domingo, 26 de novembro de 2017

"Meu quintal é maior do que o mundo

Scooby me acordou cedo, como sempre. Aproveitei para fiscalizar cada broto novo no quintal. Dois ou três dias de chuva e o verde já ficou diferente. O pé de maracujá da vizinha avançou pelo muro e já está em flor. A chuva foi pouca, mas a pitangueira, teimosa, floriu. O pé de abacate está carregado, mas sua sombra atrapalha a amoreira, que mesmo assim, fornece uns poucos frutos, disputadíssimos por quem frequenta esse quintal. Minhas perpétuas seguem "sempre-vivas", resistentes ao sol desse início de sertão. O pezinho de alecrim que Seo Miguel plantou pra mim, nem murchou. O piso em volta dessa casa velha, cedeu ao charme da "mulata na sala", uma das flores preferidas de mamãe. Gosto de pensar que as sementes que germinaram são ainda da época em que ela mesma cuidava do seu jardim. Os beija-flores pararam de brigar pelo bebedouro e agora até permitem que os pardais tomem da água. Também, com esse calorão, penso que os bichos ficam mais solidários. Tem gente que só vê aqui, uma casa velha carecendo de reforma e pintura, mas eu acho que há tanto pra ver.
"Meu quintal é maior que o mundo"... 

Amizade dada é amor

Riobaldo amava o amigo Diadorim. Só pensava era nele, sentimento dele voava reto. Diadorim, era sua neblina. Andavam sempre juntos, davam passeios, divergiam do resto do bando, cada um feito por si. Ninguém maldava nem caçoava, por risco de morte. Com Diadorim, Riobaldo aprendeu a pôr reparo no miúdo, a pôr sentido nas pequenas grandezas. As araras no ar parecendo pano azul e vermelho desenrolados, esfiapados no lombo do vento quente. Aprendeu a formosura dos gerais. “Mas ciúme é mais custoso de se sopitar do que o amor.” Riobaldo tinha ciúmes de Diadorim. Tinha ciúmes da confiança que Medeiro Vaz depositava no amigo, e da gratidão e admiração que Diadorim nutria por Joca Ramiro. Sem Diadorim por perto para reprovar, Riobaldo cedeu aos encantos de mulher moça, bonita. Trocaram carinhos feito casamento, esponsal. A moça serviu café coado por ela, refresco, limonada de pêra-do-campo e até presente deu. Uma presa de jacaré para o jagunço transpassar no chapéu contra mordida de cobra. Riobaldo até conheceu mãe da moça, uma adivinhadora de passado e futuro. Diadorim adivinhou o chamego e também se enciumou. “Essa velha Ana Dazuza é que inferna e não se serve...” A dona, segundo ele, não forneceu informações confiáveis ao chefe do bando. “Essa carece de morrer, para não ser leleira...” “Já sei que você esteve com a moça filha dela...” Confessou. Riobaldo entendeu o amor, mas também o ciúme do amigo e zangou-se: “Aí é a intimação? Pois, fizerem, eu saio do meio de vós, pra todo o nunca. Mais tu há de não me ver!...” Diadorim pôs mão em braço de Riobaldo que estremeceu num alvoroço de doçura, mas repeliu, como se pedra pontuda estivesse entre as duas palmas. “Você já paga tão escasso então por Joca Ramiro? Por conta duma bruxa feiticeira, e a má-vida da filha dela, aqui neste comfim de gerais?!” Irado, Riobaldo respondeu: “Dou!” E destilou seu cíume reclamando se todos tinham que honrar Joca Ramiro como se Cristo Nosso Senhor fosse. “Riobaldo, escuta, pois então: Joca Ramiro era o meu pai...” Diadorim tentou explicar a consideração. Riobaldo acalmou o fôlego, enquanto observava os braços bem feitos do amigo, a cara levantada, tão bonito, tão sério. O ouvido retorcia a voz dele, e no fim de tanta exaltação, seu amor inchou, de empapar todas as folhagens, e ele ambicionava de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos braços, beijar, as muitas demais vezes, sempre. Diadorim também se acalmou. “Tem discórdia não, Riobaldo amigo, se acalme, Não é preciso se haver cautela de morte com essa Ana Dazuza.” “Mas, se você algum dia deixar de vir junto, como juro o seguinte: hei de ter a tristeza mortal...” Falou Diadorim, colocando a mão por sobre a do amigo e a retirando em seguida. Riobaldo abraçou Diadorim em pensamento, como as asas de todos os pássaros e pelo nome de Joca Ramiro, e por seu amigo, agora ele matava e morria.

Das belezas sem dono

Riobaldo não gostava de ser jagunço, achava que não tinha nascido pr'aquilo. Não tinha braçagem pra matar, tinha pena de atirar. Diadorim ensinou Riobaldo a apreciar as belezas sem dono: o céu de estrelas em fevereiro, o cheiro forte das flores em abril, as cigarras em bando, o azul vivoso do céu no outono, o vento que não deixa juntar orvalho, o capim macio. Diadorim ensinou Riobaldo a gostar do silêncio, a obedecer quieto. O amigo era uma espécie de conforto na aridez do sertão. Diadorim deixou de ser nome e virou sentimento.

O encontro parte I

O encontro - parte I
Riobaldo menino, sarado de uma doença, teve que cumprir promessa feita pela mãe quando ficasse bom: tirar esmola suficiente para, metade celebrar uma missa, metade pôr dentro de uma cabaça, bem tampada e jogar no Rio São Francisco, para esbarrar no Santuário do Senhor Bom Jesus da Lapa, e quem sabe, um mais necessitado encontrar. Todos os dias, lá ia o menino para a beira do rio, com sua capanguinha, esmolar. Ninguém quase que não passava, dinheiro quase que nunca tinha, mas ele gostava de apreciar o movimento. Lá, pelo terceiro dia, nem não é que viu um outro menino pitando cigarro, encostado numa árvore? Regulado na idade com Riobaldo, usava chapéu-de-couro, menino bonito, com grandes olhos verdes. Puxou prosa com Riobaldo, que mesmo em fé de promessa, ficou envergonhado de estar esmolando e foi logo enrolando sua capanguinha. Ali mesmo, nascia em Riobaldo um prazer pela companhia daquele menino, que ele nunca por ninguém tinha sentido. Uma conversinha adulta e antiga e um desejo de que ele nunca mais fosse embora, e ficasse para sempre naquela parolagem miúda, só seu companheiro amigo desconhecido. O menino comprou um quarto de queijo, um naco de rapadura e convidou Riobaldo para um passeio de canoa, dessas escavadas em pau de árvore. O menino lhe deu a mão para ajudar a descer o barranco, uma mão bonita, macia, quente que deixou Riobaldo vergonhoso e perturbado. Sentaram um de frente para o outro na canoa que se equilibrava mal, balançando no estado do rio. Receoso com o vacilo da canoa, os esmerados olhos verdes luziam um efeito de calma sobre Riobaldo que não sabia nadar. O remador era menino como eles, e embora inseguro, Riobaldo fez questão de demonstrar brio. O rio era o de-Janeiro, de águas claras e o menino chamava a atenção de Riobaldo para as muitas flores subitamente vermelhas e roxas, pois era mês de maio. Periquitos passavam em bando por cima deles, um Nhambú cantou e Riobaldo para sempre jamais deslembraria aquele momento. O menino não se parecia com pessoa nenhuma, um jeito suave e forte, suas roupas sem nódoa e nenhum amarrotamento. Possuía um cheiro bom sem cheiro nenhum, demonstrava segurança de si e embora falasse pouco, como se apreciasse o ar do tempo, com seu jeito sabido parecia também gostar de Riobaldo. A canoinha foi saindo do rio de-Janeiro e entrando no Velho Chico. Riobaldo ansiado pediu pra voltar. O menino nem lhe olhou, porque já estava lhe olhando. "Para que?" perguntou e sorriu. E deu ordem ao canoeiro, com uma só palavra, firme e sem vexame: "Atravessa!" Riobaldo teve medo, medo e vergonha. Apertou os dedos no pau da canoa, fechou os olhos e lembrou que se a canoa virasse, ficaria boiando e era só se apoiar nela, disse. O canoeiro contradisse. "Esta é das que afundam inteiras. É canoa de peroba. Canoa de peroba e pau-d'óleo não sobrenadam". Riobaldo sentiu tontura. Tantas canoas boas no porto, boiantes e tinham escolhido logo aquela de madeira burra. Seu desespero deve ter ficado evidente porque o menino quieto, composto, de frente e olhando para Riobaldo disse: "Carece de ter coragem..." Sentindo já as lágrimas marejarem os olhos, Riobaldo respondeu: "Eu não sei nadar..." O menino sorriu bonito e sereno afiançou: "Eu também não sei."

O encontro parte II

Que é que a gente sente, quando se tem medo?" O menino perguntou. "Você nunca teve medo?" foi o que veio à cabeça de Riobaldo. "Meu pai disse que não se deve de ter", o menino respondeu. A tremura de Riobaldo enchia o menino ainda mais de coragem. E ele pôs a mão sobre a de Riobaldo, um mão de dedos delicados e ficaram assim, um fazendo parte da pele do outro. O menino mandou o canoeiro encostar, ordenou que tomasse conta e seguiu com Riobaldo no meio do capim. Conversando pouco, dividiram queijo e rapadura. Riobaldo acanhado, com vergonha de suas roupas, comparando-as com o menino. Um outro rapaz surgiu de repente, por ali, viu os dois, e maldando disse: "Vocês dois, uê, hem?! Que é que estão fazendo?..."Hem, hem, E eu? Também quero!" Insistiu. Riobaldo amedrontado, falava alto contestando que não estavam fazendo sujice, que estavam era espreitando as distâncias do rio e o parado das coisas. E o menino, sem demonstrar espanto, com seu sorriso, permaneceu sentado e imitando voz de mulher, disse ao rapaz: "Você, meu nego? Está certo, chega aqui..." E o rapaz, satisfeito, sentou juntinho. Imediatamente, pulou pra trás, deu um grito e varou o mato em fuga. Sem aluir do lugar, o menino limpava a lâmina de sua faquinha no capim, com todo capricho e a guardou na bainha dizendo: "Quicé que corta..." Riobaldo se apavarou ainda mais, com medo do rapaz buscar companheiros, foice, garrucha e voltar. Quis sair logo dali, ir embora. "Carece de ter coragem. Carece de ter muita coragem", o menino respondeu, gentil. E vagarozinho, sem olhar pra trás, sem medo, andou até a canoa. "Você é valente, sempre?" Riobaldo perguntou. "Sou diferente de todo mundo", o menino respondeu. E Riobaldo não tinha medo mais.
"Muita coisa importante falta nome".

Inveja

Quase tive um troço, lendo, agora, no "Grande Sertão: Veredas", o reencontro de Riobaldo com o menino. Agora rapaz, o Reinaldo. Lendo o cuidado e o carinho com que os jagunços tratavam os animais - cavalo, burros e mulas - lembrei de um prosa que tive com meu irmão, há alguns anos, logo que voltei para Baldim. Ele falava da época que nosso pai foi meeiro de grande fazendeiro. A pobreza em casa era muita. Cinco filhos. E meu irmão me contou:
"Sabe do que eu tinha inveja? Eu tinha inveja, inveja mesmo, era do filho do fazendeiro, que tinha um cavalinho todo arreado, com a selinha, ele todo paramentado, com chapéu e uma bota que ia até o joelho. Ele sempre passava com os peões da fazenda, todo empinado, tocando umas cem cabeças de gado. Cada qual num cavalo mais bonito que o outro. E nós... E nosso único cavalo... Mirradinho... O Bainho..."
Por isso Guimarães Rosa provoca tanto arcoçôo em mim. Seus personagens parecem saídos de dentro da minha casa. 

Grande Sertão: Veredas

As mais de trinta páginas narrando o julgamento de Zé Bebelo, ocorrido no sertão dos gerais, me prendeu ao livro. Prometi que o largaria assim que acontecesse o desfecho. Que nada! Em seguida, veio um período de calmaria para os jagunços, mas de dúvidas e angústias para Riobaldo, que se convenceu que o que sentia por Diadorim era "amor mesmo, mal encoberto em amizade". Seguiram páginas e páginas de um Riobaldo, desta vez, não em guerra com outro bando, mas com seus sentimentos. Ainda fruindo as dezenas de páginas onde o jagunço admite para si o que sente pelo amigo, e chegou a notícia da morte de Joca Ramiro. 
Fechei o livro. Fui buscar um ar. 
Benz'ó'deus!

Cerrado

O cerrado é tão bonito. Com a chegada das águas o mato está no rebroto. Os ipês amarelos deram lugar aos flamboyants que estão tingindo tudo de vermelho. As flores dos pequizeiros caíram de um dia pro outro e já é possível ver pequenos frutos. Já dá pra colher mangaba e as gabirobas estão madurando. A terra das rocinhas já está preparada, esperando as sementes. E as chuvas apagaram a poeira do caminho. Fiz o trajeto Baldim/BH dividida entre a leitura de "Grande Sertão" e o deslumbre com a paisagem que já sei de cor.

Delicadeza



Quando decidi ser mãe, eu tinha muita curiosidade em sentir as dores do parto. Eu queria experenciar no meu corpo se era uma dor insuportável ou não. Me preparei para o parto natural. Quando chegou a hora do menino vir ao mundo e as dores surgiram, me surpreendia os intervalos que o corpo dava entre as contrações. Eu conseguia respirar e me recompor para a dor que voltava, em seguida. "Grande Sertão" me remeteu para aquele momento. É que as descrições das batalhas entre os bandos de jagunços são muito cruéis. O autor não tem piedade do leitor e oferece um retrato realista de um Brasil profundo onde o Estado não chega e os sujeitos precisam criar, eles próprios, os seus sistemas de justiça. Mas, entre uma guerra e outra, Guimarães oferece momentos de ternura, onde o leitor consegue respirar. É assim nas partes onde Riobaldo conta para seu interlocutor sobre o amor que sente por Diadorim. Depois de dias encurralados numa fazenda abandonada no interior das Gerais, numa guerra que parecia não ter fim, num momento de pausa, entre um combate e outro, o relato de uma singeleza. Riobaldo carregava há tempos, dentro de um saquinho, costurado no forro de uma bolsa menorzinha, dentro da sua mochila, uma pedra de safira enrolada em algodão, trazida de Arassuaí, que ficou esperando, guardada em cautela, uma ocasião sensata para entregar o presente. "Diadorim, um mimo eu tenho, para você destinado, e de que nunca fiz menção..." Riobaldo desfez as costuras na mochila com a ponta de uma faca e entregou, em silêncio, a pedra ao amigo. "Diadorim entrefez o pra-trás de uma boa surpresa, e sem querer parou aberto com os lábios da boca, enquanto que os olhos e olhos remiravam a pedra-de-safira no covo de suas mãos."

Dia dos mortos

Hoje é dia de contrição, de falar baixo, de pisar leve, de dizer pouco. Dia de acender uma vela em memória, porque para lembrar e sermos lembrados é que fomos feitos. Hoje é dia de celebrar a memória dos meus mortos.
A primeira morte que senti foi a de Dindinha. Dindinha era irmã de vovó. Na infância, era ela quem lavava os meus pés com água morna, numa bacia esmaltada, todos os dias, antes d'eu deitar. Depois, cantava e fazia cafuné até eu dormir. Quando ela morreu foi muito triste. Minha avó não andava devido a vários derrames e foi preciso levar o caixão dentro do quarto para ela se despedir da irmã. Eu devia ter uns nove anos de idade, mas a cena ficou pra sempre gravada em mim.
Anos depois, foi a vez da vovó partir. Mas antes dela ir, eu a flagrei, muitas vezes, chorando. Perguntava por que e ela com sua fala enrolada, a boca torta pelos derrames tantas vezes repetidos, falava entre lágrimas: "tenho medo de morrer e ocê deixar o Izé sozinho". Não deixei. O receio dela pesava como chumbo em meu coração. Fiquei com vovô até a sua morte, embora meu desejo fosse morar em Belo Horizonte com minha mãe e irmãos que já tinham vindo em busca de melhores condições de vida. Numa noite, eu já dormindo em casa de mamãe, porque sempre vivi dividida entre as duas casas, me chamaram dizendo que vovó estava muito mal. Não lembro quem me levou. Quando cheguei, a casa estava cheia de gente. Vovô sentado na beira da cama, segurando uma vela na mão da vovó. Ela tinha os olhos abertos e olhou para o vovô e pra mim, várias vezes, como que se despedindo. Vovô chorava muito. Ainda chorou por semanas. Eu não sabia o que fazer para consolá-lo, e para distrai-lo, pedi que desenhasse pra mim. Ele fez muitos desenhos, não sei que fim levaram, uma pena não ter guardado.
Depois foi o Jardel, meu sobrinho de quatro anos. Morreu atropelado quando brincava numa rua perto da casa da mamãe. Uma tristeza terrível. Como assim uma criança morrer? Minha irmã foi em Baldim me avisar. Lembro da gente vindo de fusquinha do Culita, que foi nos buscar. O caminho estava deslumbrante com os ipês amarelos floridos, era final de agosto. Nunca esqueci aquela imagem.
Quando eu tinha quatorze anos foi vovô quem partiu. Ele, que assava pra mim, pão da padaria velha com margarina, na chapa do fogão à lenha. Que me levava e buscava na escola. Lembro que dei as suas varas de pescar para o meu amigo Eduardo. As roupas doamos para o asilo.
Papai foi alguns anos depois. O coração enorme por conta da doença de chagas parou de bater. Ele gostava tanto de viver. Lembro dele tentando aprender a tocar cavaquinho para acompanhar a folia de reis. Reformando caixas de madeira para levar legumes e frutas para vender na CEASA. De novo, minha irmã foi me chamar. Dessa vez, eu já morava em Belo Horizonte e alugamos uma Kombi que fez o caminho de volta. Era dezembro, chovia.
Mamãe se foi há 7 anos. É a que mais sinto falta. Quantas vezes, sentadas na mesa da cozinha, em Baldim, ouvia, contrariada, suas 'carteiradas' desconstruindo o amor romântico, uma bobagem, segundo ela. Eu, sofrendo por amor, ouvia ela dizer: "Cê gosta nada, minha filha! Isso é cisma! Você cismou com essa pessoa, só isso! Daqui a pouco passa." E passava. Às vezes demorava um pouco, mas sempre passava. Mamãe faz muita falta. Mamãe que não criou nenhuma de suas filhas para o casamento. "Você precisa estudar, trabalhar, ter sua casa, seu carro, suas coisas, não depender de ninguém", incansável, ela repetia, repetia... Como gostaria de ouvir suas histórias, novamente. Histórias contadas, recontadas e trescontadas, que às vezes, nos deixavam impacientes. Quanta sabedoria, quanto aprendizado.
Hoje, vou acender uma vela para reverenciar a memória dos meus mortos. Como mamãe fazia para o nosso anjo da guarda, para abertura dos nossos caminhos. Hoje, vou falar baixo, pisar leve, dizer pouco. Porque para lembrar e sermos lembrados é que fomos feitos.

Grande Sertão: Veredas

Estou aqui, com o livro "Cartas perto do coração" de correspondências trocadas entre Clarice Lispector e Fernando Sabino. Em 6 de maio de 1946, Fernando escreve a Clarice falando de Guimarães Rosa: "Outro dia saiu um novo livro que está fazendo furor, é o termo. Vocês até possivelmente já ouviram falar, pois é do Chefe do Gabinete do Itamarati, o Guimarães Rosa. Chama-se Sagarana, livro de contos, muito bem escrito, misto de Monteiro Lobato, Cyro dos Anjos, Euclides da Cunha e Mário de Andrade, entenda se possível. Todo mundo está deslumbrado, Álvaro Lins "descobriu-o" e "consagrou-o". Gostei do que li, é realmente uma perfeição de linguagem e expressões do interior de Minas, os diálogos principalmente muito bons, mas não é o meu gênero e penso que você também não gostaria."
Dez anos depois, em carta de julho de 1956, Fernando escreve outra vez sobre Guimarães: "O melhor de tudo, porém, é o livro do Guimarães Rosa, não o Corpo de Baile, que não li, mas o Grande Sertão - Veredas, que estou na metade e é obra de gênio, não deixo por menos. Adeus, literatura nordestina de cangaço, zélins, gracilianos e bagaceiras: o homem é um monstro para escrever sobre jagunços do interior de Minas e com uma linguagem que nem Gil Vicente, nem ninguém. Meu entusiasmo é de quem não terminou a leitura, pode ser que não se sustente, mas duvido. Se recebeu, leia - senão, me diga que mando. No princípio, dez primeiras páginas, é meio assim-assim, custa um pouco a engrenar, mas de repente a gente se embala no ritmo dele e não larga mais."
Dois meses depois, em carta de setembro, Fernando insiste com Clarice: "Você não falou nada sobre o Guimarães Rosa do Grande Sertão - leu? Continuo achando apenas o maior romance já publicado no Brasil - mas isso também é uma longa conversa."
No mês seguinte, em carta de outubro, Clarice responde: "Não, ainda não li o livro do Guimarães Rosa, mas vou pedir lá em casa que me mandem."
E em dezembro de 1956, Clarice envia uma carta ao amigo, toda ela falando de Grande Sertão: Fernando, estou lendo o livro de Guimarães Rosa, e não posso deixar de escrever a você. Nunca vi coisa assim! É a coisa mais linda dos últimos tempos."...

Carece de ter coragem

Riobaldo pagando promessa de uma cura de doença, ia todos os dias, esmolar na beira do rio de Janeiro. Dinheiro quase não aparecia, mas ele apreciava ficar observando o movimento. Lá pelo terceiro ou quarto dia um menino apareceu, regulado em idade com ele e o convidou para a travessia. Reinaldo deu a mão a Riobaldo para ajudá-lo a descer o barranco e entraram na canoinha, uma canoinha de nada, bamba, que se equilibrava mal, e balançava no estado do rio. Riobaldo cheio de medo, inseguro, sem saber nadar, mas com um enorme prazer daquela companhia, que nunca por ninguém não tinha sentido. Ficou ali, contemplando os olhos verdes do menino, dividido entre o receio e o gostar imenso de ficar perto. À medida que remavam em direção ao rio São Francisco, o medo de Riobaldo aumentava, mas a segurança que o menino lhe transmitia era imensa. Riobaldo teve medo, muito medo, medo e vergonha, mas enfrentou o bambalango das águas e realizou a travessia. Carece de ter coragem, carece de ter muita coragem.

Travessia

A cena, ainda no começo do livro, do encontro de Riobaldo e Reinaldo, ainda meninos, à beira do [rio] de Janeiro é emblemática de tudo que virá a seguir. Riobaldo gostava de esmolar na beira do rio, mas tinha muito receio de descer o barranco. No dia que o menino aparece e o convida a entrar numa canoinha de nada [como na Terceira Margem] é ele que dá a mão para ajudar Riobaldo a descer o barranco. Durante a travessia, Riobaldo que não sabia nadar, fica apavorado com o bangobalango da canoinha que saía das águas calmas do de Janeiro para entrar nas turbulentas do São Francisco. O menino então, pousa a sua mão sobre a de Riobaldo e diz: "carece de ter coragem, carece de ter muita coragem". Riobaldo, não só é convidado por Diadorim, como ele fica o tempo todo ao seu lado durante a travessia. Aquele amor em segredo, em silêncio, mas que cuida um do outro, sempre preocupados com a segurança do amigo. Fiquei pensando nos Diadorins que aparecem na vida da gente e nos ajudam a fazer a travessia. Uma travessia para a terceira margem, que não se alcança nunca porque ela é existencial.

Carece de ter coragem

Este final de semana foi o menino que veio e não eu quem fui pra Baldim. Acordei no domingo e o vi, enorme, maior do que a cama, dormindo tranquilo. Fiquei admirando sua beleza e pensando no tanto que caminhamos até chegar aqui. Quinze anos se passaram desde o dia em que ele pousou os olhinhos em mim pela primeira vez. Naquele final de domingo, dia de jogo do Atlético e Cruzeiro no Independência, eu só sabia repetir: "Ele é lindo, ele é lindo!" Era 21 de abril de 2002, e na Maternidade Santa Fé, os estampidos dos fogos do jogo se confundiam com o choro de quem enxergava o mundo pela primeira vez. Ontem, quando o vi dormindo sereno, fiquei mentalmente repetindo a mesma frase: "Como ele é lindo, como ele é lindo!"
Passamos o final de semana assim: eu, insegura e ansiosa com a prova que se avizinha e ele me dando conselhos. Ele é assim desde pequeno. "Para de reclamar, mãe. Reclamar não resolve. Veja o lado bom das coisas. Sempre tem um." E a gente briga, ri, discute, se diverte. No sábado, ele perdeu o ônibus porque na hora de sair ficamos discutindo feminismo. Quem vê, pensa que estamos brigando. Nosso lado "soares" se manifesta, falamos alto, os olhos arregalados. Queria tanto falar com doçura, como a mãe do poema de Adélia, num domingo sem cansaço.
Ontem, enquanto esperávamos o táxi coletivo que o levaria para Baldim, contei pra ele, [mas na verdade, queria era reafirmar para mim mesma] do encontro do menino Riobaldo com o menino Reinaldo na beira do "de Janeiro". Falei do medo de Riobaldo em descer o barranco e do convite do menino para a travessia. Era uma canoinha de nada que balangava nas águas tranquilas do "de Janeiro", o que deixou Riobaldo apavorado, só de pensar o que aconteceria quando entrassem nas águas turbulentas do São Francisco. Riobaldo ansiado querendo voltar. Reinaldo deu ordem ao canoeiro, com uma só palavra, firme e sem vexame: "Atravessa!" Riobaldo apertou os dedos no pau da canoa, fechou os olhos e lembrou que se a canoa virasse, ficaria boiando e era só se apoiar nela, disse. O canoeiro contradisse. "Esta é das que afundam inteiras. É canoa de peroba. Canoa de peroba e pau-d'óleo não sobrenadam". Riobaldo sentiu tontura. Tantas canoas boas no porto, boiantes e tinham escolhido logo aquela de madeira burra. Seu desespero deve ter ficado evidente porque o menino quieto, composto, de frente e olhando para Riobaldo disse: "Carece de ter coragem..." Sentindo já as lágrimas marejarem os olhos, Riobaldo respondeu: "Eu não sei nadar..." O menino sorriu bonito e sereno afiançou: "Eu também não sei."
João, ao ouvir a estória, disse: "Que foda isso, mãe!" Ele que há algum tempo descobriu as metáforas e se encantou por elas. O táxi chegou em seguida e ele partiu. À noite, trocando mensagens sobre as tarefas da semana, lembrei pra ele, mas reafirmando pra mim mesma: "Carece de ter coragem". E ele respondeu com um coração, desses que ficam pulsando..

Assis Valente

Antes de sairmos para o show do Racionais, o menino sugeriu, para já irmos entrando no clima, que assistíssemos ao clipe "Você me deve" ao vivo. A letra fala de alguém que sai à noite em SP, não para badalar, mas para correr atrás do que é seu. "Você me deve" é uma assertiva que me lembra "O cobrador" de Rubem Fonseca. Um cara que cansado de tanto pagar, resolve um dia sair pra comprar: "Estão me devendo xarope, meia, cinema, filé mignon e bu***a"... É um conto que eu adoro, o menino diz que não gosta, acha muito pesado. O segundo verso do rap "Você me deve" fala dos pretos que com seu trabalho conseguem dinheiro. A música traz uma referência à "Camisa listrada" de Assis Valente. Quando digo que o rap me ajuda na educação do menino, é disso que eu falo. Falei pra ele que era um samba famoso. Ouvimos juntos Elza Soares cantando, num arranjo maravilhoso, acompanhada de Violoncelo. O menino fazendo caras e bocas de aprovação, tipo, que música foda. Depois fomos pesquisar sobre Assis Valente, um artista incrível que se suicidou devido a dívidas. São tantas as referências legais nas letras de rap, que penso que o menino aprende mais com as músicas do que com as aulas, na escola. Como diz o Emicida, nossos livros de história foram os discos.

Racionais MC's

Ainda sobre ontem à noite...
É tão bom estar entre os nossos. Não precisar, por exemplo, explicar racismo porque ali todo mundo já tomou um baculejo ou um enquadro da polícia. Tem a ver com um sentimento de pertença e pertença tem a ver com identificação, identidade. Era um público majoritariamente negro e da quebrada. E, apesar de serem jovens em sua maioria, a diferença de idade não me causou nenhum estranhamento. Quando a gente faz a travessia da consciência racial, um processo que, às vezes, leva anos, não tem mais volta. E eu penso que na minha travessia, as letras de rap foram fundamentais na construção da minha subjetividade negra e periférica. Me dá uma alegria imensa saber que ela foi se construindo junto com a do menino. Muito da consciência racial e social que ele tem hoje, foi construída ouvindo rap. Ontem, na Serraria Souza Pinto, onde tantas vezes eu o levei pequenininho, como no evento "Mil Tambores", que ele tocou com sua mini-alfaia. Foram tantos os shows que ele curtiu enganchado no meu pescoço, que nem sei mais precisar. Ontem, ele preocupado em me proteger e proteger a tia, me fez lembrar de como foi importante, que mesmo sob protesto, durante anos, eu segurasse firme em sua mão na hora de atravessar a rua. Ou carregasse a matulinha com papinha, água, suco e fraldas para tantos eventos legais que nós fomos. Teve um momento que um rapaz enorme se postou bem na minha frente e o menino o cutucou e apontou pra mim, como a dizer, "cara, não tô acreditando que você vai ficar na frente dela". E o rapaz meio constrangido se afastou. O show de ontem foi por tanto tempo esperado, que nem sei... Quando ele tinha 12 anos não pudemos ir, pois mesmo acompanhado dos pais, só maiores de 14. Em outras oportunidades não tínhamos grana e ontem, enfim, o sonho foi realizado. É tanto preconceito que envolve a cultura hip hop que eu duvido que essas pessoas tenham alguma vez parado para ouvir as letras dos raps. Muitos falam do respeito aos mais velhos, da necessidade de ouvir os pais, reverenciam as mães que criam seus filhos sozinhas, e como diz o menino, "é a realidade na quebrada, né, mãe?" São letras que trabalham a autoestima de uma galera preta que não tem grana para frequentar terapia. Um orgulho de ser da quebrada que é reforçado a cada letra que ouvimos. E a consciência de que ser pobre não tem nada a ver com uma questão individual ou com a falácia da meritocracia, mas com um contexto de quase quatro séculos de escravidão e uma abolição que nunca se efetivou de fato. Um país que embora tenha sido construído com sangue e suor do povo negro é um dos mais racistas do mundo. Eu, mesmo não torcendo para nenhum time de futebol me emocionei com a festa dos 33 anos da Galoucura. Se engana quem acha que é só sobre futebol. Tem a ver com pertencimento, com coletivo, como dizia uma das faixas que enfeitava o salão, uma bandeira não chega nem se sustenta sozinha no estádio, precisa de muitas mãos. E, embora já estivéssemos cansados pela espera de cerca de duas horas, foi lindo ver a primeira mulher da torcida ser homenageada, a cozinheira (em memória) que nas viagens para outras lugares era a responsável pela comida dos torcedores que iam no ônibus. Foi lindo ver a velha guarda contando suas histórias de jogos de décadas atrás. Foi lindo ver o Leonardo Péricles do "Movimento de luta nos bairros, vilas e favelas" subir ao palco e falar das semelhanças entre os moradores das ocupações urbanas que lutam pelo direito à moradia e os milhares de torcedores excluídos dos estádio gentrificados durante a copa de 2014. Foi mágico quando o letreiro em vermelho escrito Racionais se acendeu e os quatro pretos mais perigosos do Brasil subiram ao palco. Eu, que descobri o rap tardiamente, quando por volta dos 7 anos o menino chegou em casa cantando negro drama, resolvi prestar atenção no que ele estava ouvindo e cantando. Me converti ali. Ali, iniciei a minha travessia. Ver o negro protagonista no palco, sujeito de sua própria história e servindo de referência para outros milhares de negros me encheu de esperança. Ver o RZO cantando junto, todos, com exceção de Mano Brown que vestia branco, vestidos de preto por dentro e por fora, como diz a letra. KL Jay concentrado em suas pick'ups, Ice Blue com seus corpo esguio e longos dreads, Edi Rock com seu cabelo estiloso e suas letras ácidas e Mano Brown com seu corpo e mente malhados, com uma tatuagem no braço que me pareceu o mapa da África. Um intelectual da quebrada que tem teses e dissertações escritas sobre sua trajetória. Tudo isso, sem falar no palhaço que sempre acompanha o grupo, que com sua máscara e seus passos de break revestiu o show de uma áurea de realismo mágico. Nem o som ruim tirou a magia do espetáculo. Das coisas mais legais que eu vivo na criação desse menino são esses momentos de descoberta e fruição que a gente vive junto, onde esquecemos todos os perrrengues pelos quais já passamos e conseguimos até fazer piada das nossas pequenas tragédias. Quando chegamos em casa, eu confessei a ele o baita orgulho que eu sinto, poder dividir com ele momentos tão emocionantes como o de ontem. Eu fico imaginando a bomba que foi na década de 1990 quando Racionais estourou na quebrada, numa época sem redes sociais, sem auxílio dos meios de comunicação hegemônicos, dos quais o grupo tem imensa antipatia. Onde a circulação das músicas acontecia em fitas cassetes, levando meses de um bairro a outro. Os quatro pretos mais perigosos do Brasil, porque, como diz a letra, entram pelo rádio e tomam os filhos, até mesmo dos playboys. "Seu filho quer ser preto, ah, que ironia"... O show foi na verdade uma grande celebração, um grande ritual de um povo que vive à margem, mas que dependendo de como se olha, são centro. Ontem, experenciando no meu corpo aquela eferverscência coletiva eu fiquei pensando que chegará o dia que o povo preto vai se convencer do valor e da força que ele tem e vai descer o morro e não será num dia de carnaval. E eu peço às deusas que eu esteja viva, ainda que velhinha, para poder participar desse momento, porque como diz a letra, "o bagulho é doido e o processo é lento", mas ele já começou. E depois que entramos na canoinha e iniciamos a travessia para a terceira margem, não tem mais volta. Nenhum golpe consegue barrar esse processo. Nenhum! O hip hop é foda!

"Saudade é uma espécie de velhice

Cerca de dez dias longe da casa velha de janela azul e parece que são dez anos. O milho já deve estar enorme e com a chuva que caiu o manacá já deve ter florido. As acerolas temporãs devem ter se perdido porque os pardais e sabiás não consomem na proporção que a natureza produz. As sementinhas vindas da Alemanha germinaram e eu não estou lá pra monitorar. A mudinha de orégano que plantei já deve estar firme e o capim cidreira que meu irmão plantou pra mim já deve estar cheio de folhas. Não pude fiscalizar o trabalho de colocação de terra que o menino fez nos canteiros novos. Será que ficou bom? O bebedouro dos beija-flores deve estar sem água, porque ninguém lembra de colocar quando eu não estou lá. A grama do quintal já deve estar reclamando corte. As estórias do meu irmão, contadas na mesa da cozinha, quando ele chega cansado da lida no campo, estão se acumulando. Isso sem falar nas saudades de Fridinha (que deve estar sentindo minha falta) e do Scooby. Os tocos que meu irmão trouxe do cerrado para o "jardim mandala" que estamos planejando estão esperando as flores. Das conversas com o menino nem vou falar, porque remediamos com os áudios no whatsapp. Mas qu'é'de a 'ave-maria" na hora do "angelus"? Daí, lembro dos conselhos do menino: "Foco, mãe! foco!" "Encare a prova como se fosse seu melhor jogo, independente do nível dos participantes". E procuro sossegar meu coração. Não, não é de um lugar geográfico que eu falo, é existencial. É meu Mutum, minha terceira margem, minha patriazinha.

Travessia

É só uma canoinha que a gente tem, uma canoinha de nada. E nem é de madeira boa, é aquela que se virar afunda. O bangobalango do rio é imenso porque as águas são turbulentas. E mesmo sem saber nadar temos que fazer a travessia.

Prego na parede

Tenho um sonho recorrente há anos: sonho que não tenho casa e alguém me acolhe. Nas duas últimas noites sonhei, novamente. O cenário muda, mas o sonho é sempre o mesmo. Não tenho onde morar e alguém me acolhe. Já combinei com o menino um ritual para o dia que tivermos nossa casa. Já moramos em tantos lugares que não podíamos furar a parede, que quando tivermos um cantinho nosso, vamos fazer o ritual do prego. Eu vou bater um prego enorme na parede da sala, em lugar bem visível e vai ficar lá, marcando o nosso espaço. Ele é mais discreto, quer só colar um pôster do Tupac.

Viver não cabe no lattes

Esta semana, enquanto atualizava o meu currículo Lattes, fiquei pensando no monte de coisa que eu já fiz e não está lá, e que apesar de não contar pontos nos concursos, contribuíram, e muito, para eu ser quem sou. Meu primeiro trabalho numa padaria como balconista. Acordava às 5h da manhã para abrir o estabelecimento e carregava cestos enormes de pães quentes para abastecer as vitrines. As caixas de saquinhos de leite, pesadíssimas, que empurrava, ajudaram a moldar os meus braços. As cuecas, calcinhas e tênis dos patrões que lavei quando fui empregada doméstica. As faxinas que fiz no período que, mesmo com pós-graduação, fiquei desempregada. Os banheiros que lavei numa loja de departamentos no baixo belô quando fui serviços gerais. As crianças que dei banho e fiz dormir quando fui educadora infantil na Prefeitura de BH. Os meninos e meninas que alfabetizei numa escola em Nova Contagem, onde pegava três ônibus e levava três horas pra chegar e fiquei seis meses sem receber salário, porque o prefeito do PSDB, Ademir Lucas, não pagava o funcionalismo. Os vômitos que limpei na escola infantil onde fui servente. O medo que passei quando, telefonista na Telemig, eu largava serviço meia noite e meia e tinha que esperar ônibus no centro da cidade, sozinha, até quase duas da manhã, fugindo das baratas que subiam pelas minhas pernas. O filho que criei sozinha, e que aos 15 anos curte Cartola e Elza Soares. Isso tinha que constar no meu Lattes, não tinha?

O sertão está em toda parte

Nos meus 51 anos de vida, a leitura de "Grande Sertão: Veredas" e o show dos "Racionais MC's" foram duas das coisas mais incríveis que me aconteceram nos últimos tempos. E eu fico aqui, pensando com os meus botões, que Riobaldo e Mano Brown têm muito em comum: dois intelectuais da quebrada, indignados com a injustiça social, pensando questões existenciais. Afinal, as periferias são sertões onde o Estado está ausente e o povo se vira como pode. No início dos anos 2000, meus alunos já falavam pra eu ouvir Racionais, que suas letras discutiam as mesmas questões das nossas aulas de Sociologia. Não me conformo de não ter parado para escutar naquela época, quando o grupo explodia na quebrada como uma bomba. Só fui ouvir, anos depois, quando por volta dos 7/8 anos o menino chegou em casa cantando "Negro Drama". Nunca mais parei... A linguagem do Sertão é tão parecida com a da Quebrada. O Sertão está mesmo em toda parte

Tá tudo lá

Daí que, depois de mais de 20 dias fora, você chega em casa. Nem se livra direito das malas, os cachorros pulando em você e o menino diz: "mãe, senta aqui que eu preciso te mostrar um rap". Deixei as malas pelo chão, Scooby pulando em mim, Fridinha pedindo carinho e o menino me obrigando a sentar. "Prest'atenção, mãe!" Exigiu. O clip, lançado hoje, começa com um jovem pegando um skate e tentando abrir algumas portas fechadas. O refrão diz: "eu só estou aqui porque minha mãe ainda paga aluguel". O rap se chama Sk8 [skate] do Matheus e é do Froid, um rapper foda, da nova geração. "Essa letra é muito nossa vida, mãe!". É uma crônica de um menino que deseja mil coisas e que a mãe não diz não, só diz: "entendeu?" quando o adolescente "só queria um skate igual ao do Matheus". E a letra continua: "Aluguel é um caminhão de frustrante/Bastante mudança/Mas me deu o direito de mudar/Por dentro ou pra algo distante ". O menino me cutucando com cara de quem diz, "mãe, é muito a gente". Em 15 anos ele já morou em 5 cidades, passou por 10 escolas e 10 casas diferentes. A letra continua falando dos desejos do menino de 11 anos que queria carrinho "Hot Wheels" e boneco "Max Steel", mas a mãe "é tipo engole o choro e nenhum pio". Eu disse que nós, na verdade, somos só mais uma das milhões de família monoparentais, chefiadas por mulheres que criam seus filhos sozinhas. Quando eu digo que o hip hop me ajuda na educação desse menino, é disso que eu tô falando. Tá tudo lá

Fácil não é...

Foi na Praça do Comércio, nas últimas semanas em Lisboa, onde fui fazer o meu estágio doutoral sanduíche, conversando com minha amiga, Andrea Moreno, que pensei pela primeira vez na ideia de vir para Baldim escrever a tese. Eu e o menino não tínhamos mais casa, nem móveis, só duas malas, alguns livros e umas poucas roupas, a maioria ganhadas de segunda mão. É verdade que tínhamos acumulado muito, mas eram coisas que não cabiam em malas. Tive que convencer o menino, que não gostou nem um pouco da ideia de sair de uma metrópole mundial e vir para uma cidade no interior de Minas com cerca de 8 mil habitantes. Mas viemos. Chegamos em julho de 2014. A opção por Baldim foi porque sem emprego, vivendo ainda de bolsa, não tinha como montar uma casa que ainda seria provisória. Não foi uma decisão fácil. A casa não é só minha, é a única herança material deixada por meus pais. Uma casa velha, carecendo de reforma. Pro menino foi mais difícil ainda, mas morar perto do pai, dos irmãos, da avó paterna pesou na balança e rapidamente ele fez amigos preciosos por aqui. E claro, viveu amores. Desde então, vamos levando, fazendo um esforço enorme para ressignificar. Morar aqui não é meu sonho de consumo. Sonho com o dia que teremos um cantinho só nosso, com um quarto e um armário para o menino, onde ele possa colar seu pôster do Tupac e tirar suas coisas das caixas improvisadas em armário. Eu, sonho com estantes para os meus livros espalhados aqui, em caixas de papelão; na casa da minha amiga Mariza, e da minha irmã Luia; alguns estão comigo na quitinete onde moro. Meus livros são meus bens mais preciosos. Quando cheguei aqui, o primeiro a me receber no portão foi Scooby. Eu nunca tinha convivido com cachorro. Enquanto escrevia minha tese, ele sempre por perto, sem incomodar, parece que compreendia. Depois, chegou Fridinha, uma cachorrinha de rua, toda perebenta, sempre maltratada pelas pessoas. Quando trocamos olhares, me converti a ela, que sempre vinha em busca de água e comida, até que um dia não foi mais embora. Hoje, até quando vou ao banheiro ela fica na porta me esperando. Agora, além das duas malas e dos livros, temos também uma cachorra. Cães dão trabalho? Muito! O cocô, o pelo espalhado pela casa, o cheiro que fica em tudo é o de menos. Difícil é quando chegam machucados da rua. Scooby já chegou sem parte da orelha e uma vez quase morreu de pneumonia. Sofri junto como nunca imaginei sofrer. Fridinha tem um problema de pele que não consigo dar jeito. Pra mim, eu compro shampoo de cinco reais, o dela custa mais de trinta e é o que ajuda em suas feridas pelo corpo. Por isso ela foi batizada de Frida. Eu tive que aprender a conviver e a gostar desses bichos. É um afeto que eu não conhecia. Assim, como aprendi a ressignificar a volta pr'aqui. Plantar milho, apreciar os passarinhos, caminhar pelo cerrado, foram formas de ressignificação de algo que parecia muito difícil. Por outro lado, estar aqui me levou para um lugar de memória, uma terceira margem, um lugar existencial que é onde recarrego as minhas energias com a coragem que a vida nos exige, sempre. Fácil não é, mas ninguém disse que seria, não é mesmo

sábado, 14 de outubro de 2017

A mineiridade

Depois da visita dos meus amigos cubanos e da confissão de que aqui se sentiram em casa, fui ler a declaração de amor à Minas, que Guimarães Rosa escreveu. Um belo texto, publicado na revista "O Cruzeiro", em 1957, há 60 anos. Guimarães fala da geografia, à personalidade do mineiro. Fala sobre como as montanhas que compartimentam, distanciam, dificultam e isolam, faz do mineiro um espectador, antes de tudo. Pensativo, sério, introspectivo, desconfiado, cauteloso. Fala de suas gentes, dos africanos de estirpe, dos negros reais, das Minas moçambiqueira e conga. Fala dos seus belos rios, dos nomes de suas cidades, do sul cafeeiro, da fortaleza do triângulo, do oeste calado, do noroeste dos chapadões e dos campos-gerais. E fala do pedaço que conhecia melhor, o centro do estado, o vale do Rio das Velhas, aberto à alegria de todas as vozes novas, o meu pedaço. Guimarães fala de como o mineiro é bondoso, comedido, mas também engraçado, irônico. É justo, leal, prudente, respeitador, roceiro, sensato, trabalhador, tímido. Que acha mais importante ser, do que parecer. Que possui uma filosofia cordial, sincera. O mineiro é para Guimarães, aquele que não tolera tirania, mas que se precisar brigar, briga. É aquele que busca o essencial, não as cascas. Que aprecia um enigma, picado como o mineiro pica o seu fumo de rolo. Para Rosa, o mineiro sabe que a vida dá muitas voltas, que tudo pode tornar a voltar. Minas, que na verdade, são muitas, é desconfiada. Dá a poucos a oportunidade de conhecer as suas várias faces. Não sei, mas fiquei com a impressão que meus amigos foram mordidos pelo bichinho da mineiridade. Se voltarem, é sinal de que também pegaram gosto pelo enigma.

Travessia

Esta é a estória de um menino que veio de longe fazer a travessia. Uma viagem inventada no feliz, produzida em caso de sonho. Ele sorria, gargalhava alto. Na sala de aula se entusiasmou, levantou da cadeira, foi ao quadro, pegou o giz, falou do que mais gosta, confortalvelzinho, como o jeito de uma folha a cair. Coisas benfazejas estavam por vir, tudo numa harmonia prévia. O menino atento para ver as novas tantas coisas que aos seus olhos se pronunciavam num transbordamento e já o chamavam para passeio. O menino repetia em intimidade o nome dos lugares, das coisas. A lagoa, a igrejinha, o estádio, os prédios grandes, os corguinhos todos enterrados, a roda gigante no parque, a serra que deu nome ao arraial, uma reminiscência de ipês atrasados em sua floração. A praça, o mercado, os queijos, o feijão no tropeiro e no tutu, a carne de porco, o povo morando nas ruas, as desigualdades, as injustiças, as problematizações. Os palácios, o parque, o burburinho das famílias com suas crianças em dia de feriado. Sentindo todos os músculos das pernas subiu e desceu ladeira, entrou e saiu de rua. Sentiu o peso de um lugar fundado sob o signo da violência, exterminando primeiro os povos originários, depois os negros escravizados, transplantados do continente mãe. Ouviu poesias na voz de seus autores, Drummond, Guimarães, viu a beleza do artesanato do 'Valo', 'incelente maravia'! Experimentou muita cachaça, tentou registrar tudo o que viu em retratos para gastar depois, no quente das lembranças. Viu a cidade lá de cima, ao pé da serra e entendeu o seu nome ao contemplar o belo horizonte. Seguiu com a alma aumentada e com sensações que criarão raízes em seu peito. Esta é a estória de um menino que veio de longe, que fez a travessia. É a estória de uma viagem inventada no feliz.

domingo, 24 de setembro de 2017

"Repetir, repetir, até ficar diferente"

Acordei com o barulho da chave na porta. "Cheguei, mãe!". "Que bom, meu filho". O silêncio da cidade quebrado pelo som vindo de uma casa vizinha. Festa de quinze anos. Rolou homenagens, valsa. Os gritos adolescentes chegando até aqui. Depois, foi a vez do funk. Imaginei as mocinhas e rapazes "de família", com suas roupas de gala dançando até o chão. Lembrei da letra certeira: "é som de preto, de favelado, mas quando toca, ninguém fica parado". E querem proibir... Incomoda só quando é na favela, né? O menino bateu na porta do meu quarto. "Mãe, posso conversar com você um pouquinho?" "Claro, filho!". E contou da viagem da última metáfora. "Sabe aquela rua que você morou, mãe?" Disse como acertei dando a ele o caderninho artesanal, personalizado, para os seus escritos. "Mãe, eu sou muito seu filho. Tô indo pelo mesmo caminho, vendo poesia em tudo". Depois, se despediu e foi deitar. Dessa vez, eu que bati em sua porta: "Filho?" E li Adélia Prado pra ele: "A poesia me pega com sua roda dentada..." "É tipo isso mesmo, mãe!" Li "Antes do nome": Quem entender a linguagem entende Deus/cujo Filho é Verbo. Morre quem entender./A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,/foi inventada para ser calada./Em momentos de graça, infrequentíssimos,/se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão/Puro susto e terror." "Mó da hora isso, mãe." Dei boa noite e saí. "Meu filho, reparou no céu?" Gritei da cozinha, enquanto tomava um copo d'água. "Reparei sim, mãe. Tá lindo! Lembrei dele pequenininho, eu buscando na creche depois do trabalho, e ele me apontando a lua.
"Repetir, repetir até ficar diferente"... Educar é isso.

Chá

Não acordei bem. É a lua, tá virando. Lua nova, forte, mexe muito comigo. Preparei um chá. Como aqui não tenho um canteiro de hortelã, foi de saquinho mesmo. Mas o sabor é tão diferente, até a cor é estranha. Eu juro que tento ressignificar, mas sinto tantas saudades da minha patriazinha. Sinto falta do silêncio, dos pardais invadindo a cozinha, do beija-flor pousado no bebedouro, suas garrinhas seguras na haste amarela. Ele enfia o bico na flor artificial, sobe uma bolhinha na água e ele levanta a cabecinha. Parece um balé. Eu fico horas observando e me espantando, sempre. E o menino? Qu'é-de ele me apresentando as novidades na cena do rap? Criando coragem para me mostrar suas rimas? Fridinha e Scooby me rodeando, buscando presença, aconchego. Nem vou falar da janela azul de tramela, meu portal para Nárnia. Hoje, não tô boa, não. Vou tomar o chá.

Qu'é-de?

O entardecer aqui é triste. Nessa hora, o barulho dos carros na avenida aumenta. É hora do angelus, mas não tem a Ave Maria no alto-falante da igreja. Os prédios me roubam o pôr do sol. O cachorro do vizinho, que não para de latir, coitado, aumenta a saudade do Scooby. Qu'é-de Fridinha querendo colo? Qu'é-de meu irmão chegando da labuta cansado, sujo e cheio de histórias? Qu'é-de o menino perguntando pela janta?

Abandono

Neste semestre ainda não consegui estabelecer uma rotina, e como é facinho arrumar desculpas para não fazer exercício físico, parei a caminhada. Só hoje, consegui vencer a vozinha que há semanas me convence a não ir, e fui. Seguindo sugestões, fui caminhar na pracinha do aeroporto da Pampulha. Quinze minutos até lá, seis voltas na praça, quinze minutos de volta. Pronto, uma hora de caminhada. Quatrocentos calorias perdidas. Chegando lá, uma placa me chamou a atenção: "A Infraero cuida dessa praça". O correto seria: a Infraero abandonou e privatizou essa praça. Além de estar abandonado, metade do espaço foi cercado e deu lugar a uma estacionamento. Eu me confundia várias vezes ao tentar contornar a praça e entrava no estacionamento. Várias câmeras vigiam o local. Os carros estão super protegidos

Jantar

Ontem, eu levei o menino pra jantar num restaurante. Simplesinho, mas com toalha na mesa, garçom... "Mãe, eu fico tão incomodado com alguém me servindo. Quase digo pra ele, pode deixar aí, mano, que eu mesmo me sirvo." O prato veio bonito com coisas que ele gosta. "Muito melhor do que a marmita que você come em Baldim, né filho?" "Ah, mãe, eu não fico comparando as coisas, não. Aqui tá bom, lá também. Eu vivo o que o momento me reserva, tá ligado?"

O cobrador

Rubem Fonseca tem um conto que eu gosto muito: "O cobrador". O conto começa com uma visita do protagonista ao dentista. Depois que ele se acomoda na cadeira do consultório, o dentista olha com aquele espelhinho e pergunta como alguém pode deixar um dente ficar naquele estado. Quando li esse conto a primeira vez, lembrei de um dia que num consultório, desses de bairro, eu também ouvi da dentista: "Como alguém deixa um dente chegar nesse estado?". Ela ainda acrescentou: "Essa ainda vai voltar aqui para colocar dentadura, porque todo dia arranca um dente". O cobrador de Rubem Fonseca, também ouviu algo parecido: "Vou ter que arrancar, ele disse, o senhor já tem poucos dentes e se não fizer um tratamento rápido vai perder todos os outros, inclusive estes aqui" — e deu uma pancada estridente nos dentes da frente do "cobrador". Quando informado do valor da extração, o paciente disse: "Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, Agora eu só cobro!" Lembro também, de uma edição do Big Brother em que uma babá, a Cida, entrou na Casa. Durante o programa, seu rosto inchou por causa de um dente inflamado. Ela teve que sair para ir ao dentista. No programa ao vivo, Pedro Bial fez a mesma pergunta: "Como você deixou esse dente ficar nesse estado"? Quando Lula foi conduzido coercitivamente, e mais tarde, no mesmo dia, falou no Sindicato do Bancários em SP, ele contou de um agricultor que o visitou no Palácio do Planalto. Num gesto de cortesia, o presidente ofereceu ao visitante algumas castanhas que estavam em cima da mesa. O moço lhe respondeu que não comia castanhas porque não tinha dentes. Lula então, pediu para a sua assessoria que providenciasse uma prótese para o agricultor. Mamãe, já no final da vida, começou a perder os dentes e por isso tinha muita dificuldade em comer certas coisas. Sua comida tinha que ser extremamente cozida para ajudar na trituração. Esses dias, vendo o Rafael Braga e a mãe dele, com seus sorrisos tímidos e suas bocas murchas essas histórias todas vieram à tona, e eu fiquei pensando: será que não tem um/a dentista/a, filho/a de deus, para providenciar uma prótese dentária para o Rafael e sua mãe?

Quadro

Eu queria saber descrever com exatidão o quadro que agora eu vejo. A janela azul de tramela está aberta. Por ela vejo parte do morro, que embora ressequido, segue bonito. O silêncio habitual ressalta o som do motor da velha geladeira marrom. Os ímãs que foram de mamãe - uma pequena cruz, duas estrelinhas sorrindo, uma joaninha, uma arara verde, duas bonequinhas de crochê, agora convivem com os do menino: adesivos de Slipknot, The Who, Pink Floyd e Jimi Hendrix. O sabiá insiste chamando chuva. Scooby ressona no meio da cozinha. Fridinha está no sofá. Toda a beleza do mundo repousa nesta xícara de café. Sorvendo o amargo e o doce da vida, concilio minh'alma e estou pronta para voltar à capital.

Acalanto

O barulho da chave na porta é um acalanto quando se tem filho na rua.
- Cheguei, mãe.
- Que bom, filho. Suspirei aliviada.
- Mãe, quando eu tava virando a esquina, passou o carro da polícia. Eu, automaticamente, tirei o capuz, na hora.
É tão cruel isso. Um jovem negro correr risco de vida porque está de capuz ou de boné. São marcas da sua identidade juvenil, mas que os coloca em risco diante dos representantes do estado, que deveriam zelar por sua segurança. E olhem que tô falando de uma cidade de sete mil habitantes, isso contando os distritos. Você pode achar que estou exagerando, mas eu mesma quase fui presa por desacato, quando recebi a visita de um amigo que foi abordado de maneira truculenta porque a polícia recebeu uma ligação dizendo que tinha um elemento suspeito na cidade. Adivinha qual era a cor dele?

O hip hop é foda!

Cheguei ontem, por volta das quatro horas da tarde, e mal tive tempo de colocar as sacolas na mesa da varanda, os cachorros já pulavam em mim. Scooby cinco vezes maior do que Fridinha, leva sempre vantagem. Não conhecia o afeto dos bichos até me converter aos cachorros. O menino abracei depois, tendo que ficar nas pontas dos pés porque já passa de um metro e oitenta. Eles crescem sem pedir licença, alguém já escreveu.
Mãe, tenho tanta música pra mostrar. Muitos lançamentos essa semana, né filho? Não tive tempo de ouvir. Então, senta aqui, você precisa ouvir essa. E colocou "Finanças" do DV Tribo. Nos versos do Djonga e da Clarinha o rosto dele se iluminava. Depois colocou "Flow Lázaro Ramos", uma brincadeira do rapper Froid com a entrevista de Criolo, no Programa Espelho, sobre ascensão da classe C e a fala do rapper que virou meme: "Lázaro, alguém nos ajude, a entender"... Daí, veio o verso:
"Lázaro avisa pra Thaís
Que eu to muito feliz em ver os dois juntos
Desde Cobras e Lagartos, eu torci por vocês
Mano juro, que orgulho
Esquece isso, trampar pra Globo
Eu não te julgo, também me submeto
Pois todo preto, só quer ar fresco
Família perto e um lugar seguro
Preto, negro, crespo, praga
Faca nas track no estúdio do Batma'
Porque não podemos ligar pros home'
Olha o que fizeram com Rafa Braga
Desculpa eu, quando eu falei da prata
Tava cego, isso não muda nada
Ainda me olham do mesmo jeito
É muito pior do que eu imaginava"
Nessa hora, o menino fazia caras e bocas de aprovação, tipo, que verso foda, mãe! Tipo, representatividade importa. E eu, concordando: Sim, filho. Importa, muito! "Esú" tem que ouvir com calma, mãe, em silêncio, sozinho, não dá para desperdiçar música, é um momento de celebração, tá ligada? Sim, tô ligada, filho. O menino fechou a playlist com o lançamento do MC Well (que eu não conhecia). O rap "Muito bem feito" tem a participação do Djonga. Os versos fazem referência, entre outros, a Frantz Fanon (Frantz Fanon que o diga/tira essa máscara branca) e bell hooks (Os menor leu bell hooks/e foi minha a ideia, irmão). Nessa hora eu não aguente, pausei o vídeo, quebrei o clima e intervi: Meu filho, "Pele negra, máscara branca" é um livro do Fanon. Apresentei seminário no doutorado sobre ele. Ameacei buscar o livro na estante, ele me interrompeu, tipo, agora não, mãe. Continuei sentada, mas acrescentei: acabei de discutir bell hooks com os meus alunos. Você precisa ler, filho.

Bate no que você parir, desgraçado!

O barulho da comida na boca do filho a acalentava. 
- Que delícia comer sua comida, de novo, mãe! Você não faz ideia de como a da prisão é ruim.
- Eu caprichei, meu filho. É tão bom ter você em casa, novamente. O que fiz esse tempo todo foi só chorar. Tristeza demais filho da gente, que não é bandido, ser condenado como traficante. Enquanto observava o filho, ela pensava se tinha tomado a decisão correta quando decidiu sair de Aracajú e vir para a periferia da cidade grande. Mas fazer o que lá? Ela sem estudo, o que sabia fazer é revirar lixo, catando latinha e peças usadas. Aprendeu com a mãe e passou o ofício para o filho que vendia o material reciclado na Praça XV. Três gerações de catadores. Sentiu um nó na garganta ao lembrar da fome que não a deixava dormir e que se agravava a cada vez que sentia o cheiro do café sendo coado na casa da vizinha. Fome não é coisa nem pra bicho passar, muito menos pra gente, é de mexer com a bile de qualquer um. Mas, o filho não era bandido. Foi preso no meio de uma confusão de gente em 2013, sem nem saber o que era protesto, muito menos coquetel molotov. Quando lembrava que os gambé, filhos da puta, tinham batido no filho, ela recordava a mãe com o corpo pesado lhe protegendo dos socos do padrasto e gritando com a voz grave e rouca:
- Ocê vai bater no que ocê parir, desgraçado!

É canja

A mãe, ansiosa, esperava na porta do barraco, quando avistou o filho. Uma pequena cruz presa por um fio fino, pendia sobre a camiseta branca, provavelmente presente de algum religioso. Correu ao seu encontro apertando seu braço, mais fino do que quando foi preso. Se abraçaram e choraram, depois começaram a rir juntos. Ela notou dentes a menos na boca do filho. Deve ser a tuberculose que ele contraiu na cadeia, pensou. Ele entregou para a mãe um envelope pardo com os medicamentos que a médica do sanatório penal providenciou antes dele sair da prisão. 
- Que cheiro bom é esse, mãe?
- É canja de galinha. Comprei na oferta do mercadinho aqui, na Vila Cruzeiro. Ontem, consegui muitas latinhas. Você precisa ficar bom logo, para me ajudar a catar, viu?
O advogado desviou o olhar de mãe e filho, olhando pela janela do barraco e engoliu o choro.

Novo cantinho

Vou tentando imprimir minhas marcas no novo cantinho que é temporário. Até parece que temporário é meu definitivo. Na primeira noite aqui, os sons novos me assustavam. O que pensei ser uma barata voadora era a persiana batendo no vidro da janela. Estico o pescoço para ver o pôr do sol na paisagem que os prédios insistem em me roubar. A mudinha de boldo cheiroso que a capitã me deu no final da Festa está num copo com água. Já é possível ver uma raizinha brotando. Boldo cheiroso. Também conhecido como Tapete de Oxalá... Nome tão bonito... O Menino Jesus de Praga e o São Miguel Arcanjo do menino me fazem companhia. Estão ao lado de São Benedito, o mouro. Gosto muito dos santos pretos. Me falta uma Santa Efigênia, a santa etíope. Sou uma agnóstica muito fajuta.

Sá rainha

Hoje foi dia de almoçar em casa de Sá Rainha Conga. 
O sol à pino refletindo nos espelhinhos dos capacetes dos dançadores de Congo nos cegavam. 
Ou talvez foi a beleza que normalmente não enxergamos, branqueados demais que somos.
Nossa chegada foi anunciada pelo dono da casa com foguetório. 
Sá Rainha veio abrir o portão. 
Mesa farta servida pelas Anas.
Numa inversão ensinando humildade, Sá Rainha serviu os devotos.
Depois, agradecimentos, choro e despedida.
Até para o ano se Deus quiser.

Capricho define

Enquanto algumas fardas secam ao sol, outras estão sendo passadas. Na cozinha o almoço é feito em mutirão. Uns catam feijão, outros cortam abóbora e quiabo e há quem prepare a carne. Do peiji chegam vozes de alguém rezando. As crianças descansam deitadas à sombra, pois já, já será um sobe e desce de morro, tocando e cantando para buscar reis e rainhas. Almoço pronto é hora de rezar para comer. Tem pra todos que estão e pra quem mais chegar. Tudo é um grande movimento! 
Viva Santa Efigênia, a Santa pretinha, que hoje é o dia dela.

Viva os pretinhos do Rosário

A claridade do dia forçando a entrada pelas frestas da janela de madeira formou um desenho bonito no quarto escuro. A cidade era um silêncio só. Nem parecia a mesma da noite anterior. Fui dormir ao som dos tambores das dezessete guardas de congado da cidade. Dezessete. Ver os negros e negras ocupando a Praça XV de Novembro, onde por várias vezes já foram impedidos de tocar, tem um valor simbólico enorme. A Festa, que já foi proibida, atacada, segue resistindo há séculos através da fé e da força do povo negro.
Viva os pretinhos do Rosário!

Festa do Congo

A primeira vez que vim a Oliveira/MG, foi em 2011, em trabalho de campo. Depois, perdi a conta de quantas vezes refiz o trajeto vindo de BH, a bordo do ônibus da Saritur. Hoje, quando virei a esquina da Casa Azul de Pedrina e vi no varal esticado na lage, as fardas azuis e brancas, meu coração se encheu de alegria. Da chaminé saía uma fumacinha denunciando panelas no fogo; a sala feito capela estava decorada com enfeites novos; as caixas reformadas pendurados na parede; Sá Rainha Cleusa com sua voz mansa contando alegre: vou ser vovó; Nega, a bandeireira, às voltas com seus rosários; Ana Júlia já andando e falando; e William agora é rei e coordenador do Congadinho.
Que alegria participar dessa irmandade.
Viva os pretinhos do Rosário!
Viva os Santos negros!
Viva quem gosta da Festa!
E viva também quem não gosta!

Eu sou o outro

A gente tenta se proteger para não adoecer. Vai ver Grupo Corpo, se enfia na literatura e na poesia, faz curso de escrita, se cerca de gente legal, vai passear no cerrado com os irmãos, tem altas conversas com o filho, recebe o afeto dos bichos. Mas daí, quando você abre o computador, a primeira notícia que vê é: "140 tiros - foi assim que mataram os 10 no Morumbi". Uma das vítimas chegou a receber 33 tiros, outra 27, 13 projéteis nas costas. Lembrei do conto "Minieirinho" da Clarice Lispector:
"Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro."

Guarda-roupas

Você que cresceu tendo um guarda-roupas no quarto, me diz, como é? Hoje, uma amiga me enviou uma foto com a seguinte legenda: "meu primeiro guarda-roupas". Um armário pequeninho, branco, estilo Casas Bahia, uma meia porta, duas prateleiras e três gavetas. As coisinhas dela arrumadas, os cremes... Eu chorei! Chorei porque me vejo tanto na história dela. Os pais vieram do Vale do Jequitinhonha. Semestre passado ela se graduou na UFMG. Postou foto entre os pais, orgulhosos, exibindo o certificado. Só as deusas sabem o caminho que ela trilhou para chegar até aqui. Penso que, mais do que nunca, precisamos pensar nossos lugares de privilégios. Privilégio: do latim "privilegium" - "condição de vantagem atribuída à uma pessoa ou grupo em comparação aos demais. O privilégio garante ressalvas e imunidades que destacam o indivíduo perante outros, dando-lhe direitos especiais além dos comuns a todos." Minha amiga esperou 28 anos para ter seu primeiro guarda-roupas. 28 anos. Será pago em seis prestações. Ultimamente, como diz o rapper Delartovi na música "Tilelê", vejo gente escondendo privilégio para pagar de oprimido.
Faz isso, não. É muito feio. 

Seguimos resistindo

Eu conversava com Ícaro no intervalo do almoço, quando meu sobrinho enviou os áudios. Ícaro é meu amigo dos tempos de mestrado, em Viçosa. Em 2010, teve sua dissertação de mestrado sobre o quilombo de Santo Antônio dos Pinheiros Altos premiada pelo Ministério da Cultura. A mensagem do meu sobrinho dizia: "Tia, Delartovi lançou! Legal demais, viu?" E enviou seis áudios com as músicas do novo trabalho do rapper de Nova Lima. "Nuuuuu, loko!" Impactado, Joel procurava palavras para adjetivar o trabalho recém-lançado. Eu já tinha escutado. Escutei cedinho antes de sair para dar aulas, pois não consegui ficar acordada até o lançamento que aconteceu no começo da madrugada de terça-feira. O álbum chama-se Emmet Louis Till e é uma homenagem ao garoto que há 62 anos, no dia 28 de agosto de 1955, foi assassinado acusado de um crime que não cometeu. Era um menino negro de Chicago, de férias na cidade branca do Mississípi. Só o título já é motivo suficiente para ouvir o novo disco. Me despedi de Ícaro, não sem antes ele anotar o nome do rapper para ouvir depois. Segui para a aula de Mãe Conceição, no curso "Catar folhas: saberes e fazeres do povo de axé". Lá, ouvi a história do quilombo urbano "Manzo Nguzo Kaiango" e sua resistência ao longo dos anos a todo tipo de violência, inclusive do Estado. A comunidade já foi expulsa do seu território e teve seu espaço sagrado violado. Mas seguem lutando. Mãe Conceição lançará livro, em breve, contando a história do seu terreiro. Depois da aula, segui com Mariza para o evento, "A resistência das mulheres negras na produção literária", com as escritoras Cidinha da Silva, Jussara Santos e Madú Costa. Mesa, lindamente, mediada por Luana Tolentino. Etiene Martins, da livraria Bantu, estava lá com os livros da Mazza. Depois da mesa aconteceria o show "Anganga" da Juçara Marçal, mas não tinha mais ingresso. Ainda ficamos por ali um tempinho, circulando entre aqueles blacks, crespos e dreads lindos. Voltei pra casa ainda mais convencida que, apesar do mundo lá fora explodir em bombas e golpes de toda natureza, o povo preto segue resistindo, como sempre fez. 

Lendo mulheres

Depois que comecei a ler mulheres, ficou muito difícil ler homens. Depois que comecei a ler mulheres negras, ficou mais difícil ler mulheres brancas. Explico. É que cansei de não me sentir representada. Imagine o que é isso? Uma vida inteira sem se ver na TV, nas revistas, no livro didático, na literatura. Daí, o meu espanto quando leio Conceição Evaristo, Chimamanda, Futhi Ntshingila, Carolina de Jesus, Scholastique Mukasonga. Ver a mulher negra para além dos estereótipos, em toda sua complexidade, dá uma quentura no coração. Ontem, eu lia "Onde estaes felicidade", da Carolina. Ela conta que queria construir o seu barraco, mas não tinha dinheiro para comprar tábuas. Ela foi onde estavam construindo uma igreja e pediu. Como não tinha dinheiro para o transporte, ela mesma carregou a madeira, à noite, depois do trabalho. Fazia duas viagens com as tábuas na cabeça, da Avenida Brasil até o ponto final do Canindé. Ia dormir às duas horas da manhã. Ela mesma construiu o seu barracãozinho: um metro e meio por um metro e meio. Terminou num dia de domingo. A favela estava cheia de homens e nenhum a ajudou. Sobrou uma tábua de cerca de quarenta centímetros de largura, era a cama onde ela dormia, sem colchão. Eu lembrei quando mamãe começou a construir o banheiro aqui de casa. Ela começou e não deu conta de terminar. Na ápoca, éramos estudantes na UFMG, bolsistas da Fundação Universitária Mendes Pimentel e a grana era muito curta. Mamãe me chamou para ir com ela até a prefeitura de Baldim pedir ajuda para terminar o banheiro. Eu senti muita vergonha e não tive coragem. Ela foi sozinha. Mesmo com vergonha e sem meu apoio moral, Dona Dulce foi até lá e esperou, pacientemente, para falar com o prefeito. O pedido foi atendido. Naquele tempo existia uma política pública de construção de sanitários. Quando ela chegou estava radiante de alegria. Quando leio Carolina ou Scholastique falando de sua mãe Stefânia, lembro o tempo todo de Dona Dulce. Daí, fica difícil voltar para os livros de homens-brancos-classe-média com seus problemas existenciais. Personagens que não fazem comida, não lavam sua roupa, não limpam sua casa. Deve ter alguém que faz isso, mas nem na literatura essas pessoas aparecem.  Por falar nisso, é hora de começar o almoço.

Amizade

Ontem, conversando com o menino, falávamos como, às vezes, reencontramos amigxs de longa data e não conseguimos retomar a amizade. Mudamos nós, mudou o outro e alguma coisa se perdeu. Noutras vezes, a amizade é retomada do ponto onde parou, independente do tempo da distância. Há ainda, amigxs que querem que você conheça xs amigxs delx. Já fui apresentada a muitas pessoas que achavam que eu precisava conhecer. Algumas amizades rolaram; outras, não. Dia desses, um amigo me disse a respeito de uma amiga dele que queria muito que eu conhecesse: "Vocês são muito parecidas, ou vão se amar ou se odiar". Tem isso. Rola também de não poder misturar certas amizades. Você dá super conta da pessoa, mas seu/sua amigx, não. É preciso saber respeitar. Eu penso que dividir amizade, ou melhor, dividir não, multiplicar amizade, é um ato de generosidade sem tamanho. Porque se "amizade dada é amor", nesses tempos brutos, "qualquer amor já é um pouquinho de saúde, descanso na loucura".

Vitimismo

Há alguns anos, ouvi de um professor que eu não podia me vitimizar. Isso porque, eu havia assumido, em sala de aula, que tinha muita dificuldade em ler em inglês. E antes que perguntem, não, não sei francês, nem inglês, mesmo tendo um título de doutora. Sim, passei nas duas provas que fiz para seleção, mas daí, a ler com desenvoltura um texto acadêmico, são outros quinhentos. E não, eu não acho que é preciso saber inglês ou francês para escrever uma boa tese ou dissertação. 
Se não aprendi, não foi por que não quis. Foi porque, enquanto meus colegas podiam ficar na Universidade nas aulas de línguas do Cenex da Faculdade de Letras, ou já tinham morado fora num tempo que nem existia o Ciências sem Fronteiras, eu tinha que sair correndo, antes da aula terminar, e atravessar a cidade para trabalhar. Hoje, eu teria todos os argumentos para discutir com aquele professor, mas naquele dia, após a aula, eu só chorei. Fui chorando encontrar com o menino que chegava da escola e foi ele, do alto dos seus nove anos, que segurou minha mão e me consolou: “Mãe, olha onde você chegou!” E contou uma história que ouviu da professora sobre um rei que distribuiu sementes para seus súditos. E ainda acrescentou: “Sua semente vai germinar, mãe! Eu vi você plantando!” Quando vi uma criança fazendo um papel que deveria ser meu, engoli o choro, apertei a sua mão e subimos juntos a ladeira em direção à quitinete onde morávamos. Hoje, anos depois, depois de ler e ouvir muito sobre branquitude e privilégios, eu adoraria reviver aquela cena e argumentar com o professor tudo que não consegui dizer naquele dia

Eclipse

Estou há dias em eclipse. O fim de semana foi intenso com Baldim vivendo a tradicional "Festa de Agosto". As alvoradas com foguetório, toques de sinos e banda de música remexeram lembranças. A guarda de catopê e de congo descendo e subindo a minha rua indo buscar reis e rainhas. Da cozinha de casa ouvi a missa conga com os tambores, que por tantos anos foram proibidos, tocando dentro da igreja matriz. Na mesa do café ou na faxina da casa, reflexões profundas ao som de música negra, numa playlist maravilhosa do menino no papel de DJ. Duas aulas poderosíssimas com a capitã Pedrina, na disciplina "Catar folhas: saberes e fazeres do povo de axé", com salas cheias e alunxs de todas as áreas da Universidade, até da engenharia aeroespacial. Reunião do coletivo "Corisco", um espaço de resistência dentro da Universidade com pessoas dispostas a correr risco epistemológico e olhar para grupos que normalmente a Universidade não costuma olhar, buscando justamente um alargamento da base epistêmica. E ontem, um encontro potente no coletivo "Pretas Poetas" realizado por e para mulheres negras. Sim, eu sei que lá fora o mundo explode em bombas e em golpes de toda natureza, mas tem muita gente produzindo muita coisa bacana e isso vai reverberar de alguma forma. 

"Toda mãe é solteira"

Criar um filho sozinha não é fácil. Eu olho para o menino, hoje com 15 anos, e não acredito que chegamos até aqui. Lembro dele pequenininho e da aventura que era ir ao sacolão ou ao supermercado. Trazia as compras junto com ele no carrinho e era uma maratona subir 4 lances de escada. Primeiro eu subia com ele e o deixava no berço, depois descia correndo e subia com o carrinho e as compras, rezando para que, nesse intervalo de minutos, não acontecesse nada com ele. Para eu tomar banho, colocava ele no carrinho dentro do banheiro e à medida que ele ia crescendo ele ia aprendendo a se desvencilhar do cinto e se enfiava embaixo do chuveiro comigo, de roupa e tudo. Hoje, quando ele senta na mesa da cozinha e conversa comigo sobre feminismo, machismo, racismo, apropriação cultural, privilégios, branquitute, eu penso no tanto que valeu a pena cada minuto investido na criação dele. 

Nossos passos vêm de longe

Naquela manhã, quando o caminhão parou em frente à quitinete, eu não tinha certeza se fazia a escolha certa. Nossos trenzinhos - duas camas de solteiro, uma estante para os livros, um geladeira semi-nova comprada em 10 vezes no cartão de uma amiga, um fogão azul com a porta do forno estragada, espólio ainda do primeiro casamento, duas caixas com os brinquedos do menino, meus livros e umas poucas vasilhas, seguiram na frente. Dias depois, seguimos nós, de ônibus. O menino no colo, poltrona do corredor, que depois trocamos com a moça sentada na janela, porque o pequeno, no pássaro verde, começou a enjoar nas intermináveis curvas a caminho da zona da mata mineira. Fomos muitíssimo bem recebidos. Almenara nos esperava na rodoviária. Ela providenciou gás para o fogão e seu filho, Sávio, montou nossas camas e instalou o chuveiro. Depois, meu amigo Samuel veio ver se estávamos bem acomodados. Foram quatro anos na cidade. Lá, fizemos amigos, dei aulas, o menino aprendeu a nadar, a andar de bicicleta, a se equilibrar em cima do skate, a dormir na casa dos amiguinhos. Às vezes chorava e eu tinha que buscá-lo. Ao final de 4 anos, dissertação defendida, lá fomos nós, novamente, dessa vez para o Sul do país. Nossos trenzinhos tiveram que ficar, vendidos a preço de banana para um topa tudo. Chorei no apartamento vazio. Precisei desapegar e conseguimos mudar para Floripa com duas malas, apenas. Tá certo que os livros ficaram na casa da Mariza, onde estão até hoje, esperando nossa cantinho definitivo que tem demorado a chegar. Entulhando espaço na casa da minha irmã ficaram alguns trabalhos de arte do menino, como uma releitura do Miró que ainda sonho em colocar na moldura. Sob a guarda dela tem também, umas fotos, discos, fitas e uma colcha feita pela cooperativa de mulheres "Mãos talentosas" que misturam o crochê com um nanduti, um bordado de tradição guarani. A colcha foi presente da amiga, Ana Rocha, lá de São Felix, interior da Bahia. Como se desfazer de um negócio desses? 
Impossível! É um trabalho lindo de viver. Depois, lá fomos nós para o outro lado do atlântico. Fomos com duas malas e voltamos com três por conta dos livros adquiridos. Viemos direto para Baldim onde vim escrever a tese. E aqui estou, há 3 anos. Aqui, me sinto em casa. Uma casa que nem é só minha. Herança de mamãe, que fez muito sabão de coco para pagá-la, meu mesmo, por direito, é só 10% dela, uma tirinha de nada. Fico com a parte da janela azul com vista para o morro, onde os beija-flores, diariamente, me trazem poesia em troca de um pouco de água; e um cantinho no quintal onde as perpétuas resistem ao sol quente e ao tempo das secas. 
O aprendizado depois de 10 anos, 10 casas, 5 cidades e 2 países? As malas precisam estar sempre leves. Lembrei disso tudo esses dias, enquanto atualizava e documentava meu lattes para mais um concurso e achei o certificado da prova de inglês do mestrado. 
Nossos passos vêm de longe.

Patriazinha

Baldim me faz tão bem. Adoro esse silêncio que escuto agora, só quebrado pelo som dos passarinhos ou pelos avisos vindo do alto-falante da igreja. Hoje, o Zé da Bilinha anunciou a morte do Seo Vitor Machado. Preciso ir lá, dar um abraço na Dona Maria e na Betânia. Betânia foi uma das minhas melhores amigas na infância e a Dona Maria foi a professora que ensinou minha irmã a ler. Era em sua casa que assistíamos TV na década de 1970. O sofá ficava pequeno para tanta criança da rua e ela nos recebia a todos, com uma paciência de Jó. Hoje não acordei bem, com dor de cabeça e mal estar. É a lua nova que se aproxima, lua forte, e que sempre tem esse efeito sobre mim. Mais cedo, ouvi daqui a Missa Conga. É Festa de Agosto, festa do padroeiro. Nessa época mamãe comprava retalhos para fazer roupas novas para nós e juntávamos moedinhas durante meses para comprar bijuterias nas barracas dos camelôs que se espalhavam pela praça. Às 5 da manhã teve alvorada com foguetório, sinos tocando e banda de música. Tive que levantar e abrir a porta para o Scooby entrar e se refugiar embaixo da minha cama. Agora, ouço os tambores ao longe. Devem estar seguindo para o almoço coletivo, marca das festas populares. Todo mundo que chegar, come. Depois vão agradecer a mesa, porque congadeiro é assim, não come sem rezar; não sai sem agradecer. Isso é Minas. Minas em mim. Minas comigo.

Faxina

Tim Maia canta alto:"Ela partiu, partiu, e nunca mais voltou"... 
O menino pega o rodo e faz de microfone. 
Eu assumo o backing vocal e faço coro: 
- "Partiu... partiu... E nunca mais voltou, e nunca mais voltou"... 
Depois rola Marvin Gaye. 
- "Onde foi mesmo que você descobriu Marvin Gaye?" eu pergunto.
- "Ouvindo Racionais", ele responde.
Depois James Brown, Stevier Wonder, Bill Wilhters.
O menino desliza pelo chão molhado.
- "Mãe, como você consegue ficar parada? Música de preto é bom demais! Respeita os clássicos, caráleo!"
E eu lembro dele pequenininho cantando no banheiro: "I fell good. taram ram ram ram" e imitando os metais tirando sons da boca.
-"O almoço tá pronto!" Grito da cozinha"
Para acalmar ele coloca Cartola, "Deixe-me ir" e depois, Elza, "Mulher do fim do mundo" e Paulo César Pinheiro, " Capoeira de Besouro" e Sérgio Pererê, "Toque de Santa Maria".
- Para, menino! Que playlist foda!
- Detalhe, mãe: só preto!
É assim que se trabalha autoestima por aqui.
Sim, é um autoelogio!
Terminada a faxina, o quarto dele ficou parecendo de pousada, mas a comida esfriou no fogão...