quarta-feira, 30 de novembro de 2016

26 de novembro de 2016. Que dia para estar em Cuba!



26 de novembro de 2016.
Morre Fidel Castro!
Que dia para estar em Cuba!
Era meu último dia na Ilha. Acordei cedo, tomei banho e enquanto tomava o café, liguei a TV. Um programa de entrevistas falava sobre Fidel e a revolução. Ri, pensando em como Fidel e revolução são temas diários nas conversas dxs cubanxs. Em seguida, Raul Castro entrou em cadeia nacional e anunciou a morte do irmão. Terminou sua fala, erguendo o braço com o punho fechado e falando com firmeza e emocionado: "Hasta la victoria siempre"! Bordão do Comandante. Tomei um susto e comecei a chorar. Não acreditei no que ouvia. Mudei de canal. Era verdade!
Fui até o hotel "Habana Livre" me conectar à internet. Em todos os hotéis que entrei, ninguém nunca me abordou apesar da minha cara de "tia do cafezinho". Nenhum segurança veio atrás de mim. Sentava ao lado dos gringos naqueles sofás confortáveis, enquanto acessava a internet. A internet é um problema sério em Cuba. Problema para nós que vivemos 24 horas conectados, não para os cubanos. O sinal de wifi existe em locais públicos como praças e em hotéis, mas paga-se caro para ter acesso. 2 CUC a hora, cerca de 2 euros. Mas os cubanos acessam, não tanto quanto à gente. As praças ficam cheias de gente conectada, principalmente jovens.
Queria me encontrar com Ariele, jornalista e antropóloga que conheci no congresso. Era meu último dia, queria me despedir e o único jeito de nos comunicarmos seria pela internet. Era torcer para ela estar on line. Quando entrei no facebook as notícias vindas do Brasil já davam conta da morte e xs amigxs falavam da coincidência d'eu estar em Cuba, justamente nesse dia. Queriam minhas impressões. Consegui falar com Ariele e combinamos de nos encontrarmos na "Plaza de la Revolución", às 13h.
Retornei ao apartamento onde estava hospedada e na esquina já ouvi a movimentação em frente à "Universidade de Habana", onde Fidel estudou. Estudantes, professores e funcionários já se mobilizavam em homenagens. Me informei e dava para ir a pé até a praça encontrar com Ariele. No caminho um cubano puxou assunto. Citava vários países para descobrir de onde eu era: "Colômbia? Panamá? Peru?" "Não, brasilena", falei no meu portunhol. "Parece cubana", ele disse. Eu, me sentindo elogiada, fui conversando com ele e falando sobre a coincidência de estar em Cuba nesse dia. Ele me falou da revolução e de Fidel. No caminho encontramos com um senhor que lutou na revolução, amigo de Fidel. Fui apresentada a ele. O senhor abriu um sorriso quando ouviu que eu era brasileira, mas pediu desculpas e disse que não tinha condições de conversar comigo naquela hora. "Um outro dia", ele disse. Emocionado e cabisbaixo seguiu seu caminho com seus passos lentos de ancião.
O Cubano, um músico rumbeiro me acompanhou até a "Plaza de la Revolución" e riu de mim, por não ter marcado um local exato para encontrar com Ariele, "A praça é enorme e cheia de turistas. Você não vai encontrá-la". Felizmente não foi difícil. Quando comentei com Ariele da movimentação na Universidade de Havana, jornalista que é, ela quis ir imediatamente para lá, pois queria entrevistar as pessoas. Pegamos um taxi cubano (os taxis são diferentes na Ilha. Os cubanos pagam em moeda local, bem barato e os turistas pagam em CUC, bem mais caro). Como Ariele fala bem o espanhol, sempre que estava com ela pegávamos taxis cubanos. É possível viver em Cuba gastando pouquíssimo!
Quando chegamos, um casal de jovens descia as escadas da Universidade. Sugeri a Ariele que conversássemos com eles, pois ouvi, a vida inteira, que os mais jovens, em Cuba, não gostam do Regime, nem de Fidel e que sonham em abandonar a Ilha. O rapaz usava uma camiseta do Che Guevara e a menina tinha uma adesivo do Fidel colado na roupa. Na mão um cartaz quando da celebração de aniversário de Fidel. Ambos estavam emocionadíssimos. Disseram que Fidel era a Revolução. A menina falou que o seu sentimento era de orfandade. Tiramos uma foto com eles. Nos aproximamos de um senhor que, emocionadíssimo, disse que não tinha condições de conversar. Ficou ali, com um olhar perdido, enquanto ouvia as músicas que saíam dos altos falantes da Universidade. Depois subimos as escadas e me chamou a atenção uma jovem que trazia o nome de Fidel escrito no rosto. No braço, uma fitinha preta em sinal de luto. Melissa,18 anos, estudande de Direito, com uma consciência política de fazer inveja a muito marmanjo. Entre lágrimas ela falou de como era a relação de Fidel com a juventude, uma das prioridades do governo. Falou da bolsa que todo graduando recebe para estudar. TODO GRADUANDO! Falou das prioridades de investimento do Comandade, diante do pouco dinheiro: educação, saúde, tecnologia. Melissa disse que estava em uma festa, que foi interrompida assim que chegou a notícia da morte de Fidel.
Conversamos ainda com uma cubana, tradutora, que vive há anos na Alemanha. Emocionada, ela falava da admiração por Fidel e do seu amor por Cuba. Depois fomos até a praça nos conectar e mandar notícias para o Brasil. Ariele ainda conversou com alguns senhores que estavam por ali. Somente um, disse que pra ele era indiferente, que estava se sentindo normal. Depois fomos até o apartamento onde eu estava hospedada tomar um café. O casal que me alugou o apartamento chegou em seguida. Ela, agrônoma, trabalha numa ONG com agricultura familiar. Já viajou por mais de 1 dezena de países a trabalho. Contou indignada de como viu crianças trabalhando na agricultura na Argentina e vendendo limões nos semáforos na cidade de Rosário. Disse que isso nunca seria visto em Cuba. Seu marido, que trazia no bolso um pen drive com as músicas do grupo de rap cubano "Los Orishas" de presente para o menino, chorou por várias vezes. Sua esposa também. Ficamos ali, os 4, naquela típica sala cubana chorando, ouvindo a manifestação que chegava da Universidade de Habana, onde Fidel, em suas próprias palavras, se tornou revolucionário.
O que vi nas ruas de Cuba foi comoção. Todos esperavam a morte de Fidel, pois já estava com 90 anos e há 10 se afastara da presidência por problemas de saúde. Mas, o fato de não ter mais o Comandante, fisicamente, mexeu com a mairoria dxs cubanxs. Quando eu perguntava sobre Cuba ser uma didatura e Fidel um ditador, ouvi: "Que povo apoiaria um ditador"? A jovem Melissa que marcou o corpo com o nome do Comandante, me disse, entre lágrimas: "Defeitos tinha, erros cometeu, mas amávamos essa pessoa!".

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

"O dia deu em chuvoso"...

Queria saber escrever bonito como minha amiga Regina Pereira. Ou que o espírito do poeta mineiro, Donizete Galvão, me visitasse ou ainda, que a entidade que sopra poemas no ouvido de Adélia em sua cozinha, em Divinópolis desse o ar da graça por aqui. Ou que me baixasse inspiração como a que visitava Cora Coralina enquanto ela fazia doce na velha casa da ponte.
Mas nada...
Criolo canta pra mim e me ajuda:
"E por mais que eu tente explicar, não consigo
tornar concreto o abstrato que só eu sinto
É como se eu ficasse aqui nesse cantinho
Vendo o mundo girar num erro abusivo"...
"Viver é muito perigoso".
Pai mata filho e pessoas invadem o Congresso exigindo intervenção militar. E eu aqui, tendo epifanias, enquanto olho pela janela azul de tramela.
A chuva deixa o morro branquinho.
O pé de mamão que cresce na janela da cozinha ensaia algumas florzinhas. Não sei se renderá frutos, mas suas folhas têm funcionado como uma espécie de toldo que impede que a chuva entre pela casa a dentro, molhando tudo. Com a janela aberta vejo a algazarra dos passarinhos. Pássaro gosta de chuva, já reparou? Agora a pouco uma andorinha estava quietinha no muro, no meio do maior aguão. Os periquitinhos verdes passando em bando, fazendo algazarra. E os pardais cantado um canto de contentamento, bem diferente do sabiá quando tá chamando chuva, no meio daquele calorão.
Nos galhos do pé de mamão, os pingos da chuva ficam suspensos naqueles caules ocos que usávamos para soprar bolinhas de sabão na infância.
Hoje, a fábrica de doces faz goiabada. O cheiro chegou até aqui e se juntou ao do capim cidreira estimulado pela chuva que cai sem parar, desde cedinho.
A cidade é um silêncio só.
Mentira!
Tem o som da chuva, que hoje veio encarreirada, me fazendo lembrar do poema de Adélia e me inspirando o cardápio do almoço: "chuchu novinho com angu e molho de ovos".
Bora separar o fubá.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Leia Clarice!

Odeio baratas, mas já aprendi a enfrentá-las. Clarice me ajudou. Foi lendo "A paixão segundo GH" que compreendi que a barata esfrega em minha cara a minha solidão. Sem ter a quem recorrer, sou obrigada a enfrentar o nojo, a repugnância e o terror e matar as minhas próprias baratas. Já consigo fazer isso bem.
Essa madrugada vivi outro terror. Dessa vez foi um rato, enorme. Acordei com um barulho na minha caixa de livros. Pressenti, é o rato. Ele já havia dado sinais de estar nos visitando. Fui em busca de ajuda no quarto do menino. Afinal, aquele 1,80m tem que servir para alguma coisa. Desafiado, ele veio em meu socorro. Eu decidida, informei:
- "Pra esse quarto eu não volto".
- "Tudo bem, mãe. Vamos fazer assim. Eu fecho a porta do seu quarto, você dorme no meu e amanhã Tio Zezé dá um jeito." Concordei. Só que, enquanto ele puxava a porta para fechá-la, o danado do rato resolveu sair do quarto. Em pânico, eu comecei a gritar. O menino se manteve firme por alguns segundos, até que o bicho foi em sua direção, passando em cima de seu pé. Aí, éramos dois na gritaria. Os dois, em cima da mesma cadeira, abraçados e gritando. Do outro lado do muro o vizinho acordou assustado.
- "Tá tudo bem aí?"
"Tá não!", respondi. "Temos aqui, um rato".
Do seu barraco no fundo do quintal, meu irmão acendeu a luz.
- "Que que aconteceu?"
- "Um rato, Zé!
- "Amanhã eu resolvo isso."
- "Como assim, amanhã?"
A saída foi me trancar no quarto do menino e dormi na mesma cama com ele. Abraçados, os dois.
Pela manhã fui ler Clarice, "Perdoando Deus", conto em que a personagem se vê às voltas com um rato morto, em Copacabana. "Minha vulnerabilidade de criatura", é isso que o rato me mostra, minha fragilidade. Como escreve Clarice, "o mundo também é rato", "o rato existe tanto quanto eu". O mundo não é só feito das florzinhas que enfeitam a minha janela, todas as manhãs. Tem ratos, também! E precisamos aprender a enfrentá-los. É certo que ele vai voltar, mas não estarei desprevenida. Que venha! Estarei pronta, esperando.
Quando você não tiver a resposta, quando nada fizer sentido, leia Clarice. Pra mim sempre dá certo.

Ninguém vai nos tombar, não!

Como o segundo turno em BH era entre o capeta e o demônio, justifiquei meu voto em Baldim, fui catar gabiroba no cerrado e depois fui almoçar com parte da família. Como a família é grande, qualquer almoçinho já junta pelo menos cinco irmãos. Uma das minhas irmãs mais velhas estava presente. E é sempre muito emocionante ouví-la. Ela é das pessoas mais amorosas e generosas que conheço, com um senso de justiça do tamanho do mundo. Foi das primeiras a sair do interior e vir para a capital. Hoje, ela me contou que não queria vir. Vinha ser empregada doméstica, embora esse não fosse seu desejo. Segundo ela, quando o ônibus entrou na avenida Pedro I, na região de Venda Nova, zona norte de BH, ela desceu e foi para casa de uma antiga vizinha nossa, que anos antes mudara para a periferia da capital. O "futuro patrão" a espera até hoje. Minha irmã sempre foi "meio rebelde", sempre assumiu seus desejos, sempre quis fazer a sua história. Casou e teve cinco filhxs. Durante muitos anos sua vida foi dedicada à família. Só realizou o desejo de entrar na Universidade [pública, numa época que não havia cotas o que teria facilitado um monte a nossa vida] depois dos 50 anos. Foi fazer biblioteconomia, não porque era seu desejo, mas porque não era um curso tão concorrido. Estudou com uma de suas filhas. Se formaram bibliotecárias. Dxs cinco filhxs, 4 formaram em universidades públicas. Uma se formou em estatística e trabalha na área; a caçula é agrônoma e está no doutorado; outra está cursando direito e a que estudou com a mãe, ainda fez uma segunda graduação e faz um trabalho lindo na biblioteca na cidade onde mora que já foi até premiado, em Brasília. Essa geração dos nossxs filhxs, apesar de todas as dificuldades, já tiveram uma vida bem melhor do que a nossa. Minha irmã lembrou da infância e de uma das inúmeras mudanças. Esta, feita num carro de boi emprestado, com os poucos pertences enrolados em trouxas, dividindo espaço de papai e mamãe com xs filhxs. Seguiam para as terras de um grande latifundiário da região, onde papai trabalharia como meeiro por alguns anos. Desse período os irmxs mais velhxs só têm lembranças de fartura. A terra era boa, papai plantava de tudo e conseguiu até comprar 2 cavalos. Mas um desentendimento pôs fim ao negócio e levou a família, seguindo outras, que já haviam migrado, para Baldim. Sem trabalho, papai se viu obrigado a vender os cavalos para comprar comida e começou um período muito difícil para a família. Ficamos ali, lembrando histórias e nos emocionando, enquanto refletíamos sobre a nossa conjuntura política. Um detalhe que me emocionou nessa minha irmã que não queria ser empregada doméstica, e que sempre teve a libido pelo conhecer, que adora estudar, que é uma das pessoas mais inteligentes que eu conheço, foi vê-la com aparelhos nos dentes, o que só foi possível depois dos 60 anos de idade e depois que todos os seus filhxs usaram. Isso tudo pra dizer que a pobreza é uma desgraça e que ficar livre dos efeitos dela leva, às vezes, mais de uma geração. Nunca foi fácil para a minha família. Vivemos um refresco por cerca de uma década durante o período do governo Lula/Dilma. Tenho clareza de que o que vem pela frente não será nada fácil, mas seguiremos na luta. 'Nois por nois', como sempre foi. Pra quem teve que recomeçar tantas vezes, não é agora que esta direita vai nos derrubar. Convivemos com ela desde que nossos ancestrais chegaram aqui, num navio negreiro. E não é agora que nós vamos deixar esses senhores de engenho nos tombar. Se não tombaram nem minha bisavó, Maria Rosa, que era negra cativa!

O tirano que habita em nós

- que mosca enorme! vou esmagar ela.
daí, parou, pensou um pouquinho e disse:
- engraçado, mãe... em relação a essa mosca eu sou como um deus. tenho poder de morte e de vida sobre ela.
- é assim para uma série de coisas, filho. veja o machismo, muitos homens sentem esse poder em relação às mulheres. no racismo, brancos sentem em relação a negros; a polícia, quando escolhe quem deve morrer e quem pode viver...
- pensando bem, não vou alimentar "meu tirano", não.
- isso mesmo. Guimarães Rosa diz que só de olharmos com cara feia no espelho, já é suficiente para ele aparecer.
- pode ir mosquinha, não vou fazer nada com você, não.

Quando a coisa fica preta, a coisa fica boa

O domingo amanheceu com uma chuvinha fina, daquelas de engrossar rio, de fazer o milho crescer. Hora de fazer a mochila e aproveitar o feriado para voltar pra casa tratar das 'criação'.
A semana foi intensa! A metrópole proporciona isso. Depois desses anos de reclusão em Baldim, estamos sedentos por programações culturais e BH não faz feio, não.
Na segunda teve sarau com participação de Renegado e Tom Nascimento, que fizeram toda a diferença. Quando a coisa fica preta, a coisa, realmente, fica boa.
Na terça, teve roda de conversa com a professora e ex-ministra Nilma Lino Gomes, a primeira mulher negra a ser reitora de uma universidade (Unilab). Nilma falou sobre racismo, relações raciais e educação para uma platéia que encheu a Ocupa FaE de cor. Que coisa linda, xs pretxs todxs querendo se expressar. Nilma falou que não tem como discutir racismo sem pensar os privilégios da branquitude. Falou também do movimento negro e dxs negrxs em movimento. Foi ovacionada! Representatividade importa! Nossxs corpos negros precisam estar ocupando a universidade, trazendo à tona a necessidade de refletirmos sobre os silêncios e a invisibilidade de certas pautas.
Na quarta, o menino se sentindo culpado porque mataria aula, veio de Baldim para participar da conversa com o músico Emicida e o escritor Ferréz. Fomos cedo para a porta do teatro pegar os ingressos e na fila já tínha um monte de mina preta discutindo empoderamento negro. Não resisti, me meti na conversa e viramos amigas de infância. O grande teatro do Sesc Palladium ficou lotado, mais uma vez, por uma platéia cheia de cor. Os corpos negros precisam ocupar também os espaços da cultura. Eram muitos blacks e turbantes empoderados colorindo aquele teatro. Foi lindo, foi forte, foi empoderador. Mais uma vez, as vozes desses sujeitos à margem queriam ser ouvidas. Não sem razão, o tema da conversa era literatura periférica. Os sujeitos periféricos na condição não mais de objeto de estudo, mas como protagonistas, como sujeitos de uma produção artísitica importante, não só simbolicamente, como também histórica e politicamente. Foram 3 horas de conversa que só foi interrompida porque o teatro precisava ser fechado. Não dá mais para ignorar a produção cultural e artísitica desses sujeitos periféricos. A periferia sendo discutida não como lugar de pobreza e violência, mas como um espaço de potência cultural.
Na quinta, o menino viveu pela primeira vez a experiência de um corte de cabelo num salão afro. Todx pretrx precisa viver isso. Eu fiquei ali, sentada admirando aquele black lindo que era elogiado por cada pretx que entrava no salão. O menino sempre alimentou o desejo de deixar o cabelo crescer, mas só consegui, há cerca de 2 anos, depois de participar de um evento onde havia muitos blacks, dreads e crespos lindos. Depois daquele evento ele nunca mais cortou o cabelo e foi a primeira vez que aparou as pontinhas. Mesmo assim, só se sentiu seguro com um cabelereiro negro. Enquanto ficava ali, assistindo, ouvi muitas histórias sobre bailes, festas, enquadros de polícia e racismo.
Na sexta, a aula foi na rua. Levei o menino para a manifestação contra a Pec 241/55. Foi lindo ver seu olho brilhando ao observar xs meninxs do Levante da Juventude. Estudante se juntando com professor e funcionários da educação para manifestarem sua indignação contra a Pec da Morte. Tenho certeza que o que ele aprendeu numa manhã na manifestação, ele não aprenderia em um semestre de escola.
Ontem, foi a vez de uma conversa com congadeiros e fazedores de cultura da região metropolitana de BH. Novamente, foi lindo, foi forte, foi empoderador. A conversa girou em torno da necessidade de nossos corpos negros ocuparem também, os espaços da política.
A cada dia que passa, eu fico mais convencida que, independente ou a contrapelo do golpe, existe uma revolução em curso, e que embora invisibilizada segue a pleno vapor e passa pelxs estudantes, pelas mulheres, pelos LGBT's e pelo povo preto.

O deus das casas

Desde que o menino nasceu já passamos por 10 casas. Vivendo, novamente, o movimento da mudança, acordei pensando nas casas por onde já passamos. Lembrei do poema, "As Casas", da Sophia de Mello Breyner:
"Há sempre um deus fantástico nas Casas
Em que eu vivo, e em volta dos meus passos
Eu sinto os grandes anjos cujas asas
Contêm todo o vento dos espaços."
Fiquei pensando que, conosco, tem sido assim. Um deus das casas tem nos acompanhado e nos protegido.
Quando, em janeiro de 2007, eu e o menino entramos no ônibus da Pássaro Verde em direção à Viçosa, nem imaginávamos o que estava por vir. Na rodoviária nos esperava Almenara, a mãe do meu amigo Samuel, uma das almas mais generosas que conheci. Nossos "caquinhos" já estavam nos esperando em um apartamento térreo no prédio do Navio. Almenara esperou, pacientemente, eu começar a receber a bolsa para pagar o aluguel. Samuel pagou a mudança: um fogão, uma geladeira, um sofá, um estante, duas camas de solteiro, os brinquedos do menino, na época com 4 anos. Meu fogão azul, sem a porta do forno era motivo de piada: "sua casa é muito cubana, Dalva!" ouvi várias vezes. A geladeira era novinha, comprada no cartão da minha amiga Waleska, em 10 vezes no Carrefour. Depois, aumentamos nossas posses comprando de segunda mão, em um dos vários "topa-tudo" de Viçosa, 2 bicicletas, uma mesa com 4 cadeiras e uma escrivaninha. Nossa cortina era uma colcha de retalhos, presente da mamãe. João foi para uma boa escola, eu passei no concurso para professora substituta do Departamento de Educação da UFV e vivíamos felizes nossa vidinha mais ou menos. Quando terminei o mestrado, ainda fiquei por lá mais 1 ano, dando aulas em uma faculdade particular. Nossa casinha era nosso refúgio. Parecia realmente que era protegida por longas asas de anjos, tamanha a felicidade que sentimos morando ali.
Em 2010, passei na seleção do doutorado em Antropologia Social na Ufsc. Não tinha como levar minha casa cubana. Financeiramente não compensava. Foi um exercício de desapego difícil de fazer. Para quem acostumou a viver com pouco, os objetos têm um valor simbólico muito grande. Tivemos que abrir mão de tudo, que foi vendido para um topa-tudo. Doeu no coração me desfazer das bicicletas e da estante dos livros, que era linda. Mas, em janeiro de 2011, desembarcamos em Florianópolis: eu, o menino e duas malas. Mais uma vez tivemos que montar nossa casa, dessa vez com o cuidado de ser só o essencial, já que a mudança não era definitiva. Moramos por alguns meses na praia do Campeche e de novo, foi uma casa como a do poema de Sophia, protegida por asas de anjos.
Em 2013, voltamos a BH para o meu trabalho de campo. Dessa vez minha irmã nos hospedou e no final do ano fomos para Lisboa, para o estágio doutoral sanduíche. Lisboa foi uma das experiências mais incríveis que vivemos. Fomos morar no bairro da Graça, bairro onde morou a poeta Sophia Breyner. Descobri a rua onde ela morou e a sua casa com vista para o Tejo, na Travessa das Mônicas. O miradouro que leva seu nome era um dos nossos lugares preferidos para apreciar o pôr do sol. De novo, fomos protegidos pelo Deus das Casas.
De Lisboa, viemos direto para Baldim. Dessa vez a casa era a da minha infância. A expectativa era apenas alguns meses e já estamos aqui há quase 2 anos e meio. Foi uma experiência incrível morar aqui. A cidade grande nos exige uma urgência que não existe por aqui. Aqui, o tempo é outro, é percebido de outra forma. Aqui, redescobri o silêncio. Já consigo reconhecer os cantos de alguns pássaros. Vou tomando conhecimento das horas pelo sino da igreja, pela ave-maria no alto falante na hora do angelus. As notas de falecimento e utilidade pública lidas pelo Zé da Bilinha, a risada da Dona Geralda a caminho da missa.
Mas, de novo, está chegando a hora de partir e eu já estou sentindo um aperto no coração. Esse tempo aqui me convenceu ainda mais de como precisamos de pouco para viver. Acumulamos muitos nesses anos, mas nossas conquistas não cabem em malas. Vou sentir falta da minha clarabóia, a janela azul de tramela, a visão do morro, novamente verdinho por causa das chuvas, a algazarra dos periquitos nos pés de manga e jabuticaba.
Só espero que a próxima moradia tenha vista. Como disse a poeta Sophia de Melo Breyner quando se mudou da cidade do Porto para o bairro da Graça, em Lisboa. A mãe insistia que uma casa precisa ser boa por dentro e Sophia retrucava que não, que uma casa precisa ter vista, que ela precisava chegar até a janela.
E o meu desejo é só esse: uma casa com vista. Eu também preciso chegar à janela.