo de não saber cuidar de você. Quando você chorava, eu desesperava: Será fome? Calor? Frio? Só consegui dar banho em você, semanas depois. Seu pai é quem cuidava, foi ele quem curou o seu umbigo. Depois, ficamos só nós dois e aí não teve jeito. Era uma aventura ir ao sacolão e ao supermercado. Era longe, dava trabalho, cansava. Na volta, eu deixava o carrinho de bebê com as compras, subia 4 lances de escada, deixava você no berço e corria para buscar as coisas, morrendo de medo que nesse tempo acontecesse algum imprevisto com você. Banho sossegada? Esquece! Prendia você no carrinho, que ficava dentro do banheiro, enquanto tomava banho para ir para o trabalho. À medida que você ia crescendo, conseguia se soltar, e às seis horas da manhã, se enfiava de roupa e tudo embaixo do chuveiro, junto comigo, sempre morrendo de rir. Voltar a estudar, com você ainda pequeno e receber bolsa, me permitiu cuidar de você. Quando você tinha 4 anos, mudamos para Viçosa para eu fazer o mestrado. Foi lá que você aprendeu a nadar, a andar de bicicleta, a se equilibrar em cima do skate, a jogar bola. Depois fomos para Florianópolis, desta vez para o doutorado. Lá você começou a ficar sozinho, aprendeu a se virar, fazer pipoca, miojo, a enfrentar o medo e a insegurança e a andar de ônibus sozinho. Lembra daquele dia, que voltando da casa do Cauê, você achou que tinha perdido o último ônibus e começou a chorar no terminal do Rio Tavares? Em Floripa foram tempos de mar, de aprender a brincar nas ondas com a prancha. Depois veio Lisboa e um salto de autonomia. Ir sozinho para a escola, atravessar a cidade no Electrico 28. Lembra daquele dia que você não tinha créditos no cartão e por duas vezes, o fiscal que nunca entrava no bonde, mandou você descer e você foi a pé pra casa? Foi seguindo os trilhos do electrico, debaixo de chuva, com medo de se perder. Em Lisboa você aprendeu a fazer algumas manobras no skate. Ia sozinho para a praça da Figueira. Lembra a primeira vez que você foi e que eu te liguei 18 vezes? E você lá, de boa, com os trutas que depois lhe arrumaram rodas, shapes e parafusos. Você cresceu, João! 14 anos! 14 anos! Chegamos até aqui! Chegou o tempo dos amores e das paqueras. “Mãe, você sabe que eu estou namorando, né”? Eu, que pensava que ia surtar o dia que ouvisse isso, fiquei de boa. Só consegui dizer: “Filho, a primeira lição é: se uma mulher disser não, é não, viu?” Chegamos até aqui. Sempre com pouca grana, mas com muito, muito amor. A convivência com você é a experiência mais fascinante que vivi e vivo. Tenho muito, muito orgulho do ser humano que você está se tornando. Sua indignação com a injustiça social, o carinho e cuidado que você tem com as crianças e com os animais, o respeito pelos mais velhos. Quase morro de orgulho, quando hoje, você segura, com a sua mão enorme a minha, na hora de atravessar a rua. Ou, quando no supermercado, você leva as sacolas mais pesadas, ou ainda nos shows, quando você procura o melhor lugar para eu poder ver tudo direitinho. “Tá de boa aí, mãe”? E ouço no meu ouvido você gritando junto comigo o nome do ídolo comum. 14 anos! E a expectativa de vivermos juntos mais um montão de coisas. Ainda tem show do Racionais e do Emicida que não conseguimos ir, tem Cuba para conhecer. E eu, agradeço aos céus, todos os dias, a oportunidade de, diariamente, aprender com você.  Feliz aniversário, João Pedro! Vou ali, ao supermercado, comprar um leite condensado. Hoje é dia de brigadeiro na colher. Te amo!

ES-PE-RAN-ÇA

"Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenes
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso voo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA..."

Este poema de Mário Quintana traduz os meus sentimentos nos últimos dias. Depois do show de horrores que foi a votação de domingo, minha esperança saltou do 12º andar. Durante todo o dia de ontem, essa meninazinha louca que é a esperança, ficou estirada na calçada. Incólume, mas sem forças para levantar. Outros desesperançados me questionavam: Dalva, o que a gente faz? Como reagir? E eu, ainda extremamente abalada com toda a misoginia daqueles homens de cabelos pintados de preto e de acaju, numa atitude desrespeitosa não só com a presidenta do país, mas com todas as deputadas, não sabia o que responder. As deputadas favoráveis ao impeachment eram chamadas de "lindas" quando se aproximavam do microfone e as contrárias eram agredidas verbal , psicológica e simbolicamente, numa tentativa de serem silenciadas. Não foi só a aprovação do impeachment que deixou minha esperança no chão. Foi o machismo e a misoginia daqueles deputados. Esse machismo que enfrentamos cotidianamente, dentro de casa, na rua, na convivência com os filhos, com os irmãos, com os amigos, e que foi escancarado na nossa cara no domingo. É disso que se trata também. Deve ser insuportável para aqueles machos terem que engolir uma mulher comandando a nação. (Tô com preguiça de ressaltar que tenho mil críticas ao governo Dilma). Eu só me dei conta que para além do impeachment (ainda não aprendi a escrever essa palavra, bendito corretor ortográfico), foi o show de machismo e a misoginia que me atirou do 12º andar. Só percebi isso, quando no final do dia, centenas de mulheres foram até o Palácio do Planalto dar uma abraço simbólico na Presidenta. Elas representavam ali, as milhões de mulheres que se sentiram desrespeitadas e agredidas no domingo. Foi lindo ver aquelas mulheres, de todas as idades, de todas as cores, de diferentes classes sociais, com uma mão segurando seus filhos e com a outra, segurando flores para a Presidenta. Dentro do Palácio, quando Dilma recebia o afeto das mulheres, eu contei oito crianças sentadas no tapete e um bebê no colo. Enquanto Dilma conversava com as mulheres, as crianças brincavam no tapete. A Secretária de Mulheres, Eleonora Menecucci, abraçava uma das manifestantes. Enquanto uma das lideranças lia o manifesto, Dilma consolava uma outra, que emocionada, não parava de chorar. Outra ainda, em certo momento, consertou a gola da roupa de Dilma, que se dobrou quando ela recebia as flores. Penso que o que falta é essa política do afeto e do cuidado, que vi ali nos gestos das mulheres e da Presidenta. Umas preocupadas com as outras e todas de olho nas crianças. Depois, Dilma desceu a rampa e foi cumprimentar as centenas de mulheres que esperavam do lado de fora. A minha esperança que tinha pulado do 12º andar no domingo, voltou a ser criança com o gesto desse abraçaço na Presidenta. Eu não só me senti representada por elas, como também me senti abraçada. O abraçaço serviu como um sussurro nos meus ouvidos. Eu, que estava estatelada no chão, quando indagada novamente, consegui enfim, murmurar devagarinho: Sim! Há ES-PE-RAN-ÇA!

Sigamos cuidando umas das outras e de olho em nossas crianças.

Retrocesso não!

O menino chega da escola e me pega chorando.
- "O que foi, mãe? É por causa da Dilma?"
- É filho, é por causa da Dilma. Mas é também por mim, pelas mulheres, por você e por milhões de pessoas". Minha irmã manda mensagem: "Dalva, tô triste demais. Como reagir?" Eu, que chorei o dia todo não sei o que dizer. É muito retrocesso. Enquanto o tanquinho bate as roupas, vou limpar a casa. Arrasto os móveis, jogo a água das roupas na casa, na varanda. Lembro da Clarice no seu conto sobre a esperança. É preciso facilitar o caminho da esperança, limpar tudo para que a aranha não coma o inseto. Enquanto limpo vou pensando em como foi minha vida nos últimos anos. De como mudou no governo Lula e Dilma. Entrei tardiamente na universidade num tempo que não tinha cotas, se tivesse teria facilitado um monte minha vida. Consegui terminar o curso graças a uma bolsa para alunos carentes da Fundação Universitária Mendes Pimentel - FUMP. Aliás, dos 6 irmãos que fizeram UFMG, todos foram bolsistas FUMP - carente I. Recebíamos 1 salário mínimo para estudar e preço reduzido no bandejão, além de assistência psicológica e odontológica. Depois de formada, quando arrumei um emprego, paguei cada centavo na maior satisfação. Sonhava com o mestrado que foi ficando distante por conta da luta pela sobrevivência. Só consegui voltar a estudar em 2004, no governo Lula. Fiz especialização, mestrado e doutorado com bolsa, sendo 9 meses em estágio doutoral sanduíche, em Lisboa. Lá conheci mais 2 amigos também fazendo sanduíche. Uma amiga fazia não o estágio, mas o doutorado todo na Universidade Nova de Lisboa. Conheci 2 professoras universitárias realizando pós-doutorado. Em cada canto que íamos encontrávamos jovens brasileiros em intercâmbio. Nos últimos anos, vários amigos passaram em concursos para os Institutos Federais e para as Universidades criadas no governo Lula. Tenho amigos lecionando no interior do RJ, no Piauí, em Diamantina, Ouro Preto, na UFMG, no Mato Grosso, no Pará. Eles fazem parte dos mais de 100 mil professores universitários e técnicos-administrativos contratados na última década. Por isso a minha tristeza. Penso no retrocesso que pode significar um governo Temer. Já falaram em austeridade e privatização, em diminuir a máquina pública, em cortar gastos na saúde e na educação, em fundir ministério da cultura com o da educação e da agricultura com o desenvolvimento agrário. Que as deusas tenham piedade de nós.

O afeto que nos salva nas horas brutas

Céu azul, 24º. As siriemas cantam lá no morro. A vida continua... Tento me animar, há tanta coisa pra fazer. Foco, Dalva! Foco! Roupa pra lavar, tese para corrigir, pontos do concurso para estudar. Dandarinha está aqui, enrodilhada aos meus pés. Frida está lá no sofá. Desisti de ficar mandando ela descer. Agora, além do filho e das 2 malas, tenho 2 cachorras. Ontem, li uma carta que escrevi para uma amiga. Há um ano, pensava em adotar a Frida, que vinha todos os dias em busca de comida e água. Era o menino abrir o portão para sair pra escola e ela entrava. Chegou grávida, teve 2 filhotes. Uma foi adotada, tem agora os cuidados e o afeto que merece. Dandarinha ficou. Me acompanha o tempo todo, Se vou lavar louça ou cozinhar, ela se enrodilha aos meus pés. É tão dengosa, mas é braba também. Já vigia a casa. É engraçado ver ela e a Frida, miudinhas, latindo a qualquer sinal estranho no quintal. Depois do show de horrores que foi domingo fiquei ainda mais sensível a qualquer sinal de afeto, dos bichos, inclusive. Um dia cheio de afeto pra nós.

Não vai ter golpe

Acordei com o coração apertado, uma sensação estranha que me remeteu para situações vividas em outras momentos onde também me senti assim. Em abril de 1984, eu ainda não podia votar, mas comprei no camelô, em BH, com meu salário de auxiliar de serviços gerais, uma camiseta amarela com os dizeres "Eu quero votar para presidente". Naquela época, o clima nas ruas era como hoje. A população mobilizada pressionado o congresso, muitos comícios, muitos artistas se posicionado. Apesar do clamor popular, a emenda "Dante de Oliveira" que tinha como objetivo restaurar as eleições diretas para presidente da República no Brasil, foi rejeitada pela Câmara. Não conseguimos os 2/3 de votos favoráveis e por muito pouco, a eleição de 1985 foi mais uma vez, indireta. Tancredo Neves X Paulo Maluf (candidato com apoio dos militares). Lembro que assisti a eleição pela TV. Lembro da atriz Beth Mendes, em um discurso emocionado, que contrariou a orientação do seu partido (PT) à época, e votou em Tancredo Neves, o que lhe valeu a expulsão. As expectativas em relação à Tancredo Neves eram altíssimas e foi na mesma proporção a frustração quando ele morreu, sem sequer tomar posse. Em seguida foram 4 anos de política econômica desastrosa do governo Sarney. Em 1985, eu então, com 19 anos, votei pela primeira vez em Luiz Inácio Lula da Silva. Mas Collor foi eleito com uma margem de cerca de 4 milhões de votos. Foram 4 anos administrando a frustração e sentido na pele os efeitos do governo Collor, para em 1989 viver tudo novamente, dessa vez no primeiro turno. Mais 4 anos lambendo as feridas e alimentando esperanças para tudo se repetir nos anos seguintes perdendo duas vezes para FHC. A cada campanha lá íamos nós para a praça, com nossas camisetas vermelhas. Lembro de um dia inteiro, debaixo de chuva na Praça da Estação esperando a hora para ouvir o Lula falar. Por isso, hoje, o coração está apertado. Nunca consegui viver alheia aos acontecimentos políticos do meu país. Fico feliz que muitos amigos meus estão juntos comigo desde aquela época e continuam colocando a cara no sol, sem medo de se posicionar. O dia promete! ‪#‎NãoVaiTerGolpe‬

terça-feira, 12 de abril de 2016

Tão igual e tão diferente

Hora boa a da caminhada. Coloco os fones e vou pensando na vida. Mudei mais uma vez o itinerário. Tô gostando disso, caminhos diferentes. Baldim é tão pequenininha que em alguns minutos é possível dar a volta na cidade. Hoje, vi o espaço de lazer do lar dos velhinhos por outra rua. Fico tentando recordar como era o lugar. Era um quintal imenso com muitas árvores frutíferas. Quando criança, meu sonho era brincar ali. Mas o dono tinha fama de muito bravo. Diziam até que ele tinha muitas armas e que não pensava duas vezes para atirar em alguém. Quando falo que Baldim é cheio de personagens que parecem saídos dos contos de Guimarães Rosa, tem gente que duvida. Isso é porquê não ouviram Maria conversando. Aí sim, iam entender o que é neologismo. Como puderam cortar aquelas árvores? Os quintais deveriam ser tombados como patrimônio histórico. Tá certo que fizeram uma boa construção, mas será que não tinha como preservar o verde? Eu, minha irmã e meu irmão ficamos brincando que vamos terminar nossos dias, lá. Antigamente era "Asilo de São Vicente de Paula"; hoje é "Lar da Boa Esperança". Modernizou e não foi só no nome. Quando passo pela praça, ainda não são 6 horas da manhã, mas as meninas já varrem as ruas. Meninas é jeito de falar, pois são todas minhas contemporâneas. Lembro delas na minha infância, com algumas cheguei, inclusive, a brincar. Em algum momento nossas vidas seguiram rumos diferentes. Penso que elas nunca saíram daqui. Algumas casas da minha infância estão em ruínas; outras, que eram da elite da época estão feias, mal cuidadas. Empobreceram? Muitas construções novas, cheias de vidro. Alguns ascenderam. O tiozinho passa a caminho do trabalho em sua bicicleta. A capanga reciclada de alguma calça jeans velha vai atravessada no peito, dentro, a marmita. O filho da senhora que nos acolheu no dia em que papai quebrou toda a casa, também passa de bicicleta. Lembro dele naquele dia terrível, nos olhando com ar piedoso, enquanto sua mãe colocava açúcar na água retirada do pote, na caneca esmaltada. "Bom dia, Dalvinha!, ele me cumprimenta. Dalvinha... Acho tão estranho uma senhora ser chamada de Dalvinha. Ele também já é um jovem senhor. Envelhecemos todos. Quando passo pela padaria já tem alguns homens na porta. Não os conheço. Sinto que olham minha bunda quando passo, apesar da camiseta bem cumprida, tampando tudo. Os cachorros dormem enrodilhados no meio da rua. No lote vago, um outro, brinca sozinho com um pedaço de espuma. Dois me acompanham. Eu ameaço apanhar uma pedra no chão e eles desistem. Nem olho pra trás. Eu, hein? Não dou conta daqueles olhares sedentos por um sinal de afeto. Eu não, não troco mais segredos com nenhum cão, não quero me converter a mais nenhum. Depois que devolvi a "guarda" do Scooby para meu irmão, ainda me sobraram dois para cuidar, Fridinha e Dandara. Quando passo pela praça novamente, já está tudo limpo. As meninas não brincam em serviço. Um adolescente com uniforme do colégio entra na padaria. Nas mãos um tabuleiro coberto por um pano de prato, branquíssimo. Imagino que sejam pastéis. Deve estar cumprindo a obrigação antes de ir para a escola, como fazíamos quando criança. Lembro do tempo em que eu levava bolo e pipoca no grupo escolar. Minha irmã que estudava de manhã, ficava encarregada de vender, recebia o dinheiro e dava o troco. Eu, ficava segurando a bandeja. Foi assim que mamãe nos criou. Baldim continua tão igual, e ao mesmo tempo, tão diferente.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Inveja

Hoje eu passei cerca de 1 hora na fila dos correios. Como todos os caixas eletrônicos da cidade foram estourados, só nos restou a agência dos correios para alguns serviços de banco postal. Hoje, a agência estava lotada, pois era dia de pagamento. Mas não havia dinheiro. Segundo a moça do caixa, eles têm evitado de ter muito dinheiro em caixa, justamente por causa dos roubos. Assim, duas filas foram organizadas, uma para pagamento e depósitos e outra para saque. À medida que o dinheiro ia entrando, a moça ia realizando os pagamentos. A certa altura, eu fechei o meu livro e fiquei ouvido as conversas. Ninguém falou em Dilma, Temer, Cunha ou Lava Jato. É como se existisse um mundo que passa ao largo de tudo o que acontece em Brasília. Agora à tarde, Maria veio me visitar. Como nunca chega de mãos abanando trouxe pra mim, uma abóbora de sua horta. Me contou o porquê de seu sumiço, me mostrando a cicatriz de um estrepe que lhe entrou perna adentro. "Eu que não sou doida de ir ao posto de saúde. 'Magina? Chega lá eles iam abrir minha perna toda e eu ia ficar entrevada dentro de casa, sem jeito de ir na missa e na procissão." Maria não sabe ler as letras, nunca frequentou escola. Foi com seus conhecimentos de medicina popular que cuidou da perna estrepada. Óleo de mamona, bicarbonato e folha de fumo. Me mostrou orgulhosa o machucado sarado. Eu li pra ela a parte dos agradecimentos da tese onde ela aparece com suas sementes de milho, quiabo, os ovos caipira, o colorau feito com urucum do seu quintal, as sacolas com milho verde, quiabo e jabuticaba que tantas vezes trouxe pra mim, durante o período da escrita. Seus olhos marejaram. Maria traz singeleza para os meus dias. Adoro ouvir suas histórias. Algumas me assustam, pois ela realizou durante muitos anos um trabalho análogo ao de escravo. Hoje, Maria é uma mulher livre. Sua preocupação é a falta de chuvas que está castigando sua plantação de abóboras e suas galinhas que, empesteadas, pararam de botar. Maria também não falou em golpe, impeachment ou sobre o muro da vergonha que ergueram em Brasília. Fiquei com inveja de Maria.

Chimamanda N. Adichie

Hoje, eu consegui organizar um pouco os meus papéis, cadernos e livros. Pra mim é extremamente simbólico quando consigo fazer isso. Aos poucos, o ano de 2016 vai começando pra mim. A defesa da tese significou a retirada de um grande peso dos ombros. Ao tentar organizar os livros, percebi quantas obras interessantes adquiri, ainda que compradas usadas na estante virtual. Sonho com o dia em que terei todos os meus livros juntos de mim. A maioria está na casa da minha amiga Mariza, mas tenho também, alguns ocupando espaço no armário da minha irmã, Luia. Essa é uma das desvantagens de ser uma "sem casa". Eu estava com quatro caixas de papelão ocupando os bancos da cozinha, que agora, estão liberados. Às vezes me irrito pela falta de funcionalidade dessa casa. Dia desses, um visita me perguntou: "como sua mãe conseguiu criar 10 filhos aqui?". Expliquei pra ela que na época, a casa era menor ainda. Minha tese foi escrita na mesa da cozinha, que é onde fica meu notebook, junto com os vidros de pimenta do meu irmão, a lata de pão e o óleo aromatizado com manjericão da horta. Meus cadernos e notas de campo estão todos manchados de gordura e molhos. Nos dias em que o astral começa a baixar e eu fico ansiosa por um emprego e um cantinho meu, como sempre, a literatura vem e me salva. Desta vez, foi Chimamanda e seu "Hibisco roxo". Quando Kambili, a protagonista, foi com seu irmão Jaja visitar a tia paterna, ela ficou assustada com o contraste entre a sua casa grande e confortável e a da tia, uma professora universitária, que mora em uma pequena casa no campus da universidade, onde cria 3 filhos. No quarto de tia Ifeona, a cama divide espaço com engradados e sacos de arroz; na mesa onde a professora prepara suas aulas, os livros ficam ao lado de latas de leite e chocolate em pó. Malas ficam empilhadas no canto, junto a duas cômodas, um espelho, uma escrivaninha e uma cadeira. Mas, apesar da vida de privação das coisas materiais, Kambili se assusta com a maneira como seus primos são criados, com liberdade, com riso, com música. Aí eu lembro da passagem do livro, onde Amaka provoca a prima e diz: "- "Eu quase só ouço músicos nativos. Eles são socialmente conscientes; têm algo a dizer." Então, eu me acalmo, e em homenagem a Amaka, coloco Fela Kuti e Onyeka para tocar e uma atmosfera mágica toma conta da cozinha.

domingo, 10 de abril de 2016

Todo mundo tem a sua hora

Daqui a 10 dias o menino completa 14 anos. 14 anos! Fico pensado o que foi a nossa vida nesse tempo. Todo ano quando se aproxima o aniversário dele é assim. Fico refletindo sobre os acontecimentos desde que ele chegou. Quando ele nasceu, em 2002, eu tinha um emprego, um pequeno apartamento financiado pela Caixa Econômica e um relacionamento em crise, que acabou cerca de cinco meses depois. Em 2004 senti necessidades de mudança e aluguei uma casa com quintal, pé de manga, jabuticaba e jardim. Fui então, demitida do trabalho. O acerto na empresa me possibilitou pagar as contas por alguns meses. Resolvi voltar a estudar. Fui fazer uma especialização. Quando o dinheiro acabou, transferi o financiamento do apartamento e fui correr atrás de trabalho. Virei educadora infantil na prefeitura de BH e professora temporária na prefeitura de Contagem. Mudei da casa com quintal para uma quitinete para reduzir os gastos. Nesse meio tempo, fui chamada para substituir uma professora na Puc Minas. Me convenci que a sala de aula era o meu lugar. Decidi fazer o mestrado e em janeiro de 2007, mudamos para Viçosa. Lá, fui professora substituta na UFV e dei aulas numa faculdade particular. Éramos felizes, vida tranquila, passeios de bike no campus, o menino estudava em uma boa escola. Decidir fazer o doutorado, desta vez em Florianópolis. Em 2010, desfizemos das nossas coisas: as bikes, o guarda-roupas de pátina (meu xodó), a estante linda dos meus livros, o fogão e a geladeira seminovos. Lá fomos nós para o sul, morrendo de medo do frio. Em Floripa, mudamos três vezes de casa, o menino duas vezes de escola. Em 2013, voltamos para BH para fazer o trabalho de campo da pesquisa. Minha irmã nos acolheu. O menino foi viver a primeira experiência na escola pública. Surgiu então, a oportunidade de um estágio doutoral em Lisboa. Obrigação moral de aceitar. Fazer projeto, tirar passaporte, arrumar casa pra morar, aceite de orientador no exterior, aguardar bolsa, comprar passagens e em setembro de 2013, chegávamos em Lisboa. Vistos, agrupamento familiar, escola pro menino, seminários na Universidade. Nove mesmo se passaram voando e chegou a hora de voltar pra casa. Mas, onde mesmo era a casa? Optamos por Baldim, afinal um décimo dessa casa que foi de mamãe e uma pequena tira desse quintal são meus também. O desafio agora era escrever a tese. Tese escrita, defendida, elogiada. Cá estamos, estudando para concurso, correndo atrás de trabalho. Quando o astral baixa, o menino me consola: "não esquenta mãe, não temos dinheiro, mas temos cultura." Olho pela janela e vejo o morro à minha frente, meu conhecido desde a infância, quando deitada no chão de cimento vermelho do alpendre da casa do vovô, lia meus livros. Era o capim meloso balançado pelo vento que me trazia de volta para a realidade quando a leitura de "O médico e o monstro" ficava tensa demais. Hoje, estou como a mãe de Miguilim: "sempre pensando que lá por detrás dele acontecem outras coisas, que o morro está tapando de mim, e que eu nunca hei de poder ver..." Aí, outro personagem de Guimarães Rosa vem e me consola. Augusto Matraga me lembra que todo mundo tem a sua hora e a sua vez, e que a minha há de chegar.

É a vida

Hoje mudei o itinerário da caminhada. Abandonei o caminho pedregoso do cerrado e fui para o asfalto. De vez em quando é preciso mudar, ver as coisas sob outra perspectiva. Fui caminhar na rua onde nasci. Não é rua grande. Passa em frente à igreja e termina sem saída. Nasci na casa de número 11, mas fui criada no número 25. O lote vago, ao lado, onde vovô plantava fumo e milho, agora é uma grande construção com várias salas. Uma delas é onde a banda - Corporação Musical Santa Cecília, ensaia. Duas ou três vezes por semana, da cozinha de casa, escuto trompetes e sax. O posto de saúde virou câmara dos vereadores. O quintal onde havia um enorme bambuzal, agora é um espaço de lazer dos velhinhos do "Lar da Boa Esperança". A casinha onde D. Isaura me ensinou a fazer crochê e onde suas filhas ensaiavam as pastorinhas, resiste espremida entre duas outras construções. Em lugar privilegiado na praça, fica a igreja, tantas vezes reformada. Acho que original mesmo, só as torres com os sinos e o alto-falante de onde se ouve, todos os dias, a hora do ângelus. Ou os avisos do Zé da Bilinha (notas de utilidade pública e de falecimento) ou ainda os cantos chamando pra missa aos domingos. O padroeiro, São Bernardo, impassível, observa tudo. A casa da esquina ainda possui a garagem onde ensaiávamos nossas peças de teatro. "Quem matou o fazendeiro?" Carreguei durante algum tempo a frustração de não ter conseguido um papel no teste de improviso. Acabei participando como figurante. As irmãs Rosali e Roseni escreviam, dirigiam e ensaiavam os "atores". Até cobrávamos entrada. A dona da casa emprestava um lençol que servia de cortina. Rosali, hoje é professora de português e literatura no colégio e realiza saraus com seus alunos.
Nos fones de ouvido emprestados do menino, Milton canta:
"E assim chegar e partir...
São só dois lados
Da mesma viagem
O trem que chega
É o mesmo trem
Da partida..."
Vim escrever a tese. Tese escrita e defendida, começa a crescer em mim, uma vontade de partir, novamente.
Milton continua:
"Tem gente que vem e quer voltar
Tem gente que vai, e quer ficar
Tem gente que veio só olhar
Tem gente a sorrir e a chorar...
E assim chegar e partir...
São só dois lados
Da mesma viagem
O trem que chega
É o mesmo trem
Da partida...
A hora do encontro
É também, despedida
A plataforma dessa estação
É a vida desse meu lugar
É a vida..."

domingo, 3 de abril de 2016

Domingo

O vestido de chita de florzinhas me lembrou mamãe. Mesmo feitio: mangas, gola, bolsos e alguns botões. Nos pés uma sapatilha moleca preta e meias brancas que iam até um pouco acima da canela. O lenço florido amarrado na cabeça deixava escapar uns poucos cabelos brancos e crespos.
- "Ô minha filha, cê faz favor de ver quanto custa esse frango aqui, pra mim? É que a vista não tá boa mais não. Faz é tempo!"
Informei o valor. Ela retirou um pacotinho que carregava junto aos seios. Um saquinho plástico com algumas notas dentro.
- "Faz favor de ver se esse dinheiro dá para pagar"? Contei as notas amassadas.
- "Dá sim, senhora. E ainda sobra troco."
- "Será que dá pra levar um refrigerante?"
Fiz as contas.
- "Dá, sim!"
- "É que os menino vem almoçar comigo hoje. E criança, cê sabe, como é, né? Gosta de uma porcaria... Tenho cinco netos..
- "Que beleza! Dá, sim senhora. Dá pra levar o frango e o refrigerante. E sobra até para umas balinhas." Eu disse, sorrindo.
- "Deus lhe pague, viu? Ocê é uma moça muito boa. E bonita!"
- "Amém. Obrigada."
E saiu num passinho curto, arrastado, me deixando com o coração apertado, com uma saudade de ter mãe...