segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Agora, eu sei...

Para o amigo que me emprestou lentes novas para olhar o mundo...


E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito.
- Olha, agora! Miguilim, olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. 



Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo...





O senhor tinha retirado dele os óculos, e Miguilim ainda apontava, falava, contava tudo como era, como tinha visto. 
Coração de Miguilim batia descompasso, ele careceu de ir lá dentro, contar à Rosa, à Maria Pretinha, a Mãitina.


- Você está triste, Miguilim? - Mãe perguntou.
Miguilim não sabia. Todos eram maiores do que ele, as coisas reviravam sempre dum modo diferente, eram grandes demais. Miguilim não sabia. Fazia peso pra não soluçar. Sua alma até o fundo, se esfriava. 


Mas Mãe disse:
- Vai, meu filho. É a luz dos teus olhos, que só Deus teve poder para te dar. Vai. Fim do ano, a gente puder, faz a viagem também. Um dia todos se encontram...


O doutor chegou. - Miguilim, você está aprontado? Está animoso?
Mas, então, de repente, Miguilim parou em frente do doutor. Todo tremia, quase sem coragem de dizer o que tinha vontade. Por fim, disse. Pediu. O doutor entendeu e achou graça. Tirou os óculos, pôs na cara de Miguilim. E Miguilim olhou para todos, com tanta força. Saiu lá fora. Olhou os matos escuros de cima do morro, aqui a casa, a cerca de feijão-bravo e são-caetano; o céu, o curral, o quintal; os olhos redondos e os vidros altos da manhã. Olhou mais longe, o gado pastando perto do brejo, florido de são-josés, como um algodão. O verde dos buritis, na primeira vereda. 


O MUTUM ERA BONITO! 


Agora ele sabia.


Guimarães Rosa, em Miguilim.













domingo, 18 de dezembro de 2011

דוד, do hebraico, literalmente "querido", "amado".




Acordaram estranhos! A casa não tinha aquela movimentação que por uma semana  foi habitual. Nos últimos dias, ela ficava na cama, curtindo a preguiça, sentindo o cheiro do café que se espalhava pela casa. Ouvia o barulhinho do papel da sacola do pão sendo colocado sobre a mesa e se permitia continuar deitada. Foram dias em que ela  teve alguém para dividir as pequenas grandezas do cotidiano: uma ida à feira ou ao supermercado, a preparação do almoço e do jantar, o roteiro dos passeios do dia e os  "divãs" que aconteciam na mesa da cozinha. Hoje, não se ouviu o apito da chaleira, nem teve a expectativa das fotos produzidas, muitas delas, antes mesmo do dia clarear.
"Morando num lugar como esse, você tem obrigação moral de acordar bem cedinho, e ir até a praia ver o sol nascer", disse ele, em uma das suas inúmeras recomendações.
-"Vou sentir falta dele", disse a mulher.
O menino também confessou:
- "E eu, não? Passeamos todos os dias, tive aulas de fotografia, e até doce ele fez"!
Foram dias com cara de domingo: comida diferente, sobremesas e muito passeio. Mas, enfim, hoje é mesmo domingo e tem "Feira do cacareco" na Armação. Dia perfeito para colocar em prática algumas das muitas lições aprendidas com um menino com nome de estrela e de rei que passou por aqui...

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

"Me ajuda a olhar..."

Para Davi Marques


Ele tem dois olhos como todo mundo, mas são olhos diferentes. A cada noite, quando vai dormir ele os guarda em um baú  cheio de poesia. E, ao acordar,  vai retirando, um a um,  poemas feitos em flashes.


Cada um é um convite a uma nova mirada.


- Veja! Nos diz ele, silenciosamente. Há que botar reparo nas coisas: na cidade, nas pessoas, nas flores, nos bichos, nos objetos.  Mas para isso não se pode ter pressa.




"Só os homens lentos vêem a cidade".




Essa foi a grande lição que aprendi com esse menino que tem olhos de poeta.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

As duas faces da mesma moeda

Lá iam eles, a mãe e o menino a cainho da escola. Iam numa só bicicleta, ele na garupa.
A mãe, fazendo esforço nos trechos que exigiam mais, já que o menino estava cescendo e já alcançara os 40 kg. Nas descidas ela agradecia feliz não precisar fazer tanto esforço. Foi então, que o menino observou:
- Mãe, os trechos que você mais gosta na ida são aqueles que você reclama na volta. Engraçado, o bom e o ruim estão juntos, no mesmo lugar...

sábado, 3 de dezembro de 2011

E dezembro chegou...


Para Maria Luca, Didinha Maria, D. Fina e minha irmã Neném.
Em memória de minha mãe, D. Dulce e da Bilinha (o coração mais doce que já conheci)


 Então...
É hora de tirar os bichos guardados: boi, leão, elefante, urso, pavão; bichos que nem tem nos Gerais. Bichinhos recolhidos durante anos, durante uma vida inteira e guardados enrolados em jornal. Só saem das caixas nessa época do ano.
É hora de tirar também, Nossa Senhora, São José, os Três Reis e os Pastores. Além, é claro, da Estrela e do Menino Jesus, este, só é colocado na noite do dia 24 para o dia 25.
Depois, endurecer os panos com grude, carvão e vidro moído, pintá-los com anil e tinta amarela para formar um verde bonito, manchado, como os do mato em rebroto e forrar tocos e caixas para fazer as serras e formar a Gruta.
Também é preciso plantar o arroz numa latinha e deixar nascer no escuro para crescer com aquela cor amarelada.
Não se pode esquecer do prato fundo com água para formar a lagoa para os patinhos e peixes.
Depois de pronto é só pôr o Menino Jesus na Lapinha, na manjedoura, com a mãe e o  pai dele e o boizinho e o burrinho. Colocar também um abacaxi-maçã para o presépio todo cheirar bonito.
Depois, a cada dia, colocar os Três Reis mais adiantados um pouquinho, no caminho da Lapinha, todo dia um pouco mais perto: um Rei Branco, outro Rei Branco, e o Rei Preto, para só no dia 6 de janeiro os três chegarem .
Aí é só esperar pela visita da Folia de Reis para reverenciar o Presépio.

Inspirado em Miguilim de Guimarães Rosa.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

 


A poesia do cotidiano

Os chuchus colhidos na horta de D. Maura e seu Otávio e preparados para o almoço me lembraram o poema de Adélia Prado:

"Uma vez quando eu era menina, choveu grosso com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora. 
Quando se pôde abrir as janelas, as poças tremiam com os últimos pingos. 
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema, decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora, trinta anos depois. Não encontrei minha mãe. 
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha, com sombrinha infantil e coxas à mostra. Meus filhos me repudiaram envergonhados, meu marido ficou triste até à morte, eu fiquei doida no encalço. 
Só melhoro quando chove."

Agora vou lá, na vizinha, pedir um punhadinho de fubá emprestado para fazer o angú e completar o poema. 
Ops! O cardápio!