quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Viva los estudiantes!

Cerca de 60 e poucos dias e 2016 acaba. Ufa! Que ano! O ano que finalizei e defendi a tese e isso não é pouca coisa não. Assim como olho para o menino no alto dos seus 1,80m e não acredito que chegamos até aqui, eu olho para o meu diploma de doutorado, meio incrédula, que consegui escrever a tese. Daqui, da mesa da cozinha. A mesma mesa que sentava com mamãe para o café e ouvia suas histórias. Muitas delas repetidas várias vezes e que hoje, dá um arrependimento por não ter registrado.
Cozinha é lugar místico, lugar de alquimia. É aqui que mato a minha fome, do corpo e da alma. Os livros e cadernos estão espalhados pelas cadeiras, bancos e mesa. Dia desses, o moço do supermercado veio trazer a compra e ficamos num impasse, sem lugar para colocar as compras: "aqui tem gente que gosta de ler, hein?" Ele disse procurando um espaço entre os livros para colocar os pacotes.
Há cerca de 2 anos e meio o menino me pergunta, quase que diariamente:"depois daqui, a gente vai pra onde, mãe?" E, parece que agora, finalmente, eu tenho uma resposta, voltar para a metrópole. Há meses já ensaio essa volta. Dia desses, voltando do Palácio das Artes fiquei pensando na diferença dos medos que sinto em uma e outra cidade. Na capital tenho medo de assalto, de assédio. Se bem que assédio tem em qualquer lugar. Aqui mesmo, tive que mudar o trajeto da caminhada para não me aborrecer. Aqui, tenho medo de aranha que sempre aparece quando cortamos a grama do quintal; tenho medo de cobra quando embrenho no mato para tirar retrato; tenho medo das vacas. Dia desses corri de uma que veio em minha direção, depois que passei embaixo da cerca para fotografar o pôr do sol. Os medos são diferentes, mas estão aí, com a gente.
"Você vai perder essas singelezas quando mudar para a capital", uma amiga disse. Mas eu penso que o mesmo sol que brilha aqui, brilha lá. A caminho da Faculdade de Educação - FaE onde estou dando aulas, sempre me distraio com a beleza do campus. Os ipês rosa, amarelo e branco, os passarinhos que são muitos, as orquídeas do jardim da FaE e claro, os estudantes que para minha alegria e orgulho estão ocupando tudo por lá.
Acompanhei a angústia dessxs meninxs me chamando a atenção: "professora, não podemos ficar aqui discutindo prática de ensino em Ciências Sociais, se nem sabemos se amanhã estaremos em sala de aula".
Hoje é dia de seguir para a capital. Amanhã estarei lá, na FaE, juntos com xs meninxs, ocupando aquele espaço que é nosso, porque é público e resistindo à essa PEC do fim do mundo.
"¡Que vivan los estudiantes,
jardín de las alegrías!
Son aves que no se asustan
de animal ni policía,
y no le asustan las balas
ni el ladrar de la jauría.
Caramba y zamba la cosa,
¡que viva la astronomía!
Me gustan los estudiantes
porque son la levadura
del pan que saldrá del horno
con toda su sabrosura,
para la boca del pobre
que come con amargura.
Caramba y zamba la cosa
¡viva la literatura!"
#NãoaPecdoFimdoMundo
#Ocupatudo
#OcupaFaE

domingo, 23 de outubro de 2016

Representatividade importa

Enquanto não sai um cantinho pra nova moradia ainda estou num vai e vem entre Baldim e BH. Os cerca de 100 km que me separam da capital, às vezes são feitos em até 3 horas, naqueles ônibus pinga-pinga, andando por estradas de chão. Não reclamo. Com o tempo das águas chegando, até que não é ruim. A chuva apagou a poeira, o cerrado está no rebroto, os pequizeiros estão em flor e os personagens que entram e descem dos ônibus são interessantíssimos.Como diz o poeta Miró da Muribeca, "janela de ônibus é danado pra botar a gente pra pensar, ainda mais quando a viagem é longa".
Depois de quase uma década morando em cidades pequenas, sempre me assusto com a metrópole. O abandono e a privatização pelos quais vem passando BH, nos últimos 8 anos, estão visíveis pelas ruas e praças. Mas a babilônia tem seus encantos. Apesar do descaso por parte de seus gestores públicos, existe uma cidade viva que pulsa. Ouvi isso da boca da minha vereadora, Áurea Carolina, dia desses.
Na semana que passou, aproveitei uma carona e fui mais cedo para BH. Fui ao teatro. Tinha ingressos para o espetáculo "O topo da montanha" com o casal Lázaro Ramos e Taís Araújo. Adoro o Palácio das Artes. Acho um dos espaços mais democráticos da cidade. Na entrada do teatro é possível ver pessoas com roupas de gala e com bermuda e chinelo. Amo!
O espetáculo produzido pelo casal de atores globais e dirigido por Lázaro foi escrito pela autora negra, americana, Katori Hall. É interessante quando os negros estão presentes também na autoria e na produção das trabalhos. Faz toda a diferença. Lázaro conta que descobriu a escritora através do assessor do ex-ministro Joaquim Barbosa, quando participou de seu programa "Espelho". Olha mais preto aí.
A peça relata o que teria sido as últimas horas do pastor e ativista dos diretos civis, Martin Luther King. A escritora Katori Hall, cria uma camareira empoderada para mostrar toda a humanidade de Luther King. Seus defeitos, medos e insegurança. Taís Araújo está grande na peça. Não fica a dever em nada para o marido, Lázaro.
Chorei em várias momentos do espetáculo, que é realmente muito bem cuidado. Apesar do texto abordar o contexto americano do final dos anos de 1960, não tem como não fazermos associações com o Brasil atual, principalmente no que diz respeito ao racismo e ao extermínio da juventude negra. São 82 jovens mortos todos os dias por aqui, sendo que 77% deles são negros.
Além da peça ser escrita, produzida, dirigida e encenada por negrxs, me chamou a atenção a quantidade de negrxs na platéia. Ainda não reflete o percentual que somos da população, mas o número era bem maior do que normalmente circula nesses espaços. Representatividade importa, muito! É isso que a gente não cansa de repetir. Eu desliguei a TV há cerca de 2 anos e meio porque cansei de não me ver representada. Mas não queremos representatividade somente nas artes, não. Queremos também nos espaços de poder.
Ontem, participei de uma conversa sobre mulheres na política com a vereadora de Natal, Amanda Gurgel e a vereadora recém-eleita, Áurea Carolina. Ambas de esquerda, negras, periféricas. Por vários momentos não consegui engolir o choro enquanto ouvia essas duas mulheres incríveis.
Nossos corpos negros e de lutas precisam estar em todos os espaços, do Palácio das Artes à Câmara Municipal de Vereadores. Representatividade importa! Junto com nossos corpos vão nossas pautas. Queremos o empoderamento das mulheres, queremos a juventude negra viva, nenhum direito a menos, nenhum despejo a mais, queremos ocupar os espaços de uma cidade que é nossa.
Amanda contou dos desafios que enfrentou em seu mandato. Falou das agressões e ameaças que sofreu, mas também contou de suas vitórias. O passe livre para os estudantes de Natal, a licença remunerada para servidoras municipais em situação de violência doméstica, entre tantos outros.
Ouvir essas duas mulheres me fez reconectar com o sentido positivo da política, com o sentimento que, precisamos sim, ir pra cima, não podemos entregar os pontos, é nois por nois.
Foi tão empoderador ouvir essas duas mulheres incríveis, de luta, combativas que saí do encontro com meu espírito renovado e convencida que mais do que nunca precisamos estar juntxs, nos encorajando e nos fortalecendo.
Um outro mundo é possível e se não for por nós, que nossa luta seja por nossxs filhxs, netxs, sobrinhxs. Um orçamento congelado por 20 anos coloca uma geração inteira em perigo. Não nos deixemos abater. Bora pra luta. Por todxs que tombaram antes de nós. Nossos passos vem de longe. Sigamos juntxs! Somos Muitxs!

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

A palavra tem Cep



"A beleza é tudo aquilo que você não dá conta de ver sozinho. Ela pesa muito. Então você tem que passar pra alguém." (Bartolomeu Campos de Queirós)
Foi assim na quarta feira, durante o Circuito das Letras, evento da Secretaria Estadual de Cultura que está acontecendo em BH. A conversa sobre a transversalidade da linguagem aconteceu entre o músico Criolo e o poeta Ricardo Aleixo.
Dois da periferia. Este poderia ser o título da mesa que discutiu entre outras coisas, se o Cep faz diferença na composição da obra dos artistas.
Aleixo falou dos desafios em ganhar a vida com a palavra. Segundo ele, a elite quer a palavra só para si, para inviabilizá-la como elemento de transformação.
De novo, eu lembrei de Paulo Freire e do direito à palavra. Segundo Freire, os dominados para dizerem a sua palavra têm que lutar para tomá-la. Freire que se alfabetizou escrevendo com gravetos no chão, embaixo das mangueiras de sua casa, no Recife. "O chão foi meu quadro negro; gravetos o meu giz", ele diz.
Fico pensando que foi isso que fez Carolina Maria de Jesus, que escrevia até com carvão em sacola de papel, biografando-se, existenciando-se, historicizando-se. Salve Carolina!
A escritora Conceição Evaristo também revela que a origem da sua escrita passa por sua mãe, que embora não alfabetizada, foi quem lhe forneceu o primeiro sinal gráfico, acocorada na porta do barraco na favela onde moravam. O lápis era um graveto e o papel era o chão lamacento, onde ela desenhava um sol cheio de grandes pernas. Lavadeira profissional, a mãe precisa dele para secar as roupas das patroas e garantir o sustento dos filhos. O desenho era a sua evocação.
Direito à palavra... Dois da periferia. Muitos das periferias...
Depois de Aleixo, falou Criolo. Falou sobre como o seu Cep influencia a sua escrita. Contou da embalagem de arroz, feito mochilinha para o material escolar. Falou do brasão da escola desenhado pela mãe que não tinha dinheiro para comprar o uniforme.
Sim, o Cep influencia a escrita. Tudo isso está lá, nas letras de Criolo, nos poemas do Aleixo, na escrita de Carolina e Conceição Evaristo.
A linguagem é também disputa.
As palavras que Aleixo e Criolo jogaram no ar, voaram e ainda ressoam em mim até agora.
Gratidão por tanta beleza.



terça-feira, 4 de outubro de 2016

Uma esperança pousou em mim, uma flor brotou no asfalto

Fui dormir às 2 horas da manhã, ainda excitada com a vitória de Áurea Carolina. Nada conseguiu tirar minha alegria. Áurea Carolina, essa preta linda, já chegou fazendo história: a vereadora mais votada de todos os pleitos municipais da capital. Mas ela não chegou agora, ela já está aí, faz é tempo.
Acordei pensando em Clarice:
'Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que esta, pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: "e essa agora? que devo fazer?" Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim." (Clarice Lispector, Uma esperança).
Uma flor nasceu em mim...
Clarice me salvando, como sempre...
Lembrei também de Drummond:
'Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
É feia. Mas é flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio."
Áurea se forjou nas ruas da metrópole. No movimento hip hop, nas ocupações urbanas, no movimento estudantil. Quando resolvi publicizar o meu voto, o pai do menino me disse: "Que legal, Dalva! Conheci Áurea Carolina, em 2003, no congresso da UNE, em Recife." Congresso que teve em sua abertura, o então ministro da cultura do governo Lula, Gilberto Gil. Lembro até hoje do discurso dele: "o povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe."
13 anos atrás e Áurea, em Recife, ouvindo discurso de Gilberto GIl.
"Nossos passos vem de longe"...
"O sistema é bruto e o processo é lento."
O vídeo da campanha de Áurea passou várias vezes por minha timeline até eu resolver assistir. E quando assisti, pirei! Um monte de mulher preta, foda, rappers que admiro, algumas gravando em estúdio, com seus filhos no colo. Áurea saindo do subterrâneo do metrô na Praça da Estação. Um clip esteticamente muito atraente. Já fiquei balançada. Não conhecia Áurea. Depois, vi o vídeo da escritora Cidinha da Silva, que admiro e respeito demais, falando a respeito de Áurea. Ali, comecei a me decidir. Mas vieram outros, o professor Juarez Dayrell, os músicos Maurício Tizumba e Sérgio Pererê, a atriz Grace Passô, dentre tantas outras pessoas legais que admiro.
Me decidi! E desde que percebi que formo opinião, ainda que restrita ao meu mundinho, penso que tenho obrigação moral de me posicionar. A cada vez que ouvia Áurea falando em seus vídeos de campanha, mais certa ficava do meu voto.
E foi com uma alegria imensa no coração, que saí ontem de Baldim, para vir para BH. Sempre fico muito emocionada quando vou votar, nervosa até.Tenho medo de fazer alguma coisa errada e anular o meu voto. Mas não teve erro. Nem precisei de colinha. 50, o número do PSOL; e 180, o número para denunciar violência contra a mulher. Lembram da Elza Soares?
"Cadê meu celular?
Eu vou ligar pro 180
Vou entregar teu nome
E explicar meu endereço
Aqui você não entra mais
Eu digo que não te conheço
E jogo água fervendo
Se você se aventurar...
Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim"...
Quando comecei a acompanhar o resultado oficial do TSE, às 17h, Aurea já começou na 27a posição. Depois pulou para 17a, 2a, 1a e nao saiu mais dali. Foi uma alegria imensa e eu chorei de emoção. Foda-se, se o seguno turno será entre João Leite e Kalil. Estou representada na camara dos vereadores. Minhas pautas estarão lá dentro, na voz de Áurea. Pode parecer pouco, mas não é não! Áurea não é uma delegada de polícia, ou uma capitã militar ou a tiazinha da farmácia. Ela é feminista, é preta, é da periferia, é militante. E foi a mais votada. Desbancou muito playboy profissional.
Penso que a vitória de Áurea explicita a necessidade de reinvenção da política. Uma campanha realizada sem dinheiro, construída no coletivo, na solidariedade, usando as redes sociais, congregando um monte de gente com desejos e sonhos parecidos. Como disse o Gilberto Gil, no discurso da UNE, em 2003: "nas brechas e nas frestas, outras visões surpreendem".
É o novo que está nascendo.
Uma esperança pousou em mim, uma flor brotou no asfalto.
E essa minha alegria, ninguém vai tirar.
Não façam movimentos bruscos. A esperança é um bichinho frágil. Precisamos facilitar o seu caminho.