sábado, 14 de outubro de 2017

Travessia

Esta é a estória de um menino que veio de longe fazer a travessia. Uma viagem inventada no feliz, produzida em caso de sonho. Ele sorria, gargalhava alto. Na sala de aula se entusiasmou, levantou da cadeira, foi ao quadro, pegou o giz, falou do que mais gosta, confortalvelzinho, como o jeito de uma folha a cair. Coisas benfazejas estavam por vir, tudo numa harmonia prévia. O menino atento para ver as novas tantas coisas que aos seus olhos se pronunciavam num transbordamento e já o chamavam para passeio. O menino repetia em intimidade o nome dos lugares, das coisas. A lagoa, a igrejinha, o estádio, os prédios grandes, os corguinhos todos enterrados, a roda gigante no parque, a serra que deu nome ao arraial, uma reminiscência de ipês atrasados em sua floração. A praça, o mercado, os queijos, o feijão no tropeiro e no tutu, a carne de porco, o povo morando nas ruas, as desigualdades, as injustiças, as problematizações. Os palácios, o parque, o burburinho das famílias com suas crianças em dia de feriado. Sentindo todos os músculos das pernas subiu e desceu ladeira, entrou e saiu de rua. Sentiu o peso de um lugar fundado sob o signo da violência, exterminando primeiro os povos originários, depois os negros escravizados, transplantados do continente mãe. Ouviu poesias na voz de seus autores, Drummond, Guimarães, viu a beleza do artesanato do 'Valo', 'incelente maravia'! Experimentou muita cachaça, tentou registrar tudo o que viu em retratos para gastar depois, no quente das lembranças. Viu a cidade lá de cima, ao pé da serra e entendeu o seu nome ao contemplar o belo horizonte. Seguiu com a alma aumentada e com sensações que criarão raízes em seu peito. Esta é a estória de um menino que veio de longe, que fez a travessia. É a estória de uma viagem inventada no feliz.

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