sábado, 2 de janeiro de 2016

Rua Vitalino Augusto, 25

desde as primeiras horas do dia de ontem que procuro o "novo" e não encontro de jeito nenhum. está tudo igual, como foi todo o ano de 2015. continuo como na música de nina simone: "ain't got no home, ain't got no money , ain't got no man, ain't got no mother, ain't got no love, ain't got no god...e por falar em "ain't got no home" acordei pensando na casa do vovô. se tem uma coisa que me arrependo na vida, foi ter aberto mão da casa do vovô. ele sempre insistiu que a casa ficaria pra mim, coisa que eu não fazia questão, pois o meu maior desejo era ir embora de baldim. bh representava o novo, o moderno, o bonito e eu não queria nada que me ligasse ao "atraso"... também, eu tinha 13 para 14 anos e sonhava com a cidade grande. hoje, chorei ao lembrar da casa do vovô. era uma casa pequena, de 4 cômodos apenas, mas que morro de saudades. o alpendre minúsculo, com chão de cimento vermelho encerado. em um dos cantos uma samambaia plantada numa lata de vinte litros, herdada da mamãe quando ela mudou para bh e eu fiquei morando com o vovô. do outro lado do alpendre, um lírio, também plantado na lata. na parede uma caixinha com o relógio da luz, nosso esconderijo para as chaves de casa. a sala, também de cimento vermelho, tinha uma janela de madeira, uma mesa com 4 cadeiras, uma cantoneira em um dos cantos, onde ficava a talha com água. a cantoneira era linda, sempre enfeitada com algum forrinho bordado. na parede tínhamos um cabideiro onde vovô colocava o chapéu de palha, sempre que chegava da rua. também tinha uma imagem de santa luzia, uma da sagrada família e uma de nossa senhora aparecida, a quem ele era devoto. no quarto do vovô tinha uma cama de casal linda, toda trabalhada e uma menorzinha, onde eu dormia quando criança. uma mesa num canto onde ficavam os milhares de vidros de remédio e um porta retrato meu, com cerca de 1 ano de idade. a foto era o xodó do vovô. eu, brincando com a carteira dele, para me distrair do choro por não querer tirar o retrato, história que ele repetiu uma vida inteira. atrás da porta ficava as dezenas de varas de pescar do vovô e uma sacola plástica com os documentos. tinha também um cabideiro onde o vovô pendurava seus paletós surrados. o chão dos quartos era lindo, de tijolos. embaixo da cama, ficava um urinol esmaltado, para as emergências da madrugada, pois a privada ficava no fundo do quintal. o quarto onde eu dormia não tinha porta, mas uma cortina de chita. é a primeira memória que tenho desse tecido: a cortina do quarto. duas camas, sendo que uma delas era em estilo "viúva", um pouco maior que uma cama de solteiro, em estilo porteira, de uma madeira resistente que não sei qual é. havia também duas mesas, uma onde colocávamos as roupas de cama dobradas que eram cobertas com um pano, feito de saco alvejado para proteger da poeira. na outra, ficava mil coisas, entre elas a máquina de costura portátil da vovó, objeto que hoje, eu adoraria ter comigo. todos os colchões eram feitos de palha de milho e demoravam a tomar o formato do corpo da gente. as cobertas eram de algodão fiado, muitas delas artesanais. não tínhamos guarda-roupas e minhas roupas eram guardadas em um baú velho e penduradas num arame que vovô improvisou pra mim. os livros e meu material de escola ficavam numa mala, daquelas antigas, em cima do baú. a cozinha tinha um fogão a lenha, uma prateleira e dois caixotes improvisados como armários, com cortininhas de plástico, o mesmo plástico dos forrinhos da prateleira. as panelas eram de ferro ou de barro e muitos copos feitos de latas de massa de tomate ou conservas. as latas de goiabada e marmelada, recicladas, viravam vasilhas e pratinhos. no quintal um tanque onde armazenávamos água, pois não tínhamos caixa d'água e um suporte de madeira, onde eu lavava as vasilhas, num tachinho e numa pequena bacia de esmalte branco, já descascada. os banhos eram tomados no quarto. o vovô tinha a bacia dele, enorme e eu tinha uma menor. na hora de jogar a água fora, eu me certificava bem, se não estava passando ninguém na rua, muito mais pela vergonha de saberem que eu não tinha banheiro em casa, do que acertar alguém com a água do banho. o quintal era uma grande tira comprida, assombradado pelos vários pés de manga, dois pés de laranja, um pé de goiaba - de qualidade, dizia o vovô - e na cerca, lá no fundo, uma parreira de cansanção que serviu muitos vizinhos. ao lado do tanque tinha um alicerce do futuro banheiro, com o qual eu sonhava (sonho com o futuro banheiro até hoje), mas que o vovô nunca conseguiu construir. não tínhamos muro, tudo era cercado por umas cercas improvisadas, ora com bambu, ora com galhos. tudo era muito limpo, o quintal sempre varrido, a casa encerada, as panelas areadas, os forrinhos trocados de tempos em tempos. eu sinto muitas saudades disso tudo que eu abri mão porque queria ser moderna. "What have a got"? pergunta nina simone na música que me embala o dia."I've got the life", ela responde. é o que tenho, uma vida. não tenho casa, não tenho dinheiro, não tenho mãe... o que acumulamos nesses anos, não cabe em malas. se fosse hoje, eu não abriria mão, de jeito nenhum, nem da casa, nem de tudo que havia dentro dela. porque, se sou quem sou, muito eu devo ao que vivi ali, na rua vitalino augusto, nº 25.