sábado, 24 de setembro de 2016

Para respirar melhor

Segundo o historiador, Sérgio Buarque de Holanda, a necessidade de confissão é uma doença moderna, que pela palavra e pela sintaxe, condena à morte, todos os sentimentos que nos oprimem. Foucault também escreveu sobre isso. Para o filósofo, o homem ocidental é um homem confidente que possui uma necessidade de verdade e uma vontade de saber. Fernando Pessoa traduziu poeticamente. Para ele, quando confessamos o que sentimos, diminuímos a febre de sentir. Santo Agostinho também escreveu suas confissões num livro que há anos está na lista daqueles que quero ler, mas que nunca consegui avançar além das primeiras páginas. Darcy Ribeiro, por sua vez, me emocionou com suas confissões, escritas numa urgência de quem aguardava a morte, já com um câncer em estado terminal. Aliás, foi inspirada neste livro, que devorei em alguns dias, que em 2009, durante a escrita da minha dissertação, resolvi criar este blog. Dei o nome de "confissões" em homenagem ao Darcy. A literatura e a poesia sempre me desviaram dos textos acadêmicos e, durante o mestrado, quando empacava com a escrita, ia para o blog, com a desculpa de me inspirar, e escrevia por puro prazer. Depois ele ficou esquecido, e só esporadicamente eu passava aqui, para tirar a poeira. Em 2011, criei uma conta no facebook e passei a confessar por lá, minhas angústias. Às vezes, queria recuperar um ou outro texto que tinha escrito e ele se perdia no buraco negro que é o face. Em 2015, já morando aqui, em Baldim, reativei o blog. De fevereiro a dezembro foram mais de 70 posts, numa espécie de catarse por estar de volta à minha patriazinha, morando na casa que foi de minha mãe. Eu chamava minhas confissões de "pré-textos/pré-tese", já que acreditava que eram desculpas para não escrever a tese. O ano ainda não terminou e já foram mais de 100 pequenos textos escritos. O interessante é que terminei a tese, mas os textos continuam. Minha desculpa, agora, é que a escrita funciona como uma espécie de reza, antes de começar o dia. É quase uma necessidade fisiológica. Com Adélia aprendi que pegar a palavra na mão, tal qual um peixe vivo, é coisa infrequentíssima. Drummond me ensinou que algumas palavras são fortes como um javali, outras precisam ser enlaçadas, seduzidas, gostam de carícia. É preciso humildade para persuadi-las, algumas são sistemáticas, viram-nos o rosto. Fruir a essência de cada palavra é um duelo, diz o poeta. Para Adélia, mais que a palavra, o que importa mesmo é a sintaxe, pois a palavra é apenas disfarce. Virgínia Woolf me ensinou que é preciso algum dinheiro e um teto todo seu para a mulher conseguir escrever. Com Carolina Maria de Jesus aprendi que é possível escrever sentada no quintal, com um pedaço de carvão e papel de pão. Clarice escrevia com um filho em uma perna e a máquina de escrever em outra. Com Conceição Evaristo aprendi que essas confissões são na verdade, escrevivências. Com Glória Anzaldúa que a mulher que escreve tem mais poder e que é preciso colocar as tripas no papel E assim, sigo... E, quando me falta o ar, lembro de Adélia e ao procurar palavras para narrar a minha angústia, eu já respiro melhor.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Padrinhos

Eu não tenho muitas lembranças de padrinhos e madrinhas. Normalmente, os pais escolhem para padrinhos e madrinhas de seus filhxs quem lhes é próximo, quando o filhx nasce. A vida muda, os caminhos se separam e a gente acaba ficando órfã não só de pai e mãe, como de padrinho e madrinha. Lembro da Dindinha, irmã da minha avó adotiva. Eu tive um casal de avós adotivos que dividiram com mamãe a tarefa de me criar. Nem sei se Dindinha era minha madrinha de verdade ou se era só uma forma carinhosa de chamá-la. Sei que Glória, uma das minhas irmãs mais velhas, sempre ostentou o título de minha "madrinha de representação". Ela sempre falava séria, de maneira muito responsável, que na falta da mamãe e do papai, era ela quem deveria assumir a responsabilidade sobre minha criação. Ontem, no Festival do Folclore, em Jequitibá, vi a filha de uma madrinha, mas fiquei sem jeito de perguntar pela mãe.Lembro também, vagamente, de um padrinho na infância que me preseteou um saco de balas. Acho que foi a única vez qu o vi. Ele, sentado na sala e mamãe me mandando tomar a bênção. Com exceção de Glória, minha irmã, que sempre me ensinou muito no tempo em que fomos mais próximas e ainda ensina, à distância, cada vez que esbarro com suas filhas e netos, lembro muito pouco, ou quase nada, dos outros padrinhos e madrinhas
O menino foi criado agnóstico, por isso não foi batizado. Nem por isso ele não tem experiência com o sagrado. Já foi comigo em gira de umbanda, em terreiro de candomblé, e dia desses participou de um culto evangélico. Quando fizer sua escolha, se algum dia fizer, não vai ser por imposição minha. Além disso,ele acompanha o catolicismo popular, junto comigo, desde a minha barriga. Aliás, a decisão de tê-lo se confirmou durante um remate de Folia de Reis, em janeiro de 2001 e, o senti pela primeira vez, aos três meses de gravidez, durante uma festa de congado. Ontem, depois de passar o dia em meio a guardas de congado, folias, pastorinhas e encomendadeiras de alma, o menino me confessou que, este ano, ele gostaria de participar da folia de reis. Eu, emocionada, dei a maior força.
Há alguns anos, enquanto conversávamos à beira do fogão a lenha, no sítio de um casal de amigos, o menino me perguntou se ele não poderia ter assim, "tipo", um casal de padrinhos "informais", já que não era batizado, nem nada. Eu até expliquei que, se ele quisesse, poderíamos batizá-lo, que ficasse à vontade para decidir. Mas não, ele queria mesmo era só os padrinhos. E estava ali, diante de nós, quem ele escolhera: Vânia e Paixão. Eu fiquei emocionadíssima, porque concordei demais com a escolha dele. Penso até, que os afilhadxs é quem deveriam escolher xs padrinhx, e não pai e mãe.
Desde então, Vânia e Paixão assumiram este papel e não é só bancando os mimos do afilhado com gostosuras, skate novo ou a grana para a primeira tatuagem que ele quer fazer. Além dos presentes que sempre aparecem, tem também muita conversa e conselhos.
Este final de semana teve encontro bom entre compadres, comadres e afilhado. Teve show, música, conversa. Foi lindo ver o menino, ora com o padrinho, ora com a madrinha, naqueles papos cabeças, sem fim. Discutindo a série "Narcos", ouvindo a indignação com o golpe, vendo a mãe e a madrinha dançando feito loucas durante o show do Tizumba e do Tambor Mineiro. Óbvio que a mãe, incomparavelmente, mais tímida que a madrinha, pra quem não existe tempo ruim; paciente até com os tiozinhos bebuns que queriam tirá-la para dançar.
Eu, começo a semana fortalecida, depois de reforçar esses laços de afeto que existem, nem sei mais, há quantos anos.
Gratidão, compadre Paixão! Gratidão, comadre Vânia!
É uma alegria imensa ter vocês por perto

Ain't Got no

Ontem, recebi a visita de uma amiga, muito querida. Nos conhecemos há 28 anos (isto é impressionante) na Telemig, numa época em que ligação interurbana era feita, via telefonista. O abraço apertado no portão deu a dimensão de como o afeto continua o mesmo. As brincadeiras, as lembranças...
O menino chegou da escola e apresentei:
- "João, esta aqui, é minha amiga dos tempos do Toninho (meu ex-marido; meu deus, já fui casada de "papel passado")".
"Pôxa, faz é tempo, hein?".
O menino sempre se surpreende com as histórias, anteriores ao seu nascimento. Ele esquece que foram 36 anos vividos antes dele nascer. Ele sentou no degrau da sala para a cozinha e ficou escutando a conversa.
Nestes reencontros, sempre aparece a curiosidade de como a pessoa está e o que está fazendo: casou? separou? teve filhos? aposentou? Às vezes, me dá uma certa inquietação. Continuo a mesma dura de sempre, que gosta de estudar. Na época da Telemig e dos nossos vinte e poucos anos, eu sonhava em passar no vestibular; minha amiga falava da inveja que sentia, quando via mulheres com as chaves de seus carros nas mãos. Ontem, ela estacionou o carro dela aí, na porta. Prestes a se aposentar como professora, eu brinquei sobre a minha co-responsabilidade, pois fui eu quem pegou no pé pra ela fazer um curso superior. Quando chegou a minha fez de falar das conquistas, exibi orgulhosa os cerca de 1,80m do menino, com seu cabelo blcak power; mostrei Fridinha, minha cachorrinha resgatada da rua e falei da conclusão do doutorado. Mostrei também, os pés de pimenta em final de produção, o morro onde levo as minhas visitas para passear, o pé de mamão que começa a invadir a janela da cozinha e as lembranças dos lugares por onde passamos na última década. Já se vão 10 anos desde aquele dia em que o caminhão de mudança, pago pelo amigo, Samuel, parou na porta da kitinet para levar nossos "caquinhos" para Viçosa. Minha casa cubana ficou por lá, num "topa-tudo" quando 4 anos depois, nos mudamos para Florianópolis. Desde então, foram 7 casas, 5 cidades, 2 estados, 2 países, 2 continentes, 6 escolas. Nestas andanças, temos aprendido a desapegar, a ter somente o necessário, a não acumular coisas. Como diz a Nina Simone:

"Ain't got no home, ain't got no shoes
Ain't got no money, ain't got no class
Ain't got no skirts, ain't got no sweaters
Ain't got no perfume, ain't got no love
Ain't got no faith
Then what have I got
Why am I alive anyway?
Yeah, hell
What have I got
Nobody can take away
I've got life
I've got my freedom
Ohhh
I've got life!"

Não vacila

"não vacila no primeiro trupicão. deu o primeiro trupicão, pula pra trás e espera. tenta pular por cima; se não der por cima, vai por baixo; se não der por baixo, vai de banda; se não der de banda, vai de lado; se não der de lado, deita no chão e passa. nunca volta, nunca desista do seu objetivo."
Dona Tiana, Capitã do Moçambique de São Benedito, Bom Despacho, MG.

Esperança

Acordei com o sabiá no telhado, chamando chuva. Fiz corpo mole, não quis levantar. Os sinos chamaram pra reza. Continuei na cama. Em seguida, chegou um coro de vozes, amplificado pela acústica da igreja. Era um canto tão bonito, expressando tanta contrição, que senti obrigação moral de levantar. Afinal, já tinha gente rezando. Me aprontei, peguei minha maquininha e fui!. Durante a caminhada me distrai com os jardins das casas. Essa mania de sentir atração pelo miúdo, pelas coisas do chão. E não é que vi uma esperança na roseira? É! A concreta, o bichinho verde. Preparei a máquina para fotografar. Mas, um gato surgiu não sei de onde e abocanhou o esqueletinho. Não deu tempo de nada! O bichano comeu a esperança! Eu segui meu destino com o coração apertado. "Não perca a esperança, Dalva! Não perca!" Fui murmurando pra mim mesma. E acabei encontrando-a, novamente. Onde? Estava lá, pendurada na porta do Lar dos Velhinhos. Se o gato comeu a esperança concreta, a abstrata ninguém tira de mim.

Alegria também é resistência

Ontem, fui dormir acalentada, depois de uma conversa com uma amiga, que nem conheço pessoalmente, mas que é como se convivéssemos desde a infância. Ela, também mãe de filho, me falou coisas tão lindas que estou pensando em imprimir nossa conversa e colar no armário, para me lembrar sempre, toda vez que a vida me assustar. Acordei cedo e fui fazer a caminhada.Vi o sol nascer, ouvi as siriemas, colhi umas flores brancas, lindas, que não sei o nome. Essas flores que são flores mesmo não semeadas, como dizia Drummond. Voltei pra casa, o menino já se aprontava pra escola. Liguei o computador e começaram as bombas: reforma do ensino médio, prisão do ex-ministro Mantega, no hospital, enquanto acompanhava a esposa doente. Como li por aí, "que ônibus a gente pegou para chegar neste ponto"? Volto na conversa que tive com a minha amiga. Releio suas palavras, tento não me deixar abater. Daí eu lembro do pequeno Dito, ensinando ao irmão Miguilim, em uma das novelas mais lindas de Guimarães Rosa: "...é que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro!" É isso! Alegria também é resistência! Já dizia o Emicida: "nosso sorriso sereno, hoje, é o veneno, pra quem trouxe tanto ódio..." Nossos inimigos são raivosos, mal humorados, cruéis, mas não vão nos dobrar! Não vão, não!

Só os loucos...

Minha mãe nunca sentou num banco de escola. Não sabia ler as letras, mas lia o mundo como ninguém. Ela tinha muita vergonha de não saber ler e sempre quis um destino diferente para xs filhxs. Meu pai pensava diferente. Ele queria mão-de-obra pra ajudá-lo na roça. Achava estudo bobagem. Mamãe, não! Como a mãe do poema de Adélia, ela "achava estudo a coisa mais fina do mundo". Por isso, não sossegou enquanto não saiu da roça. A mudança para Baldim foi uma revolução em nossas vidas. Lembro do capricho dela com os nossos uniformes, as tranças nos cabelos crespos que precisavam durar pelo menos uma semana. "Estude! Estude para ser alguém na vida". Os irmãos mais velhos não conseguiram. Viveram os períodos mais difícieis. Mas, dos 10 filhos, 6 fizeram universidade pública. 5 fizeram licenciatura. Somos uma família de professorxs. Eu, me decidi pelas Ciências Sociais numa aula de sociologia da educação, no curso de magistério. Professora Leda! As aulas eram interessantíssimas, conectadas com o mundo a nossa volta. Ali, eu comecei a me interessar pela Sociologia. Depois, descobri que existia o curso de Ciências Sociais. Lembro até hoje, do dia que minha irmã chegou pra mim e falou de um curso que era a nossa cara, tudo que gostávamos de ler. Lembro que comprei o Guia do Estudante para saber mais informações, e decidi: Ciências Sociais - ênfase em Sociologia (Licenciatura e Bacharelado para ampliar as possibilidade de emprego). Na época, começo da década de 1990, já existia a discussão da obrigatoriedade ou não da sociologia no ensino médio. Fernando Henrique Cardoso, o "príncipe" sociólogo vetou a obrigatoriedade, que só veio depois, no governo Lula, o torneiro mecânico. Quando fiz meu estágio, durante a licenciatura, já na primeira aula, tive a certeza que queria ser professora. Hoje, estou professora substituta na Faculdade de Educação, da UFMG. A disciplina? Prática de Ensino em Ciências Sociais. Tenho a turma mais linda que alguém pode ter. Afinal, quem escolhe fazer licenciatura num país que professorxs com graduação ganham praticamente o mesmo salário que um adolescente menor aprendiz? Só xs loucxs. E como diz a música que o menino outro dia ensaiava com xs colegxs: "Só os loucos sabem. E disso os loucos sabem, só os loucos sabem"...

Só a arte nos salva

Gosto de setembro com seus dias mais longos. 5:30 da manhã e o dia já está claro. Mudei o trajeto da caminhada para evitar o moço que resolveu me assediar. Só porque eu dava "bom dia" se achou no direito de engraçar comigo. Não cumprimento mais! Nem caminhar sossegada a gente pode. Segui rente ao pasto. Mesmo com a pouca chuva, os pés de gabiroba estão carregadinhos de flor, se destacando no meio do cerrado seco. Essas horinhas de descuido me fazem esquecer da brutalidade desses tempos. Encontro com as irmãs indo buscar lenha. Todo dia, mesmo horário, faça frio ou calor, esteja o dia escuro ou claro, lá vão elas. Lenços protegendo os cabelos, sacola com as rodilhas para amortecer o peso na cabeça, foice na mão. Já de pé, o pai pelejando com o fogão a lenha para preparar o café dos filhos, que de uniformes e cabelos penteados esperam. O maiorzinho chegando apressado com a sacola de pão. Os cachorros, alertas, aguardando uma frepinha. As labaredas do fogão podem ser vistas da rua. Lembrei de Carolina Maria de Jesus: "Casa que não tem lume no fogo fica tão triste. As panelas fervendo no fogo também servem de adorno, enfeitam o lar." Quando cheguei em casa fui ler "Quarto de despejo:
"À noite, enquanto elas pedem socorro, eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses"; Carolina ouvia valsas vienenses pelo radinho de pilha. "Aproveitei a minha calma interior para eu ler. Peguei uma revista e sentei no capim, recebendo os raios solar para aquecer-me. Li um conto. Quando iniciei o outro, surgiu os filhos pedindo pão."; A leitura sempre interrompida pelas obrigações de mãe. Quem tem fome não pode esperar. "Ela odeia-me porque os meus filhos vingam e por eu ter rádio." Além dos livros e dos cadernos onde escrevia sem parar, Carolina também tinha outro bem precioso: o rádio.

Música... Literatura... Era o que libertava Carolina.
Só a arte nos salva nas horas brutas.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Resiliência

"O sonho é um tempo onde as mina não tenha que ser tão forte" (Emicida)
Hoje bateu cansaço! Não é sempre que ele bate.
Ontem, uma amiga postou uma entrevista da escritora Conceição Evaristo na rádio CBN e eu fui ouvir. Duas coisas me incomodaram. A primeira foi que Conceição foi convidada não para um programa de literatura - embora falasse o tempo todo de seus livros, mas para um programa sobre como envelhecer bem, "50 mais". Só isso já é motivo para refletirmos.
O segundo incômodo foi os repórteres procurarem o tempo todo ressaltar a resiliência (odeio essa palavra) da escritora. Tipo, "olha, ela é negra, nasceu numa favela e conseguiu"; "Olha, ela sofreu pra caralho, mas não é uma pessoa amarga, veja como ela é de bem com a vida."
O velho e odioso discurso da meritocracia.
Conceição, com doçura (ela fala com doçura, como a mãe do conto de Adélia), ressaltou que sua trajetória é na verdade exceção. Que foi foda! Que ouviu desestímulo de muito/a professor/a, tipo, "você vai ter que optar entre trabalhar ou estudar". Eu também ouvi muito isso no meu período de graduação.
Com uma filha especial, que nasceu enquanto estudava, Conceição levou 14 anos para concluir sua graduação. 14 anos! Durante o mestrado perdeu o marido e no doutorado teve uma isquemia. E ainda enfrentou o incômodo de colegas e professores por ser uma jovem senhora, mãe de filho, com idade bem acima da média dos outros estudantes, em sala de aula. Sei bem o que é isso.
Seus livros foram publicados com dinheiro do próprio bolso e só agora, aos 70 anos, Conceição afirma estar colhendo alguns frutos deste investimento. "Becos da memória" esperou 20 anos para ser publicado e para publicar "Ponciá Vicêncio", Conceição recorreu a um empréstimo, ficando, segundo ela, 1 ano no vermelho,
A escritora disse que não quer ser usada como exemplo, que sua trajetória confirma a regra, comprovando como a sociedade brasileia é injusta e cruel. Ela lembrou a trajetória de outra escritora negra, favelada, Carolina Maria de Jesus, e ressaltou que para os escritores brancos tudo vem mais cedo e mais fácil.
Conceição lembrou de um tio que sempre lhe dizia: "Olha, estuda. Cada passo que você der, você carrega atrás de si os nossos antepassados, que escravizados, não puderam realizar o seu destino". Mas se para uma parcela enorme da população não estudar significa estar fora, para esta mesma parcela, estudar não é garantia de nada. Resistir por 70 anos para colher os frutos. Putaqueopariu, eu completei 50. Ainda falta um bocado.
Como a mãe de Conceição, a minha também era analfabeta e por nunca ter sentado numa carteira escolar, carregou consigo a frustração de não ter podido nem cogitar a realização do desejo de ser médica.
Nestes momentos de cansaço e desânimo eu busco em algum lugar dentro de mim, a força ancestral que Conceição diz existir e "em tudo eu vejo a voz de minha mãe", como nos diz o rapper Emicida. Mas penso também, com um outro rapper, o Criolo, que "não é preciso sofrer pra saber o que é melhor pra você".
Resiliência é o caralho. A sociedade é desigual,injusta e racista, porra!
Vou fazer o almoço, porque daqui a pouco, o menino chega com fome.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Aquarius

"Eu quero entender os 11 minutos de palmas ininterruptas em Cannes, Dalva!", foi o que disse a minha irmã.  Cinéfila como é, nunca tinha visto uma aclamação como aquela que o filme recebeu no Festival. Aquarius começa com o aniversário de uma tia de Clara, uma septuagenária. Neste prólogo, Kleber Mendonça já dá pistas que é sobre empoderamento da mulher que ele vai falar.

Mas, Aquarius é também um filme sobre memória. O belíssimo apartamento de Clara, todos os seus objetos, sua coleção de discos em vinil, o móvel que foi da tia, me lembraram o poema de Bertold Brecht:

De todos os objetos, os que mais amo são os usados.
As vasilhas de cobre com as bordas amassadas,
os garfos e as facas cujos cabos de madeira
foram colhidos por muitas mãos.
Estas são as formas que me parecem mais nobres.
Estes ladrilhos das velhas casas
gastos por terem sido pisados tantas vezes,
estes ladrilhos onde cresce a grama
me parecem objetos felizes.
Impregnado do uso de muitos,
a miúde transformados, foram aperfeiçoando suas formas
e se fizeram preciosos porque tem sido apreciados muitas vezes.
Agradam-me, incluso, os fragmentos de esculturas com os braços cortados.
Viveram também por mim.
Caíram porque foram trasladados.
Derrubaram-nas, talvez, porque estavam muito altas.
As construções quase em ruína parecem todavia projetos sem acabar,
grandiosos; suas belas medidas podem já imaginar-se,
mas ainda necessitam de nossa compreensão.
E além do mais já serviram, inclusive já foram superadas.
Todas estas coisas me fazem feliz.

A casa carrega sua história. As marcas são importantes. Como nos ensina Brecht, é o que confere nobreza aos objetos. Os ladrilhos gastos, a louça descascada, a madeira surrada. São objetos felizes, foram colhidos por muitas mãos, foram pisados muitas vezes, transportados pra lá e pra cá. Como o álbum de John Lennon comprado por Clara, em um sebo, em Porto Alegre. Clara carrega toda essa memória em si.

E Clara é esfuziante, com todas as suas rugas e cicatrizes. Ela não é uma jovenzinha descobrindo o mundo, não! É uma sexagenária! Linda! Que carrega consigo a dor e a delícia de ser quem é. É uma mulher bem resolvida. Que vive sua sexualidade, que sai com as amigas para beber e dançar e que paga para ter sexo se esse for o seu desejo. Clara não chora, nem a viuvez. Na cena em que vai ao cemitério visitar o túmulo do marido, ela desiste de ler o que escreveu pra ele, deposita as rosas no túmulo e vai embora, decidida. Passou, viveu! Clara não sente culpa, de nada. Nem quando a filha, durante um almoço de família, lhe joga na cara os dois anos que ela ficou longe para escrever seu livro. A figura de Clara por si só, impõe respeito. "Quem é você na fila do pão, minha filha?" Ela parece dizer. "Há quanto tempo você está no mundo"? "Me respeite, viu? Porque foi nesse seio que nem existe mais que você mamou." Clara é segura, é corajora, é independente. Clara é pura resistência. Viva Clara!

Em "O som ao redor" virei fã de Kleber Mendonça. Quando ele tirou do bolso interno do seu paletó,  um cartazinho anti-golpe, feito em folha A4 e o ergueu em pleno tapete vermelho, em Cannes, eu caí de amores. No domingo, quando saí da sala 1 do Cine Belas Artes em BH, meu desejo era casar com ele. Sim, eu sei que Kleber é casado com a francesa, mas o divórico já existe no Brasil.

sábado, 3 de setembro de 2016

Perder a ilusão

Sairemos mais realistas deste processo todo. Deu pra conhecer todo mundo: deputados e senadores, artistas, familiares e amigos. Conhecemos quem foi pra rua lutar pela democracia e quem vestiu verde e amarelo por amor a um pato. Sabemos quem ascendeu socialmente e achou que foi apenas por mérito próprio e que agora tem suas conquistas ameaçadas. Deu pra ver, direitinho, quem se incomodou com o aeroporto parecendo rodoviária e com as universidades com mais cara de povo. Vimos quem sofreu com a aprovação da Pec das domésticas e conhecemos melhor o nosso judiciário. Agora, sabemos quem é quem, à nossa esquerda e à nossa direita. Fomos muitas vezes surpreendidos positiva e negativamente com pessoas de ambos os lados. Perdemos alguns amigos, mas ganhamos outros, até mais legais. Agora, sabemos exatamente quem está do nosso lado, na trincheira. Sairemos melhor disso tudo. Ficamos des-iludidos, mas perder a ilusão não é ruim. Vai doer, vai ser terrível, mas sairemos mais maduros. Precisamos fortalecer nossas redes de afeto. Mais do que nunca é 'nois por nois'. Seguiremos resistindo! Tamo junto!

É muito mais que política

É o que eu digo sempre, não é "só" política. Política diz respeito a condução da nossa própria existência. Por isso, para aqueles da minha timeline (que eu acredito serem bem poucos) que estão, agora, comemorado o impeachment da Dilma, eu faço minhas, as palavras do Vladimir Safatle: "nós não vivemos no mesmo país, nós apenas ocupamos o mesmo espaço — por infelicidade. Estamos em campos completamente opostos, temos antagonismos insuperáveis. (...) Não há nada que nos una. Nós não queremos a mesma coisa". Nós não somos amigos. Os meus amigos estão comigo do mesmo lado da trincheira.

O tempo das águas não tarda a chegar

Todo ano era a mesma ladainha. A mãe, com as mãos no queixo, da janela da cozinha, olhava desanimada para a grama do quintal, estorricada pelo tempo da estiagem:
"- É, dessa vez a grama morreu mesmo. Não renasce mais não."
Que nada! Na primeira chuvinha do tempo das águas, contrariando a profecia de Dona Dulce, a grama rebrotava de novo, verdinha. E com ela, vinha junto uma floresta de cogumelos, cada dia num canto diferente do quintal. Os cupins ganhavam asas e brotavam do chão em revoada e um ou outro pezinho de bem-me-quer germinava depois da semente hibernar por meses na quentura da poeira. O tempo das águas não tarda a chegar. E com ele, virá junto essa capacidade de renascimento da natureza. Que a gente rebrote junto quando esse tempo de seca passar, "porque não há mal que dure pra sempre e nem verdade que permaneça eternamente oculta".