sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Raízes: escritoras negras - resistência histórica


Sou uma das autoras do livro "Raízes: escritoras negras - resistência histórica". São vinte mulheres negras de várias partes do país, que em uma sociedade racista e patriarcal, aprendem diariamente a resistência através da escrita. Tivemos o prazer e a honra de contar com o prefácio da escritora Cidinha da Silva:

"Este Raízes Escritoras Negras – Resistência Histórica traz as vozes de 20 escritoras para a cena literária central. A capa já nos avisa que de uma mulher negra brotam baobás, ou seja, esta mulher é a própria terra, é a fertilidade que gera a vida.
A escolha das epígrafes do conjunto de textos de cada autora remete a duas leituras imediatas: a primeira, sobre a valorização da ancestralidade, a reverência àquelas que vieram primeiro e permanecem entre nós, a exemplo de Conceição Evaristo, Angela Davis e Sueli Carneiro, entre outras, e às que já se foram como Carolina Maria de Jesus e Audre Lord. A segunda leitura trata dos pequenos livros dentro do livro, do universo particular de cada autora.
Estes pequenos livros costurados pela tradição afro-diaspórica de publicar em coletâneas para potencializar as vozes numa convergência de investimentos (financeiros, publicitários, de circulação) expressam linguagens altivas, imperativas, compreendidas como amplificadores de lutas que entendem a escrita ativista como uma escrita literária possível e potente.
As questões ligadas às desigualdades de gênero atravessam de maneira incontornável a poética dessas autoras. A memória da passagem atlântica e do que ficou submerso se manifesta crua, mas também se ressignifica na influência exercida por competições de SLAM e saraus no ritmo da oralidade que convoca a leitora e o leitor para virem junto no contracanto.
É livro de variada sonoridade. Aprimoremos a escuta."

sexta-feira, 27 de abril de 2018

"Quando a coisa fica preta, fica linda!"

Segunda-feira passada, dia 16 de abril, fui ouvir a escritora Ana Maria Gonçalves no Projeto Pretança no Centro Universitário UNA. Ana Maria falou sobre gênero, raça, narrativas e contemporaneidades. Entre outras coisas, a escritora falou sobre como estamos reativos. Em tempos de imagem/legenda, nossa reatividade resume-se a dar like e repostar conteúdos nas redes sociais, sem no entanto, elaborar qualquer tipo de reflexão. Como criar, se posicionar e ser propositivo num mundo que nos demanda tanta reação, foi o questionamento de Ana Maria. E foi com ele na cabeça que saí de lá. 
A conversa foi tão boa que decidimos, eu e uma amiga, seguirmos para o Teatro Espanca, uma espécie de quilombo urbano na região da Praça da Estação, onde a escritora seria homenageada. Um público majoritariamente negro a aguardava para o segundo evento da noite, dentro da Segunda Preta, projeto que busca empretecer as segundas-feiras da cena artística belorizontina.
Terminei o dia convencida que, apesar dos golpes que estamos sendo vítimas, diariamente, desde o afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff, existe uma revolução em curso, e que, na minha opinião, passa pelo povo negro. Hoje, o que acontece de mais interessante vem das periferias e da população preta.
Dias depois, assisti a uma entrevista com a filósofa Marilena Chauí, onde ela explicava que a sensação de impotência que nos acomete em períodos de crise, vêm justamente de um sentimento de perda individual, e que a capacidade de reversão disso, só virá se estivermos juntos com outros, num experiência de comunidade, de coletividade, de grupo, de movimento. Imediatamente fiz o link com a experiência da Segunda Preta, pensando como saí de lá me sentindo mais fortalecida. Lembrei, então, de uma fala da escritora Conceição Evaristo, de quem sou devota. Segundo ela, quando o sujeito escravizado fugia para o quilombo, ele nunca tinha certeza de sua liberdade, que podia ser perdida a qualquer momento. O que exigia sempre um exercício de resistência, persistência e resiliência. A isso, ela denomina de “práxis quilombola”.
Daí, a minha alegria ao ser convidada para colaborar com o Instituto Bambarê, uma organização que trabalha na divulgação, difusão e valorização da cultura afrobrasileira em suas variadas vertentes. Meu desejo é que esse espaço se transforme num quilombo, onde coletivamente possamos deixar de sermos apenas reativos, propagadores de imagens/legendas, mas capazes de pensarmos juntos alternativas para sairmos do buraco onde o país se enfiou e que parece não ter fundo. Que aprendamos com as nossas mais velhas, com todas e todas que vieram antes de nós. Como diz a mestra, Capitã Pedrina, precisamos continuar resistindo, como nosso povo faz, há mais de 500 anos. Segundo ela, que é uma mulher de palavra, se o pensamento é força viva, a palavra também o é. Que esta coluna seja um lugar de reflexão e de proposição.
Aquilombemo-nos!

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Carta ao Presidente Lula

Belo Horizonte, 10 de abril de 2018.
Querido Presidente Lula,
Sou Dalva, mulher do povo, mãe de filho. Sou a oitava de uma família de dez irmãos. Pais lavradores. Era assim que meu pai orgulhosamente se definia: um lavrador! Morreu jovem, de doença de chagas. Morreu sonhando com a reforma agrária e um pedacinho de chão que fosse seu. Minha mãe, como a sua, era analfabeta. Das letras, porque o mundo ela lia como ninguém. Meu pai trabalhou a vida toda como meeiro em terras de outros. Quando não conseguia terra para plantar era o empreendedorismo da mamãe que colocava comida na mesa. Vendíamos bolo e pastel numa mesinha na praça, durante as festas do padroeiro da cidade; merenda no grupo escolar e no ginásio; Q-suco gelado no campo nos dias de futebol. Lembra do Q-suco, Presidente? O gelo era fornecido pelos vizinhos, pois não tínhamos geladeira. Mamãe também fazia sabão artesanal do óleo do coco, não o da bahia, mas o de espinho, misturado com um tipo de soda cáustica artesanal, fabricada a partir de cinzas. "Quebrei muito coco para pagar essa casa", ela repetiu a vida toda, orgulhosa.Também vendíamos verduras que mamãe caprichosamente arrumava num balaio e saíamos oferecendo pela vizinhança. Essa atividade era mais difícil, pois a maioria das casas, a exemplo da nossa, também tinha horta. Eu fico irritadíssima quando ouço críticas à ascensão ao consumo da classe C, realizada no seu governo. Normalmente, quem faz essas críticas nunca precisou pedir gelo ao vizinho para tomar uma limonada gelada.
Fico pensando em como o bolsa família teria feito diferença em nossas vidas. Talvez mamãe não precisasse fazer, como fez muitas vezes, farofa de picão. O Senhor conhece picão, Presidente? Sim, é aquele mato. Pois, como a sua mãe, a minha também muitas vezes não teve o que dar de comer para os filhos. Se naquela época tivéssemos bolsa família, empreendedora do jeito que era, D. Dulce teria feito uma revolução com o dinheiro. Tenho certeza que ela seria como uma das milhares de mulheres, chefes de família, que devolveram o cartão, quando não precisavam mais do benefício.
Dos dez filhos, seis fizeram universidade pública, Presidente. Seis! Estatística interessante para filhos de trabalhadores rurais, não é? Muitas vezes indo a pé por não ter o dinheiro da passagem. Fico pensando como a nossa vida teria sido mais fácil se na época tivéssemos o Reuni, o Fies, o sistema de cotas, o minha casa minha vida, o pronatec... Mudamos para Belo Horizonte no começo da década de 1980, com a taxa de desemprego mais alta que a história do país já teve. Foram muitos sub-empregos, muita dificuldade. Chegamos a morar 8 pessoas em um barracão de 3 cômodos. Naquela época o Senhor já irritava a elite com as greves no ABC. Lembro quando o Senhor foi preso e quando saiu da prisão para acompanhar o enterro da sua mãe. A orfandade é pra sempre, não é presidente? Minha mãe também se foi, há 7 anos. Uma das poucas vezes que a vi no trato com o lápis foi para aprender a escrever seu nome para votar no Senhor, em 1989. Depois de terminada as obrigações de dona de casa, ela sentava na mesa da cozinha e ficava lá, com o lápis e o papel num desajeito de quem só tinha coordenação motora para o trato com a enxada. O lápis exigia uma coordenação motora fina que era demais pra ela. Mas mesmo assim, ela conseguiu aprender a escrever: L U L A. A partir do seu governo, Presidente, a minha vida e da minha família mudou radicalmente. Meus sobrinhos já têm uma vida diferente. Quase todos fizeram graduação. Uma sobrinha acabou de se formar num dos melhores cursos de Relações Internacionais do país, pelo FIES. Danadinha, ela! O Senhor precisa ver. Outra faz doutorado em agronomia. Tem uma que é estatística, outra fez letras e biblioteconomia. Tem também pedagoga, administradora; uma fazendo direito e outra psicologia, ambas pelo FIES. Não precisaram arrancar as folhas brancas e costurar para customizar novos cadernos ou levar o pouco material escolar na sacolinha reciclada de arroz ou açúcar, como fazíamos na infância. Muitos na minha família adquiriram carro e terminaram a construção da casa que durou décadas, graças à redução de impostos do seu governos e da presidenta Dilma. No seu governo eu voltei a estudar, fiz especialização, mestrado e doutorado. E com bolsa, Presidente. Também realizei um estágio doutoral "sanduíche" em Lisboa, onde morei por nove meses com meu filho, bancada pelo povo brasileiro, através do governo do PT. Vi, com meus próprios olhos, como o perfil do aluno brasileiro que fazia estágio no exterior mudara. Muitos estudantes negros e das classes populares. Conheci vários professores fazendo pós-doutorado. Quando terminei minha graduação em 1995, estudar fora do país era privilégio dos filhos da elite. Durante seu governo, Presidente, meu rosto foi um dos que fizeram os aeroportos parecerem rodoviária. Meu filho não teve que esperar mais de 30 anos para andar de avião. Muitas amigas e amigos meus passaram em concursos e estão lecionando nas universidades ou nos institutos federais e em cursos criados em seu governo. Por tudo isso, Presidente, sou muito agradecida ao Senhor. Saiba que tem muita gente aqui fora lutando e resistindo para que a injustiça que estão fazendo seja reparada. Espero, um dia, encontrá-lo pessoalmente para conversarmos sobre dona Dulce e dona Lindu, essas duas mulheres incríveis que nos fizeram ser quem somos. Força, aí! Se cuida!
Um grande abraço, Presidente Lula.
Dalva Maria Soares

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Caminhada

A caminhada agora não é mais no caminho pedregoso e poeirento da cidadezinha. Agora é no asfalto, aproveitando uma ciclovia carecendo de pintura. Pouco mais de dois meses e já conheço algumas coisas. Há dois quarteirões de casa tem um cachorro que vive na rua. Algum/a filho/a de Deus abastece uma vasilha com água e outra com ração e tem sempre um paninho pra ele dormir. Na firma, logo abaixo, tem um cachorro preto, que lá pelas 7 horas, está sempre próximo ao portão balançando o rabo na expectativa da chegada de alguém. Na loja de peças de carro usadas tem um gato, sempre na calçada. O ferro velho logo à frente é cheio de galinhas. Próximo à padaria uma casa enorme, térreo e primeiro andar, janelas e portas de madeira em estilo colonial. Pintada de verde e amarelo possui um cartaz enorme com os dizeres "escritório político", e o sobrenome do vereador e da irmã deputada. O imóvel está sempre fechado. Na garagem três carros e uma moto. Praticamente ao lado, três senhores em situação de rua, todos os dias, disputam espaço com os pombos. Quando passo, um deles está sempre de pé, arrumando suas tralhas num carrinho de supermercado e pronto pra sair e cuidar da vida. Todos os dias é assim...

Domingo

Ontem uma amiga me sugeriu a música de Sá e Guarabyra, "Meu lar é onde estão meus sapatos". Fui ouvir e um verso me chamou a atenção:
"A gente tem que saber
Ser dono do seu destino
Partir se tem que partir
Ficar se tem que ficar
Meu lar é onde estão meus sapatos
Um pouco em cada pedaço e lugar"
Hoje completam 11 domingos desde que a pickupzinha do Zéze trazendo nossos trenzinhos, veio ziguezagueando pelas curvas dos cerca de 100 km que agora me separam da minha patriazinha. Confesso que só agora parou de doer a distância da janela azul de tramela, meu portal para Nárnia. Repito pra mim mesma, quase que como um mantra, diariamente: "desapega, Dalva, desapega! Perder mais, mais rápido e com mais critério, lembra?". Agora há pouco lia um conto que falava de caduquice, que “caducar não é endoidar, não, é só esquecer o que d’ora em vante não tem mais serventia pra vida." É isso! Enquanto tiver serventia a gente vai lembrando. Daí, recordo da poesia de Adélia e me convenço que a memória e o sentimento são um país que posso sempre visitar e fecho os olhos e ouço novamente a risada de Dona Geralda a caminho da igreja, as vozes do coral cantando durante a missa e o sermão do padre. E estou novamente na minha patriazinha e "é domingo, é domingo, é domingo"...

Choque cultural

Meu primeiro choque cultural foi quando, aos 12 anos de idade, minha família mudou de uma cidadezinha de sete mil habitantes para BH. A cidade grande me assustava, morria de medo de me perder, não entendia os quarteirões fechados da Praça Sete, não sabia usar o telefone público. Foi em BH que a ficha da injustiça social caiu. Vi mendigos na rua pela primeira vez e percebi o quanto minha família era pobre. O segundo choque cultural foi quando entrei na universidade. Era começo da década de 1990, o muro de Berlim havia caído e discutia-se o fim da história. Influenciada pelos irmãos Souza (Betinho, Henfil e Mário) lá fui eu fazer Ciências Sociais. Lembro de uma greve de ônibus que teve, e como ia a pé para UFMG, fui assim mesmo. Achava que ia perder a caminhada, pois com greve nos transportes como é que as pessoas se deslocariam até lá? Quando cheguei e vi o estacionamento tomado de carros, alheios à greve, percebi o espaço elitista onde estava me metendo. Lembro do primeiro período, tendo que ler Pierre Bourdieu e não entendendo nada. Lembro de um trabalho que fui fazer na casa de uma colega de curso. Um menina que estava na segunda graduação, que já havia morado no Canadá e falava francês fluentemente. Essa colega às vezes zoava o meu sotaque da roça, eu que nem sabia que tinha, porque morando em BH há mais de 10 anos, achava que já dominava todos os códigos. Mas não adianta, pobre tem cara de pobre, jeito de pobre e alma de pobre. Já disseram por aí. Quando cheguei no apartamento da colega para discutirmos o texto tomei outro susto. Localizado na zona sul de BH, num prédio de um apartamento por andar, com cerca de, sei lá, 150/200m2. Era um apartamento de quatro quartos e ficamos discutindo o texto numa mesa enorme na sala de jantar. Chegamos a morar, eu e minha família, 8 pessoas em um barracão de três cômodos. Eu olhava pr'aquele apartamento enorme e me perguntava como podia abrigar somente uma pessoa? Por isso carrego uma simpatia enorme pelos movimentos de luta por moradia e, às vezes, tenho muita vontade de ocupar algumas casas vazias que vejo por aí. Minha colega morava sozinha e deve ter percebido a minha cara de espanto, pois ficou justificando de onde vinha a riqueza, que o apartamento era do pai que enriqueceu durante a ditadura na década de 1970, com aquela história que o bolo tinha que crescer pra depois dividir. Foi a primeira vez que ouvi isso. Depois estudaria sobre o período nas aulas de economia e aprenderia que o bolo cresceu sim, mais foi dividido somente com uma pequena parcela da população, aquela que ficava no topo da pirâmide, às custas do empobrecimento de quem estava na base. Nesses dias de aniversário do golpe militar de 1964, tenho lembrado dessas histórias. 

Tem como não amar?


O menino viajou no feriado. Ficamos sós, eu e Fridinha. Em troca de mensagens pelo whatsapp eu contei que na noite passada recebi convite de amizade de uma escritora que leio, admiro, em quem me inspiro. Eu já tinha contado a ele do impacto que provocou em mim o livro dela, que li meses atrás. Eu ficava atrás dele pela casa lendo trechos, emocionada com a história do protagonista, um moço que mais do que um sonho, tinha um desejo enorme de aprender a ler. Também contei que uma amiga minha usou um dos textos meus para discutir feminismo com mulheres do CRAS - Centro de Referência de Assistência Social, beneficiárias do bolsa família na zona da mata mineira. Contei também, da mensagem que recebi, dia desses, de uma senhora que eu admiro demais, que trabalha com reciclagem, dizendo que meus textos são muito importantes pra ela, pra eu não parar nunca de escrever.
Daí, que ele me manda o seguinte áudio:
- Nó, mãe! Que isso, hein, mãe? Cê tá movendo montanhas já com seus textos. Tô falando co'cê, mano. Cê tem que publicar um livro. Na alta, véi! Tá ligado? Eu canso de falar co'cê, mano. Mas é igual cê falô, é a mesma coisa do Djonga [rapper que ele adora] falar que curte meus beats. É desse jeito memo, tá ligado? Pô, parabéns, véi! Cê tem que investir nesses bagulho memo, tá ligado?

Me diz se tem como não amar?

Saudades de ter mãe

Hoje acordei com saudades de ter mãe. É que Sexta-feira da Paixão era dia de ir pra Baldim acompanhar mamãe na procissão e assistir aos autos da Paixão. Íamos de braços dados e os olhinhos dela brilhavam quando eu explicava cada um dos personagens. Ela se encantava com a sabidice da filha que leu toda a Bíblia. Levávamos os raminhos que enfeitavam o Senhor morto para queimar em dias de tempestade. O manjericão era plantado na horta e a casa ficava benzida o ano inteiro. Também era dia de comer uns fiapos salgados-toda-vida que ela fazia com batata e cebola pensando ser bacalhau.
Saudades de ter mãe...

O sol

Foi com mãe que aprendi que o tempo sara as feridas e que o sol tira todas as manchas. Por isso, especialmente as roupas brancas, precisam quarar. Lembro, quando criança, dela ensinando: enxaguar quatro vezes, colocar o anil na última água. Enquanto lavava os panos de prato e o uniforme do menino, lembrei de Conceição Evaristo e de sua mãe lavadeira:

"O olho do sol batia sobre as roupas estendidas no varal e mamãe sorria feliz. Gotículas de água aspergindo a minha vida-menina balançavam ao vento. Pequenas lágrimas dos lençóis. Pedrinhas azuis, pedaços de anil, fiapos de nuvens solitárias caídas do céu eram encontradas ao redor das bacias e tinas das lavagens de roupa. Tudo me causava uma comoção maior. A poesia me visitava e eu nem sabia..."

Conceição Evaristo, Poemas da recordação e outros movimentos.

A arte de perder

Toda vez que me vejo às voltas com a frustração de alguma perda, seja ela qual for, lembro sempre do poema da Elizabeth Bishop, "A arte de perder". Bishop ensina que não há nenhum mistério em perder, não é nada sério. Nos últimos meses eu perdi uma janela azul de tramela, perdi um pé de mamão nascido numa frincha na parede da cozinha, perdi as "mulatas na sala" nascidas no piso trincado da casa velha. Perdi os beija-flores que já tinham até sido batizados pelo menino: Van Gog e Monet. Bishop ensina que é preciso um exercício diário de desapego. Devemos começar com coisas simples: as chaves de casa, as horas gastas bestamente. Mas é preciso avançar, perder com mais rapidez e mais critério. Mês passado perdi um contrato de trabalho com um salário bacana. Ontem, perdi numa classificação para uma vaga de trabalho. Mas é preciso continuar. Perder nomes, lugares, viagens, cidades, pessoas... Às vezes é preciso perder até o ar. Já perdi mãe, pai, amores, amigos, e a vida continua. Começar com pequenas coisas e avançar com mais rapidez e critério. Não é nenhum mistério...

Naquela mesa

Não temos o hábito da mesa. Eu porque cresci sem ela, almoçando sentada no degrau da sala para a cozinha, com a lata de marmelada reciclada feito prato na mão, e um pedacinho extra de carne [torremo como mamãe e papai diziam] escondido debaixo do arroz, porque era só um pra cada. O menino também cresceu sem esse hábito, mesmo hoje tendo mesa em casa. Agora à pouco, com o prato na mão, sentou no sofá para almoçar. Ele ouvia Cartola [Bate outra vez] e me contava da pesquisa que fez, ontem à noite, sobre Lampião, porque segundo ele, queria conhecer sobre o Brasil profundo do começo do século XX. 

A vida é horrível

A polícia de Goiás matou 10 pessoas em menos de 24 horas. No Espírito Santos foram dois irmãos mortos com mais de 20 tiros cada um. O que se quer matar quando uma pessoa é alvejada com mais de 20 tiros? Lembro sempre do conto "Mineirinho" da Clarice: 

"Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro".

Mais de 20 tiros, cada...

Em Maricá foram cinco jovens com tiros na cabeça. Meninos do hip hop, produtores culturais da quebrada.

Os mesmos corpos matáveis de sempre: pobres, pretos, da periferia. No país que mata mais do que 150 países juntos (http://jc.ne10.uol.com.br/blogs/jcnasruas/2017/06/28/brasil-mata-mais-que-150-paises-juntos/).

Daí, lembrei da Maria Aparecida Bento e do conceito de "indignação narcísica", que é o sentimento de indignação com a violação dos direitos do outro, mas só quando essa violação afeta o grupo de pertença.

Quem se importa com o extermínio da juventude negra? Uma geração está sendo exterminada.

Minha amiga Luana fala do cuidado que precisamos ter para não adoecer. Carlandréia fala que não aguenta mais ver corpos negros tombando. Micheliny Verunschk fala do baixo astral que começa a tomar conta.

Lembro de Adélia e do poema "Bendito":

"Louvado seja Deus, meu senhor
Por que meu coração está cortado a lâmina
Mas sorrio no espelho ao que
À revelia de tudo se promete;
Por que sou desgraçado
como um homem tangido para a forca," (...)

Daí, o menino me chama para ver o céu estrelado, estende a rede na areazinha junto às plantas e separa a playlist dele. Tem Maneva, Lagum, mas também tem Tim Maia e Cassiano. Cassiano que ele conheceu ouvindo Racionais:
"O luar representa
Ouvindo Cassiano, há
Os gambé não guenta".
Ele quis saber quem era esse Cassiano que os gambé não guenta. Ouviu e se apaixonou.
Enquanto estávamos deitados na rede ouvindo música e olhando as estrelas, Fridinha pulou e ficou em cima da gente.
Voltei à Adélia:
"Louvado sejas, porque a vida é horrível
Porque mais é o tempo que eu passo
Recolhendo os despojos
- velho ao fim de uma gerra como uma cabra -
Mas limpo os olhos e o muco de meu nariz
Por um canteiro de grama.
Louvado sejas por que eu quero morrer, mas tenho medo
E insisto em esperar o prometido
Uma vez quando eu era menino
Abri a porta de noite
A horta estava branca de luar
E acreditei, sem nenhum sofrimento:
LOUVADO SEJAS!!!!"

A vida é horrível, são as horinha de descuido na companhia de Fridinha e do Menino que não me deixa adoecer.

Se cuidem!

Corações magoados

Quando eu ia visitar mamãe e ela estava nervosa por algum motivo, ela sempre dizia brava: "Não vou mexer com planta mais não. Vou deixar tudo morrer." Quando voltávamos, lá estava ela nos chamando pra mostrar um broto novo, uma florzinha que se abriu no quintal. Me vejo muitas vezes repetindo o comportamento dela. Digo pra mim mesma, "Dalva, não se apegue, essa moradia é temporária." Daí, me vejo novamente às voltas com uma mudinha surrupiada no trajeto da caminhada. Hoje foi dia de mexer na terra, dia de aumentar a minha coleção de corações magoado

Bastardos

Eu iniciei o doutorado em março de 2011, há 7 anos, portanto. E fico pensando em como tudo mudou nesse tempo. Li, agora à pouco, a carta que Marielle Franco escreveu para os "Bastardos da Puc" um coletivo de negros, pardos e bolsistas da Instituição (http://piaui.folha.uol.com.br/aos-bastardos-da-puc-com-carinho/). Logo no começo da carta ela adverte aos alunos das inúmeras dificuldades que encontrarão no mundo acadêmico, mas que eles não devem temer. Ela dá o exemplo de professores que dão textos e filmes sem tradução, e não tive como não lembrar do meu primeiro semestre no doutorado e do que passei, exatamente, por ter muita dificuldade em ler inglês. E quando me posicionei falando da minha dificuldade, fui chamada de vitimista pelo professor. Marielle, na carta aos "bastardos", diz que "apresentar para quem quer que seja a nossa realidade concreta não é ser vitimista". Lembro que na primeira reunião de estudantes para discutirmos a situação das bolsas, ouvi de uma colega que ali não era espaço para discussão de questões individuais. Respondi que o fato do meu filho, à época com 8 anos, ficar sozinho em casa enquanto eu estudava não era um problema individual, mas social. Isso foi há 7 anos. Hoje eu teria muito mais argumentos e mais consistentes para questionar o professor que me humilhou e a minha colega. Penso que alguma coisa se deslocou e os estudantes negros e pobres que estão, hoje, na universidade estão muito mais empoderados. Eu, como Marielle e tantas outras mulheres, vivia o drama de ser mãe solo e estudante. Quantas vezes o menino foi comigo pra universidade, juntou duas cadeiras e dormiu, enquanto eu assistia aula. Dia desses, numa reunião de um grupo de estudos que faço parte na UFMG, encontrei com uma amiga, também negra, que me deu um longo abraço apertado, enquanto dizia da alegria de me encontrar ali. Ela não precisou dizer mais nada, ficamos longos segundos acalentadas naquele abraço porque conhecemos o sentimento uma da outra e sabemos das dificuldades de adentrarmos espaços que historicamente nos têm sido negados. Como disse a Marielle na carta aos "Bastardos" a simples presença de nossos corpos negros na universidade já é um ato de resistência. Sigamos

Agora é tarde...

Hoje foi um dia difícil. Passei a manhã acompanhando o menino numa seleção para uma vaga de menor aprendiz. Me vi, novamente, em plena década de 1980, aos 14 anos, sem formação e sem experiência, andando sozinha para tirar documentos, morrendo de medo de me perder na cidade grande. A diferença é que agora eu acompanhava o menino. Ele é a sexta geração desde a velha Filomena, minha tataravó, negra escravizada, que foi até onde consegui chegar na minha genealogia. Seis gerações depois, um adolescente, a ponto de completar 16 anos, sonha com um emprego e não pode só se dedicar aos estudos, porque a mãe, mesmo tendo doutorado, ainda não consegue proporcionar a ele um monte de coisas que ele deseja e precisa. Durante a entrevista, a psicóloga perguntou: Qual a profissão de seu pai? Músico; e da sua mãe? Antropóloga. E você, que curso quer fazer? Cinema. Um menino que curte Cartola e que quer fazer Cinema, pleiteando vaga de empacotador de supermercado. Seis gerações depois e ainda não conseguimos vencer a pobreza. Enquanto aguardávamos a vez de sermos atendidos, eu lembrava do sociólogo francês Pierre Bourdieu e sua teoria da reprodução, e da frustração que foi na França, na década de 1960, a geração que teve acesso à educação, mas não melhorou economicamente. E o que você quer fazer com o salário que vai ganhar? A psicóloga perguntou. Bom, quero um 'boot' novo [ele sonha com um nike air max e sabe que eu não compraria nem se tivesse o dinheiro] e um bom microfone para gravar meus raps. Eu, que ontem fiz prova para um concurso onde cada candidato disputava com outros 1563 cada vaga disponível, disse a ele que precisamos combinar as respostas dessas entrevistas, que se ele quer a vaga precisa falar o que o outro quer ouvir. Que 'se pá', não vai poder falar com a psicóloga como se tivesse conversando com um colega na escola, 'tá ligado'? Ele disse que ficou tenso, pedindo às deusas que não me deixassem começar a problematizar as bobagens que a psicóloga falava. Depois da entrevista falei pra ele do meu incômodo, ao ver um menino sensível, antenado, consciente, pleiteando vaga para empacotador em supermercado. Não, mãe! Se eu arrumar uma vaga de empacotador vou dar o melhor de mim, porque essa grana é para investir nas coisas que eu desejo e sonho e eu sei que será temporário. A minha sorte é que o menino é bem humorado e, durante o almoço, fizemos piada e rimos das nossas pequenas tragédias. Ainda tivemos que comprar, às pressas, uma cola super bonder porque o nike que ele usava começou a descolar e ele tem o maior xodó com o tênis falsificado, igualzinho ao do ídolo Djonga, o rapper. Sentamos na praça e enquanto ele, com o boot na mão esperava a cola fazer efeito, eu lia poemas de Conceição Evaristo pra ele. Fico pensando se estou educando ele de forma correta e brinquei se não seria melhor aprendermos a fazer artesanato e ir vender arte na praia. Mas agora, aos 50 anos, como diz o Quintana, é tarde demais para ser reprovada. Ou como diz Adélia, não posso mais fazer curso de dança, escolher profissão, aprender a nadar como se deve.

Adoniran

Deitada na cama do menino eu o observava fazendo a tarefa de português, enquanto ouvíamos música. Não sei o que ele falou naquele dialeto das ruas que perguntei:
- Seu professor não corrige seu português, não?
- Por que ele corrigiria? Eu aprendi que a norma culta é só uma das inúmeras maneiras de se falar, e se eu falo e o outro entende não tem nada de errado no meu jeito de comunicar.
- Com quem você aprendeu isso, menino?
- Uai... Com você. Você tá criando um monstro, mãe. E por falar nisso, vamos ouvir Adoniran?
E colocou "Saudosa Maloca" pra rolar, fazendo caras e bocas de aprovação, tipo, que música foda, e completou:
- Mãe, olha a crítica social dessa letra. Por que a gente não aprende isso na escola?

Marielle, presente!

Ontem, eu atendi o meu desejo e fui para a Praça da Estaçao chorar pela Mariele. Por ela, por mim e por cada corpo negro tombado a cada 23 minutos neste país. Quando cheguei, Elisa Lucinda falava. A atriz e poeta está com um espetáculo em cartaz em BH e largou o ensaio para se juntar ao ato. As primeiras pessoas que encontrei foram a Cris e a Luísa. Cris é uma das poucas amigas brancas que eu sei que estará de braços dados comigo no front, se eu precisar. Ela é daquelas que escuta as irmãs pretas, que quer aprender e é uma aliada na luta contra o racismo. Não consegui segurar o choro quando as mulheres da Ocupação Carolina Maria de Jesus chegaram cantando: "companheira me ajude, que eu não posso andar só, eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor". Lembrei do Racionais: "O que todas tinham em comum? A roupa humilde, a pele escura e o rosto abatido pela vida dura". Me vi tanto nelas. Eu, uma sem casa até hoje. Também me emocionei quando ouvi a deputada Jô Moraes, de quem já fui eleitora tantas vezes falando. Jô, que lutou contra a ditadura, deve estar com mais de 70 anos e ainda segue falando em porta de fábrica com trabalhadores. Acho que foi minha amiga Carlandréia que falou que ninguém merece lutar duas vezes contra um golpe na mesma vida e que ela só descansa quando ouve o som da chave virando na porta e seu filho chegando em casa. Também foi emocionante quando a marcha dos professores estaduais, em greve, se juntou à multidão na Praça da Estação. A poeta Norma Lopes leu o poema que Michleliny Verunschk fez em homenagem à Mariele e que viralizou na internet. Espero que alguém tenha registrado porque foi lindo, forte e potente. Quando saímos em caminhada, me perdi da Cris e da Luísa, mas encontrei meu professor Juarez Dayrell, um dos responsáveis por eu ser professora. Encontrei também algumas ex-alunas, vi outras de longe. E, ao contornar a Praça, já encaminhando para a Praça Sete, encontrei, visivelmente emocionado, o pai do João com a esposa, a filha pré-adolescente e o filhinho caçula. Me juntei àquela família preta e abracei um por um. Ainda encontrei com a Glau e vi conhecidos aqui e ali. É tão triste saber que Mariele se foi. Uma mulher negra que abalou as estruturas racistas e excludentes, que ousou enfrentar forças poderosas e por isso foi silenciada. Quando cheguei em casa vi as manifestações que aconteceram em várias cidades e até fora do país, e me senti, novamente, em 2013. Tomara, as deusas permitam que esse movimento seja um reacender das ruas para barrar esse golpe racista e misógino que enfiou o país neste buraco que estamos.
Sigo em luto/a.
Mariele, presente!

Fridoquinha, meu amor!

Eu não conhecia o afeto dos cachorros até ir morar em Baldim. Aliás, tinha um pouco de preguiça, não gostava que se aproximassem muito de mim. Mas, os cerca de três anos e meio morando na casa de janela azul, me mudaram pra sempre. Primeiro foi Scooby. Três vezes rejeitado. Coitado! Quando cheguei em Baldim, ele não entrava dentro de casa. Com o tempo, só ficava perto de mim e foi minha companhia nos meses que escrevi a tese. Meu irmão diz que estraguei o cachorro, que ele manda em mim. E é verdade. Durante todo o tempo que morei lá, era meu despertador. Tirou toda a tinta da janela do quarto onde eu dormia e da porta da sala, onde raspava a pata me chamando para abrir o portão para o seu rolê matinal. Aliás, ele até aprendeu a abrir o portão sozinho. Depois veio Fridinha. No começo, o menino a chamava de "Nego Véio", até descobrirmos que era fêmea. Comecei colocando água e ração fora do portão, mas cachorrinha safa, de rua, sempre conseguia um jeito de se esconder em algum canto. Só percebíamos, quando sentíamos o mau cheiro. Até que um dia resolvemos dar um banho nela. Cheia de parasitas, dentes quebrados, parecendo velhinha. Custou a atender pelo novo nome: Frida, por causa das feridas em seu corpo. Depois do banho ela nunca mais foi embora. Mas, chegou grávida. Meu deus! Quando eu vi a barriguinha dela crescendo, me desesperei. Minha amiga, Ana Augusta, que é veterinária, me acalmou: Calma, Dalva! A gente arranja adoção. E a natureza se encarrega de tudo. No dia do parto eu ouvi um grunhidozinho vindo debaixo da cama do menino, onde ela gostava de ficar. Nasceram quatro filhotes, dois sobreviveram. Nalinha e Dandara. Nalinha, a cara da mãe, toda branca e peludinha. E Dandara, marronzinha, espevitada como a guerreira de quem roubamos o nome. Nalinha foi adotada por um sobrinho. Dandara ainda ficou conosco por oito meses. O dia que foi levada por uma amiga que me visitou, eu achei que ia ficar em depressão, tamanha a tristeza que senti. A imagem dela no banco de trás do carro, olhando pra mim, sem entender o que acontecia, me cortou o coração. Me consolava a ideia que ela tinha ascendido socialmente, ia morar na zona sul, teria acesso a dia de princesa em pet shop. Foi acolhida numa família que depois dela se converteu aos cachorros. Já são três por lá. Na mudança de Baldim para BH, Fridinha veio conosco. Agora somos uma família de três: eu, o menino e ela. Há algumas semanas foi, pela primeira vez, ao veterinário. Destoava dos cachorrinhos de madame que vimos por lá. Eu nunca vi uma cachorra combinar tanto com os donos, como ela combina conosco. Pura maloqueiragem. Teve seu dia de princesa, cortou as unhas, tosou o pelo, fez exames, recebeu medicamentos. Quando deixei ela lá para o banho e voltei para casa, meu coração cortou de dó com medo dela achar que eu a estava abandonando. Essa cachorrinha já sofreu demais nas ruas, é tensa, traumatizada. A deixei no começo da manhã, no começo da tarde, eu não aguentava de ansiedade, imaginando ela trancada naquela gaiola, se sentindo abandonada. Nem esperei o motorista trazer, fui eu mesma buscar. Voltei agarrada com ela. Pode parecer exagero, mas quando ela está dormindo, eu olho se está respirando. Como fazia com o menino quando ele era bebê. Esse afeto pelos bichos que eu não conhecia, é mesmo uma espécie de conversão. Alguma chavinha vira dentro de você, que passa a observar todos os cachorros do mundo. Como agnóstica fajuta que sou, até virei devota de São Francisco, comprei uma imagem dele e tenho pedido muito que cure o problema de pele que Fridinha tem, que sare as feridas em seu corpo tão pequeno, tão sofrido. Os traumas do tempo que viveu na rua a gente tenta amenizar com todo amor que sentimos por ela.
Os bichos humanizam a gente.
Certeza!

Enquadro

O que eu temia aconteceu. O menino tomou seu primeiro enquadro. Aconteceu há algumas semanas, mas ele só me contou hoje. E o pior, tomou um enquadro no hall de um prédio da zona sul, enquanto esperava a amiga que subiu ao apartamento. Um homem que se identificou como policial, apesar de estar à paisana, não mostrar documento e aparentar embriaguez, chegou pedindo a identidade dele, perguntando de maneira agressiva, se ele "tinha passagem" e afirmando que ele usava drogas. Meu corpo todo treme enquanto digito isso. Enquanto me contava, ele não conseguia evitar a indignação, falava alto, gesticulava e tinha os olhos marejados. Eu fiquei em choque. Nunca gostei que ele frequentasse a zona sul. "E foi num dia que eu estava bem vestido, mãe. Até cinto eu usava, porque tenho a preocupação em me arrumar mais quando vou nesses espaços". Detalhe: outros amigos estavam juntos, mas só ele foi abordado, afinal, não tinha cara de morador. "O que você está fazendo aqui?", foi questionado. E nem a intervenção do pai da amiga aplacou a ira do racista que tomou a identidade das mãos dele e ameaçou levá-lo a uma delegacia. Eu só consigo pensar na letra dos racionais: "racistas otários nos deixem em paz" e na letra do Djonga: "fogo nos racistas". Filho da puta, se eu estou por perto... Nesse dia 8, lembro da minha mãe que dizia sempre quando papai queria nos bater e ela com seu corpo nos protegia: "você vai bater no que você parir, desgraçado!

Sem medo e com liberdade

5h:45 o alarme tocou e, pasmem, eu consegui levantar. Aos poucos vou estabelecendo uma nova rotina. Prefiro caminhar pela manhã, de preferência antes do sol esquentar. Hoje, o céu nublado ajudou. Não tem mais o som dos pés sobre o cascalho, o caminho não é mais pedregoso, agora é no asfalto. Aproveito uma ciclovia carecendo de pintura e sigo a avenida, que há anos, quando mamãe mudou para BH, era um córrego. Depois as pessoas não entendem as enchentes. No caminho tem uma água que corre direto vindo de um lote vago, acredito ser uma nascente. Ainda é cedo, o trânsito está tranquilo. Adolescentes passam com uniformes de escola pública. Tento identificar de qual, mas não consigo ver a logo. Edi Rock canta no meu ouvido: "500 anos de Brasil e o Brasil aqui nada mudou". "A vida é desafio" é das minhas músicas preferidas dos Racionais. Tomo o cuidado de cantar baixo, mas não consigo evitar os gestos. Uma senhora negra que vem em minha direção ri do meu entusiasmo. Movimento a cabeça num cumprimento e ela responde com um bom dia. Meus passos são rápidos, no ritmo da batida do rap. Quando passo em frente ao Cemitério da Paz, é Brown que, coincidentemente, canta: "2 de Novembro era finados. Eu parei em frente ao São Luis do outro lado. E durante uma meia hora olhei um por um e o que todas as Senhoras tinham em comum? A roupa humilde, a pele escura, o rosto abatido pela vida dura, colocando flores sobre a sepultura, podia ser a nossa mãe", que loucura!" Lembro do menino me dizendo que se fosse professor de sociologia escutaria "Negro Drama" com os alunos. Analisaria cada verso com eles e depois pediria um texto. "Tá tudo lá", ele disse. Quando retorno, o público na avenida já mudou. Agora são crianças menores com cara de sono na porta da escola. O uniforme verde da rede municipal, alguns com a blusa laranja da escola integrada. O menino já foi da integrada, não gostou. Também acho que nenhuma criança merece ficar o dia todo na escola, não do jeito que é hoje. Apesar que, para muitas é isso, ou ficar sozinhas em casa. Brown canta: "Às vezes eu acho que todo preto como eu só quer um terreno no mato, só seu, sem luxo, descalço, nadar num riacho, sem fome, pegando as fruta no cacho." Uns versos antes, ele cantou: "Sempre quis um lugar gramado e limpo, assim verde como o mar, cercas brancas, uma seringueira com balança, disbicando pipa cercado de criança". Outro dia, ouvi o Emicida dizendo que quando pode comprar uma casa, pediu ao corretor uma igualzinha a essa cantada por Brown. Mas Ice Blue nos traz de volta para a realidade: How... how Brown, acorda sangue bom, aqui é Capão Redondo, "tru", não Pokemon, Zona Sul é invés, é estresse concentrado, um coração ferido por metro quadrado". Lembro da conversa, ontem, com a minha amiga de milianos. Falávamos sobre a descoberta das narrativas próximas da nossa realidade. De como depois dos livros das escritoras negras está difícil outras leituras. Ela me perguntou se isso vai passar. Eu não soube responder. Foram tantos anos de invisibilidade e silenciamento que agora queremos tirar o atraso, nas leituras e na vida. Por isso, eu continuo lendo as manas pretas, escrevendo meus textos e escutando Racionais. "Sem medo e com liberdade", como disse a minha amiga. 

domingo, 4 de março de 2018

Sobre ser negro/a

Eu não nasci negra. Me tornei negra. Foi lá pelos 26 anos, quando entrei na universidade. É, entrei tardiamente... Lembro de quando a ficha caiu. Foi na disciplina "antropologia do negro brasileiro", no curso de Ciências Sociais. Depois as dúvidas que eu tinha foram se dissipando quando morei em Florianópolis e depois, fora do país. Eu, inclusive, acho que todo brasileiro deveria poder viver a experiência de morar fora do Brasil. É interessantíssimo para a construção da identidade racial. Lembro das inúmeras discussões que provoquei em casa quando levantava essa questão. Somos 10 irmãos e acredito que só 5, depois de sofrerem muitas, mas muitas situações de racismo, se reconhecem como negros. Me preocupo porque vejo sobrinhos que são lidos como negros pela sociedade, mas que não se reconhecem como tal, e que não têm a discussão racial em casa, nem a autoestima fortalecida. Sofrem racismo, mas não sabem como se defender. Quando o menino nasceu, ouvi muito que ele teria que andar sempre bem vestido para não ser confundido com trombadinha, ou que era bom ele ser menino, porque assim poderia manter o cabelo sempre bem curtinho. Filho de pai que usa dreadlocks, ele nunca teve problema em reconhecer como bela a estética negra. Cresceu se achando bonito e se encorajando para deixar o cabelo crescer. Confesso que o fato dele ouvir rap me ajuda muito na sua educação e na autoestima positiva. Foi na escola o primeiro lugar que ele sofreu racismo. Aliás, a escola é um dos piores lugares para se frequentar quando se é negro. Ele tinha cerca de 9 anos quando foi chamado de negro por um coleguinha menor do que ele. Mas levantou a cabeça e respondeu altivo, sou sim, com muito orgulho! Sempre o carreguei para eventos sobre cultura negra, shows, palestras, lançamentos de livros, umbanda, candomblé, etc. Dia desses, enquanto ele jantava, me contava da preocupação que tem com o irmãozinho [por parte de pai] que é negro, mas nasceu de cabelo louro. O menino que também nasceu com a pele clara e olhos gateados, está cansando de ser considerado branco para ser chamado de negro, mas que na hora de sofrer o racismo essa dúvida desaparece. Ele cresceu incomodadíssimo com a falta de representatividade negra. Lembro da vez que questionou a professora porque o negro só era abordado na escola na condição de escravizado. Ele queria saber do negro feliz e ela mandou ele pesquisar. Ele então, escreveu um texto lindo onde falava de Bob Marley, Michel Jordan e Barack Obama, mas a professora nunca leu. Hoje, ele tem inúmeras referências positivas, principalmente por conta da cultura hip hop. Eu agradeço todos os dia os rappers que ele ouve e que o ajudam a fortalecer sua autoestima. Por isso, o filme Pantera Negra está fazendo tanto sucesso pelo mundo à fora. Eu, que nem gosto de filmes de ação, estou louca para assistir, de novo. Precisamos cuidar das nossas crianças, e se você tiver oportunidade, vá assistir Pantera Negra e leve um pequeno junto.

Bom dia pra quem?


Eu não gosto de ir ao centro de BH, me deprime. É assustador o aumento de pessoas em situação de rua e miserabilidade, inclusive idosos. Dia desses, numa tarde fria de chuva, uma senhora aparentando uns 70 anos passou na nossa frente. Carregava um saco com papelão, estava molhada. Nos pés uma sandália de plástico e meias encharcadas. Troquei olhares com o menino. Mãe, ela não deveria estar aqui. Tinha que estar num lugar quentinho, sendo servida por alguém, tomando um prato de sopa e parafraseou Racionais: podia ser a minha vó, que loucura! Hoje, quando entramos no Banco do Brasil, duas senhoras negras na porta. Uma nos disse, na volta você me ajuda, minha filha? Eu, sentindo um bolo na garganta acenei afirmativamente num movimento com a cabeça. Você vai ajudar, né, mãe? Na saída o menino comprou um tridente com a que vendia balas. Eu, dei minha contribuição à outra. O menino, já sentindo a minha comoção, me abraçou apertado e foi cantarolando: uma negra e uma criança nos braços solitária na floresta de concreto e aço. Esperei ele entrar no ônibus, de onde foi para o dentista. Antes de subir ele brincou, você vai me abandonar? Depois me abraçou e disse: eu te amo, mãe. Ainda o vi cedendo lugar para um senhor e uma senhora entrarem antes dele. Depois que ele entrou, coloquei meus fones e segui para meu compromisso, com Mano Brown cantando em meus ouvidos: essa porra é um campo minado...
Bom dia, pra quem?

Girassóis

Quando eu fui morar em Baldim, em 2014, era só o tempo de escrever a tese. O tempo foi passando e fiquei por lá três anos e meio. E, embora algumas pessoas não acreditem, eu gostei de morar lá. Gostei muito. Enquanto vivia o estresse da escrita, me angustiava a cada final de tarde quando ouvia a ave-maria no alto-falante da igreja, na hora do angelus. Eu ficava ansiosa porque mais um dia chegava ao fim e a tese não estava pronta. Ia caminhar ouvindo as gravações das minhas conversas sobre a pesquisa que tinha por skype com a minha amiga, Gabina. Mas o fato é que, a tese ficou pronta e foi defendida e não havia mais motivos para ficar por lá, mas fui ficando, arrumando desculpas. Até que o menino deu um basta. Sim, ele agora queria o que eu quis quando tinha a idade dele: a metrópole e tudo que ela oferece. Mudamos há cerca de um mês e eu ainda carrego uma certa tristeza por ter deixado a minha patriazinha. Fico aqui, ressignificando as coisas e buscando alegriazinhas como as que eu tinha por lá. Uma samambaia que dada como morta voltou a brotar, as duas rolinhas chocando seus ovinhos, os pardais que vêm roubar a ração da Fridinha. Enfim... Meu irmão que ficou por lá, me mantém informada das novidades. Ele colheu o milho criolo que nem pude desfrutar e que ficou todo pra semente. Ontem, me mandou foto dos bem-me-queres que semeei pelo quintal. E hoje, mandou foto do girassol, que enfim, se abriu para o mundo. Lembrei do Caio Fernando de Abreu:

"Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecem flores simples, fáceis, até um pouco brutas. Pois não são. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de meses, um dia pá! Lá está o botãozinho todo catita, parece que já vai abrir."

Saudades de África

Ainda impactada com o livro "O caminho de casa" da jovem ganense Yaa Gyasi. Passei o final de semana pensando na minha ascendência. Por parte de mãe, consigo ir até a minha avó. Mamãe não conheceu o pai e temos esse vácuo na nossa árvore genealógica. Por parte de pai, conseguimos chegar até a nossa tataravó, Filomena, "negra cativa", como gosta de dizer meu tio João. Uma das preocupações de Gyasi ao escrever o livro foi justamente criar uma genealogia para duas irmãs separadas em África. A jovem escritora refaz a história de sete gerações mostrando o impacto da escravidão na vida de 14 personagens que herdam dramas e ideais de seus ancestrais. A leitura me impactou, mas também me trouxe uma espécie de conforto. No fundo, é como se a árvore genealógica de Esi e Effia fosse também a minha. É como se todos os negros do mundo sentissem uma espécie de saudade de África, não como um lugar geográfico, mas como uma paisagem metafísica, um lugar existencial.

O caminho de casa

O livro "O caminho de casa", da ganense Yaa Gyasi, conta a história de sete gerações desde a infância das irmãs Esi e Effi, na África, até os dias atuais. Comecei o sábado lendo o capítulo sobre Willie, a quinta geração desde Esi. Willie mora no Harlem, em NY. O livro está mexendo muito comigo e tenho que ir aos poucos. É impressionante como sete gerações depois, os sujeitos ainda sofrem as conseqüências da escravidão, não só as econômicas e sociais, como as subjetivas, também. A autora, Yaa Gyasi, fala sobre isso, numa entrevista no jornal O Globo, do ano passado. Segundo ela, certos traumas são hereditários e herdamos marcas visíveis e invisíveis. Depois da leitura do capítulo fui replantar o coração magoado que trouxe de Baldim, uma mudinha pequenininha cujo espaço ficou apertado no vasinho. Daí, lembrei que há cerca de 40 anos, mamãe fazia o caminho BH/Baldim, vindo morar numa rua paralela à que hoje eu moro. Dia desses, passei lá e vi que a casa continua do mesmo jeito e que no endereço, ao invés de dois, agora são quatro domicílios. Mamãe morava no barracão de fundo que dava para um barranco enorme que, rapidinho ela encheu de plantas, flores e cebolinha. É que ela tinha fome de beleza, gostava de tudo muito organizado e sempre muito limpo. Enquanto eu mexia na terra replantando meus vasinhos, fiquei lembrando dessa história e relacionando com o livro de Gyasi, pensando nessas marcas visíveis e invisíveis que carregamos dos nossos antepassados. Daí, fui conversar com o menino e falei de como ele, a sexta geração desde a minha tataravó Filomena, uma negra escravizada, muitas coisas ainda permanecem as mesmas. 40 anos depois, estou de volta ao bairro Aparecida, repetindo o mesmo percurso que fez mamãe, morando de aluguel, e o menino que ainda não completou 16 anos já sonha com um emprego para comprar os trenzinhos dele. Tá certo que diferentemente de mamãe que não sabia ler nem escrever as palavras (mas que lia o mundo como ninguém), eu volto, hoje, como doutora, com praticamente a mesma idade dela quando veio para a metrópole. Mas, a pobreza é um marca difícil de romper. Eu, emocionada com a conversa, engoli o choro quando o menino disse: mãe, mas essa história ainda não terminou. Você tem muito o que viver e eu também. Seguiremos resistindo!

Nada de novo embaixo do sol

Hoje, assisti a um vídeo que apareceu na minha time line, onde três youtubers negros (AD Júnior, Spartacus Santiago e Edu Carvalho) dão dicas a negros de como se portarem numa abordagem indevida em tempos de intervenção militar (https://www.facebook.com/spartakusvlog/videos/521764858223613/). E uma das dicas é não saírem sem documentos, priorizando a carteira de identidade ou de trabalho. Daí que, estou lendo "O caminho de casa" da ganense Yaa Gyasi que conta a história de duas meia-irmãs separadas pela escravidão. Estou no capítulo que fala de um dos descendentes de uma das irmãs e o contexto é a cidade de Baltmore nos EUA, em 1850, e acaba de ser aprovado no sul daquele país, a lei do escravo fugitivo, onde qualquer escravo que tenha fugido do sul e viva livre no norte pode ser recapturado. No livro, o personagem Jo e sua esposa Anna, todos os dias, antes de saírem para o trabalho treinam os sete filhos e filhas a mostrarem os documentos, caso sejam abordados:

"De manhã, antes de Jo e Anna saírem para o trabalho, Jo fazia os filhos ensaiarem como mostrar os documentos. Ele representava o oficial federal, com as mãos nos quadris, indo até cada um deles, até mesmo com a pequena Gracie, e dizendo, com a voz mais severa que conseguia: “Aonde vocês tão indo?” E eles enfiavam a mão no bolso que Anna tinha costurado nos vestidos e nas calças e, sem discussão, sempre em silêncio, empurravam os documentos nas mãos de Jo. Quando ele começou a fazer isso, as crianças estouravam de rir, achando que era uma brincadeira. Elas não sabiam do medo que Jo tinha de pessoas uniformizadas; não sabiam como era ficar calado, quase sem respirar, debaixo do assoalho de uma casa de quacres, escutando o som do tacão da bota de um caçador de escravos acima de você. Jo tinha se esforçado tanto para que seus filhos não herdassem esse medo, mas agora desejava que eles pelo menos sentissem um pouquinho de medo."

Nada de novo sob o sol, são sempre os mesmos corpos matáveis.

Como escreve Conceição Evaristo em um de seus poemas:

"A terra está coberta de valas
e a qualquer descuido da vida
a morte é certa.
A bala não erra o alvo, no escuro
um corpo negro bambeia e dança.
A certidão de óbito, os antigos sabem,
veio lavrada desde os negreiros."

Janela

A janela agora é outra, não dá mais para a rocinha de milho, nem para o morro. Agora, a vista alcança uma casa abandonada que eu tento desvendar. Tem um alpendre na frente e uma pequena varanda atrás. Preso na parede, uma gaiola vazia com a portinhola aberta. Será que algum dia algum pássaro esteve preso ali? Tem um pezinho de mamão que resiste ao abandono e uma moita de ora-pro-nobis que avança por todo lado. Será que se eu observar mais eu decifro quem morou ali?

Pantera Negra

É representatividade que fala, né?

Não era pra eu ir assistir ao filme Pantera Negra com o menino. Ele iria com a namorada, mas um compromisso não permitiu que ela fosse na estréia. Como os ingressos já estavam comprados, lá fui eu. Com dor de cabeça e mal estar decorrentes da influência da lua nova na minha tpm. Fui insegura, com medo de passar mal no cinema. Nesses dias é sempre melhor ficar em casa, quietinha, com a cama ao alcance do corpo. O menino ansioso. Esperava por esse dia desde o ano passado. Eu, que morro de preguiça de filme americano, me animei quando soube que o elenco era majoritariamente negro e um super-herói africano me entusiasmou. Sem falar que o diretor e roteirista é Ryan Coogler, um jovem negro de 31 anos. E como disse o menino, me corrigindo. Não, mãe, ele não é só negro, ele é um negro diretor, roteirista e ativista. E ser ativista faz diferença. E o filme me surpreendeu. O menino me cutucou várias vezes, me apontando o braço arrepiado, como se fosse possível ver no escuro do cinema e com óculos 3D. Uma África tecnológica que não abre mão da tradição. E que beleza os corpos negros, as mulheres guerreiras, o figurino maravilhoso, até o sotaque africano nas falas em inglês. Cada dia me convenço mais que existe uma revolução em movimento e que passa pelo povo preto, no mundo inteiro. Ainda estou digerindo o filme, mas um certeza eu tive: quero me embrenhar pelo mundo dos HQ's, especialmente do Pantera Negra. Vão assistir ao filme, e por favor, levem as crianças!

Metrópole


Preciso redescobrir, reconciliar, fazer as pazes com BH, como um dia eu fiz com Baldim. A cidade grande ainda me assusta. O menino se apronta para o rolê. Eu faço o mesmo check list de sempre: chaves, carteira, dinheiro, documento... Já sei mãe, mãos pra cima, em lugar visível. Ele levanta a blusa, dá meia volta me mostra como é que faz e canta a letra dos Racionais: "Pode vir Gambé, Paga Pau, tô na minha na moral na maior/Sem Goró, Sem Pacau, Sem Pó. Eu tô ligeiro, eu tenho a minha regra/Não sou pedreiro, não fumo pedra. Um rolê com os aliados já me faz feliz"...
Ri, pega o skate e sai...
Eu, agora, só relaxo quando ele voltar pra casa.

Medo

"escrevo com muito medo/de que os homens saibam/que a mesa não está posta/e eu não limpei/o leite derramado". Eu, simplesmente, amo esse poema da Mariana Botelho. Na verdade, eu não estava escrevendo, mas passei a manhã lendo "O voo da Guará Vermelha", da Maria Valéria Rezende. A primeira vez que ouvi falar de Maria Valéria foi através do projeto "Quebras", do Marcelino Freire, há uns dois anos. Assisti a uma entrevista dela, no jardim de sua casa, em João Pessoa, feito pelo Marcelino. Ali, me encantei com a trajetória dessa mulher incrível que "fumou maconha, lutou contra a ditadura e foi amiga de Fidel (http://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2018/02/maria-valeria-rezende-freira-escritora-e-feminista.html). Depois, a vi na Flip, em julho do ano passado. Mas só esta semana peguei um livro dela pra ler. Não li mais rápido porque era pdf e não dava para carregar pra todo lado.Terminei agora à pouco, encantada com a história de Rosálio, um homem cujo objetivo de vida era aprender a ler. Maria Valéria, educadora popular, está inteira no livro e seus personagens são, na minha opinião, os educandos jovens e adultos que ela encontrou pelo caminho, seja no Brasil, na Argélia, no México ou em Timor Leste. Enquanto lia, lembrava o tempo todo de Paulo Freire, sua "Pedagogia do Oprimido" e do direito à palavra. Enquanto não terminei de ler o livro não consegui fazer o almoço. E, agora, escrevo com medo que as pessoas saibam que a casa está desarrumada e o tanque cheio de roupas sujas.

Escola pra quem?

Pegamos um Uber para chegar na hora. O sorteio estava marcado para as 10 da manhã e era necessário a presença do responsável pelo aluno. Quem não estivesse presente perderia a vaga. Chegamos às 9h50 e a sala já estava cheia. Muitos mães, alguns pais, filhos e filhas tensos dentro e fora da sala. 15 vagas para o primeiro ano do ensino médio. O menino vai para o segundo. Cada nome sorteado era cantado várias vezes por uma funcionária, ajudada por pais e mães numa espécie de jogral, até todos terem certeza que o sorteado não estava presente. Mães e pais cujos nomes dos filhos eram sorteados saíam com um sorriso no rosto. Algumas adolescentes choraram a vaga conseguida. Quem não conseguia, ia embora triste e frustrado. Na hora do sorteio do segundo ano, a diretora anunciou que eram 20 vagas para mais de 200 nomes. O número do menino era o 106 na lista de espera. O menino preocupado com a minha pressão arterial me abraçava tentando me acalmar. Não vai chorar agora, mãe. A diretora explicou que com a reforma do ensino médio, muitas vagas foram perdidas por causa do ensino integral. Além disso, a demanda aumentou com uma quantidade considerável de alunos egressos das escolas particulares. A cada explicação, nossa tensão aumentava. O menino gostou da escola desde o primeiro dia que estivemos lá. Na quadra, os olhinhos dele brilharam quando ele viu o grafitte: "Rap é compromisso" e um Luther King com a frase clássica "I have a dream". Mãe, eu não quero criar expectativas porque nunca ganhei nada em sorteio, mas olha, eu gostaria muito de estudar aqui. Uma escola que tem um grafitte do Sabotagem, não tem como não ser legal. Depois do terceiro número sorteado, a diretora resolver contar os presentes. Éramos 24. Ela então decidiu: Quer saber? 4 vagas a mais, 4 vagas a menos... Qualquer coisa, eu faço um puxadinho. Façam uma fila aqui para assinar a ata da reunião e pegar a lista de documentos necessários para a matrícula.
Na mesma hora, chegou um áudio da minha amiga Eda cantando:
"Abracei o mar na lua cheia, abracei
Abracei o mar
Abracei o mar na na lua cheia, abracei
Abracei o mar
Escolhi melhor os pensamentos, pensei
Abracei o mar
É festa no céu é lua cheia, sonhei
Abracei o mar"...
Eu abracei o menino e agradeci.
Odoyá!

Saudades

Tô com saudades do quintal da casa velha, da janela azul, do morro. Tô com saudades de encontrar com a Celsa na praça ou na porta de sua casa e receber seu abraço. Saudades de ouvir dona Geralda reclamando do joelho e me gritando da rua para ir até sua casa buscar um prato da comida de domingo: arroz, feijão, frango ensopado e macarronese. Saudades do meu irmão e das conversas na mesa da cozinha. Nem deu tempo de colher o milho criolo, ficou tudo pra semente. Saudades até do Scooby me acordando cedinho para abrir o portão pra ele dar o seu rolê.

Melancolia

Eu me mudei para BH no começo da década de 1980, aos 14 anos de idade. Sem formação e sem experiência trabalhei muito em subempregos. Na época, final da ditadura militar, o presidente da República era o general João Batista de Figueiredo. Depois, sobrevivi a Sarney, Collor e Fernando Henrique Cardoso. O sentimento daquela época era resignação, uma submissão sem revolta, um conformismo. Lembro do país vivendo a fome, a inflação e o desemprego. Depois, vieram os governos Lula e Dilma e senti na pele a transformação. Voltei a estudar, fiz especialização, mestrado e até doutorado com estágio sanduíche fora do país. Criei o menino com dinheiro de bolsa. Muitos amigos passaram em concursos nas universidades e nos institutos federais criados pelo presidente Lula. Vi muita gente sair da miserabilidade, vi contemporâneas minhas melhorarem de vida com o bolsa família. Hoje, aquele sentimento de resignação me ronda. Tô como a mulher do conto da Adélia, feito galinha na chuva, com "aquele passo bobo, aquele pescoço esticado pra frente, olha aqui, olha acolá, encharcada na friagem e na lama, sem resolver nada". Tô "com medo de apanhar tristeza, encardir de melancolia".

Metrópole

Os últimos três anos e meio morando em Baldim foram muito importantes. Cidade pequena, pais e mães meio que tomavam conta uns dos filhos dos outros, mais até do que os meninos gostariam. Alguém sempre dava notícia de onde e com quem estavam e eles ficavam meio que protegidos. O anonimato da cidade grande, que tanto o menino almejava, dá um certo desamparo. A metrópole é complexa: tem pista de skate, batalha de rima, sarau de poesia, cinema, shows de rap, mas tem uma desigualdade que agride. Não que em Baldim não existisse pobreza, mas parece que lá, os pobres ostentavam uma certa dignidade. Aqui, não. A injustiça social é jogada, diariamente, na nossa cara. O empobrecimento pelo qual passa a população tem sido gritante no último ano. Crianças voltaram pra rua, coisa que eu não via há muito tempo. Toda vez que o menino sai sozinho, são as mesmas recomendações: pegou documento? E se a polícia abordar, como faz? Sim, senhor! Não, senhor! Nada de capuz na cabeça. E o coração só sossega quando ele volta são e salvo pra casa.

Fruição


É sempre um aprendizado a convivência com o menino. Ele queria muito 'um quarto só pra si'. Agora, tem. Queria um armário para arrumar suas coisas que ficaram por tanto tempo em caixas de papelão. Agora, tem. Tá, é um armário velho, comprado em topa-tudo, mas até que ganhou um certo charme com os grapixos que ele fez. A cama ganhada não aguentou o peso dele e quebrou no primeiro dia. Tudo bem. Ele ajeitou o colchão no chão. Ele queria um som e trouxe o velho "3 em 1" Gradiente que o pai cedeu, e ainda catou um monte de vinil bonzão. A madrinha deu uma rede que ajudou a compor o quarto. Ficou charmoso, tem identidade. Dia desses, enquanto estreávamos o velho e bom chiado do vinil, ouvindo "Whish you were here", um disco de 1975 do Pink Floyd e que fez a minha cabeça na adolescência, ele me disse: "mãe, como eu gostaria de ouvir isso, de novo, pela primeira vez".

Tenho tudo que preciso

Estou no Aparecida! Cheguei segunda-feira. 
Passei a semana a desembrulhar as coisas.
Estamos sós, eu e Fridinha. Já varri o terreiro, lavei roupas e agora, faço a minha comida. E sinto prazer nisso. Reparo na incidência do sol sobre a casa, nos sons que chegam da casa do vizinho. Fridinha já responde aos cachorros do outro lado do muro. Enquanto estendo as roupas no varal improvisado, sinto o calor do sol sobre a minha pele. É bom estar só. Gosto do silêncio. Sinto que o deus das casas me protege.Tenho tudo que preciso!!!

Mãe solo

Difícil de ser mãe solo não é só a grana. Às vezes a gente quer dividir a opinião sobre a escolha de uma escola. Sei que não é fácil para o menino ser meu filho. Cresceu em meio às problematizações. Consciência e sensibilidade tem desde pequenininho. Ontem, almoçando no centro da cidade, ele perdeu a fome vendo pessoas em situação de rua. Eu briguei com ele: "Agradeça que você tem e coma essa comida!" Sempre conversamos muito, conversas, às vezes, muito difíceis. É preciso vigilância porque muitas vezes ele assume um lugar que não é dele. Dia desses, em um momento de estresse no meio de uma discussão acalorada, nem lembro mais o que falei sobre o lugar dele, e ele me respondeu bravo:
- Meu lugar é de filho. Um adolescente de 15 anos que ainda não trabalha e que não tem dinheiro.
Eu fiquei muda, chocada com a resposta que me trazia de volta à realidade. Apesar de toda parceria, ele é só um menino e tem direito a viver a sua adolescência. Não posso esquecer disso.
Desculpa meus excessos, João.

Mudança

Há cerca de uma semana estamos, efetivamente, por conta da mudança. Mas o projeto de mudarmos foi sendo gestado já há algum tempo. Na semana passada, faxinamos a casa. O menino trabalhou duro, sem reclamar. Pelo contrário, estava e está feliz demais com a casa nova. Casa que os padrinhos [que ele escolheu] construíram e moraram por tanto tempo. Estamos de volta ao bairro onde ele nasceu. Isto é, nascer mesmo, ele nasceu na maternidade Santa Fé, mas morávamos aqui, no bairro Aparecida. O bairro que mamãe veio morar quando se separou de papai, em 1978 ou 79, não lembro ao certo. E, hoje, fomos acolhidos pela mesma família que nos acolheu naquela época: os Noronha. Mamãe, uma jovem senhora de 49 anos, analfabeta, insegura com a metrópole que exigia o domínio de códigos que ela não tinha, foi auxiliada por Dona Detinha que a ajudou, entre outras coisas, a procurar escola para os filhos pequenos. No domingo, começamos a fazer a mudança. Buscamos uma doação aqui, outra acolá, e enchemos a pickupzinha do Zezé, que veio pesada, me deixando tensa nos 96km de Baldim a BH. Um barulho estranho na roda direita dianteira e eu assustada. "O que é isso, Zé?" "É sinal de que alguma coisa está estragando", ele falou com aquele sotaque de personagem saído de algum conto de Guimarães Rosa. "Pelo amor de deus! Não podemos ficar na estrada, não!" Não ficamos. A pickupzinha chegou inteira e paramos só uma ou duas vezes para Zezé proteger o vaso de capim cidreira que ele mesmo plantou para mim para os chás nos dias de tpm. Meu irmão trabalhou pesado. Ajudou a montar, carregar e descarregar. Depois me ligou dizendo: "É muito ruim saber que vocês não vão chegar". É, sim, Zé! Mas fica a lembrança de tudo que vivemos juntos nesses mais de três anos na casa de janela azul. Voltar ao bairro Aparecida, onde morei por tantos anos, também mexe muito comigo. Estou novamente cercada de amigos generosos. E já, já, será possível ouvir os tambores de congado pelas ruas do bairro. Deixá só abrir o reino.

Casa nova


Agora, a janela não é mais azul nem de madeira, mas dormiu aberta. Numa noite sem lua, quem velou meu sono foi a estrela D'alva. O silêncio é bom, quebrado apenas pelo som de passarinhos. Sim, há passarinhos por aqui, também. Fridinha dorme em sua caminha tão profundamente, que me certifiquei se ela respirava. Ainda está em processo de adaptação, meio insegura. Estranhou a viagem, mas se comportou como uma lady. Deve estar sentindo falta do quintal, da grama, do Scooby, dos sons e cheiros que estava acostumada. O menino está em lua de mel com o 'quarto só pra si' e o armário que agora é só dele. É um armário pequeno, comprado em topa-tudo, mas agora ele tem uma gaveta para meias e outra para cuecas, como desejou por tanto tempo e, pacientemente, esperou. Ainda faltam o suporte para o violão e uma caixinha para a guitarra. E o pôster do Tupac que ele já cobrou. Ah, e já temos geladeira, graças à generosidade da Fatima Maria, que eu faço questão de publicizar.

A arte de perder


Scooby dorme aos meus pés embaixo da mesa. Daqui, ouço o padre celebrando a missa de domingo. Os periquitos fazem algazarra no pé de manga. Sentada na mesa da cozinha, olho para os pés de milho criolo que começam a endurecer. O dia está nublado. Na sala, nossas malas e caixas de livros. Essa mudança é estranha. Sei que não vou sumir de Baldim, mas é certo que não virei com a mesma frequência. O coração começa a apertar e eu lembro de Elisabeth Bishop e seu poema "A arte de perder". A poeta nos ensina que perder não é nenhum mistério. Precisamos treinar diariamente o desapego. Perder um pouquinho a cada dia. Comece lembrando que perdemos as horas. Perca as chaves de casa. Depois exercite com coisas maiores: lugares, nomes, viagens. A gente também perde pessoas, e não é nada sério. Vamos sentir saudades, mas não chega a ser mistério.
Exercitar a perda alarga a alma e abre espaço para novos afetos.
Bom domingo

Mais um dia de reis

6 de janeiro de 2018. Mais um dia de Reis. Saímos de Baldim por volta das 17h. Escolhemos o caminho da Peroba. Zezé, precavido, separou um saco para os pequis que seriam recolhidos pelo caminho. Levamos muito mais tempo que o previsto, porque a cada pé de pequi, ele parava para recolher. A primeira surpresa do caminho foi uma raposa. Que bicho lindo! Foi a primeira vez que vi uma. Ela é pequenina, imaginei muito maior. Tentei fotografar, mas esperta, ela se embrenhou pelo cerrado. Depois, com o chove-não-chove, fomos brindados com um arco-íris. Lamentamos a ausência da Luia e do Roberto. É que a beleza sozinha é triste, ela pesa. E queríamos dividir com mais gente. Há anos, Zezé vai me apresentando os lugares e repetindo as histórias: aqui, eu trazia marmita para o papai; ali, ele plantou um quiabeiro; ali é a Tiririca onde Enir nasceu; esse corguinho aqui, nunca secou; ali é a Lapa, onde morava Dindinha Ana; aqui, passamos a noite, eu e Neném, depois de perdermos o caminhão de miçangas para Baldim, tivemos que ir à pé, no dia seguinte; ali, foi onde comi picão, época que passamos muita fome. Ele se emociona, os olhos enchem de lágrimas. Todo ano é a mesma coisa. Eu vou cobiçando e fotografando as casinhas. Olhe, Zé, uma dessas me atende, adoro janelas de madeira. Se eu morrer sem ter uma casa, vou morrer muito frustrada. Poderíamos comprar aquela ali. 40 mil. Vamos juntar dinheiro? A gente compra em sociedade. E sonhamos juntos. Da estrada enlameada ele vê o primo Dico na lida com as abóboras. Eu paro para fotografar a plantação de couve-flor que está uma beleza. Nos entretemos com a conversa. As chuvas fizeram perder muitas abóboras, que embora próprias para o consumo, não são compradas no mercado por causa de pequenos defeitos. Eu sofro com o desperdício. Não tem como doar para escolas, asilo? Não tenho como levá-las daqui. O primo convida para um café. Vamos até sua casa. Recém-separado está choroso. Eu e Zezé, experientes, ambos com dois descasamentos nas costas, damos um curso intensivo para ele. Olha, a gente não morre disso não, viu? Na maioria das vezes saímos melhor, mais fortalecidos. Separação é um processo longo de convencimento. Você precisa viver o seu luto. Tenha paciência, vai passar. A conversa-divã se prolonga. O café está bom. Um requeijão, desses de cortar em pedaços, sai da geladeira. Demoramos mais do que o previsto. Já é noite quando saímos de lá. Cuidado com a carência. Não vá se envolver com alguém nesse momento que você está fragilizado. Quando se está afogando, jacaré vira toco, viu? Já abraçamos cada crocodilo né, Zé? Rimos os três. O primo parece mais animado. Não sumam, não. Voltem depois. Qualquer hora eu apareço em Baldim. Quando finalmente chegamos no arraial, os foliões já estão no backstage da festa vestindo as fardas e afinando os instrumentos. Um dos primeiros a encontrarmos é Tio João, um dos fundadores da folia. 82 anos de lucidez, causos, piadas e uma risada parecidíssima com a de papai. Perdeu a bengala no caminho. Se apoia num pau de lenha que achou por aí. Ele ri. Isso a família de papai tem de sobra: bom humor. Vamos atrás de tia Mariinha, 95 anos. É a referência de todos da família. Queremos envelhecer como ela, vergada de motivos. Pergunta por todo mundo: e a Cleuza? Ainda está morando naquele lugar? E a Tina, o Nilson, a Luia? Enir, cadê? Seu menino não veio, por quê?Sabe a idade de todos. Lembra de datas. Falou emocionada no aniversário de morte do papai, 30 anos em 15 de novembro. Visitei ele uma semana antes. Falei de Deus pra ele. Ele ouviu quietinho. Tenho certeza que Deus o recebeu em glória. Morreu jovem, 62 anos. Já estou no lucro com 65, Zezé comenta. Falamos da doença de Chagas que o matou. Doença de pobre. Claro, rico mora em casa de pau-a-pique? Rico sempre morou em casa de alvenaria. Lembro de Carolina Maria de Jesus. Zezinho e Dulce, às vezes, Durça, é uma espécie de senha. Todo mundo conhece. Você é filha do Zezinho e da Dulce? Divera? Ô, diá! E viramos amigos de infância. Tia Mariinha conta, ajudei minha mãe a criar e enterrar meus irmãos e sigo firme, em pé. Procuro um lugarzinho dentro da capela para sentar com ela e vermos a adoração do presépio. Apesar de evangélica, ela respeita e se comove com a devoção do irmão. Depois do sagrado, vamos todos para o salão para a hora mais esperada, o lundu. O povo se diverte, as crianças participam. Terminada a dança e cantoria uma fila se forma. É hora do banquete coletivo. Feijão tropeiro, arroz, macarrão, frango ensopado. Sem área vip, Tio João entra na fila para dar o exemplo. Mas não precisa, tio; o Senhora é da diretoria, brinco. Ele faz questão. Antes, busca um prato de comida para a esposa. Alguém traz para tia Mariinha que está sempre cercada de gente de todas as idades, todos impressionados com sua vitalidade. A fila também é um acontecimento. Alguém passa oferecendo uma pinguinha para abrir o apetite. Conhecidos se encontram. Você é filho de quem? Ah, conheço o seu avô. Histórias são contadas. Ele perdeu um filho. Nossa, que tristeza! Avisa fulana para separar os doces que amanhã eu passo lá. E estou com muita gente, viu? 4 carros e uma van. Depois de comermos, saímos à francesa. Já são mais de 11 horas da noite.
Até para o ano, se deus quiser.