sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Teatro

Se existem pessoas falando e outras ouvindo, isso é teatro!

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Liberdade

Ai que prazer não cumprir um dever.
Ter um livro para ler e não o fazer!
Ler é maçada, estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal, sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal como tem tempo, não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta.
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa

domingo, 12 de julho de 2009

Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos. Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo; Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir

Álvaro de Campos

quinta-feira, 9 de julho de 2009

A Esperança

Aqui em casa pousou uma esperança. Não a clássica, que tantas vezes verifica-se ser ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre. Mas a outra, bem concreta e verde: o inseto.

Houve um grito abafado de um de meus filhos:

- Uma esperança! e na parede, bem em cima de sua cadeira! Emoção dele também que unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim, sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço: mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não poderia ser.

- Ela quase não tem corpo, queixei-me.

- Ela só tem alma, explicou meu filho e, como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças.

Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.

- Ela é burrinha, comentou o menino.

- Sei disso, respondi um pouco trágica.

- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.

- Sei, é assim mesmo.

- Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.

- Sei, continuei mais infeliz ainda.

Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando. Vigiando-a como se vigiava na Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não se apagasse.

- Ela se esqueceu de que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar devagar assim.

Andava mesmo devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo.

Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha. Não uma aranha, mas me parecia "a" aranha. Andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria a esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse fracamente, confusa, sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:

- É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte...

- Mas ela vai esmigalhar a esperança! respondeu o menino com ferocidade.

- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros - falei sentindo a frase deslocada e ouvindo o certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada: eu lhe diria apenas: você faz o favor de facilitar o caminho da esperança.

O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e a nossa esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo.

Mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde, e tem uma forma tão delicada que isso explica por que eu, que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la.

Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que esta, pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: "e essa agora? que devo fazer?" Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada.

LISPECTOR, Clarice, in "Felicidade Clandestina" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998

terça-feira, 7 de julho de 2009

Sentimento

"Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento."
Adélia Prado

sábado, 20 de junho de 2009

"Cada qual tem o seu álcool.
Tenho álcool bastante em existir.
Bêbado de me sentir, vagueio e ando certo."
"Sonho a sua presença com uma distração especial, que todo a minha atenção analítica não consegue definir"

Argonautas e sensíveis

"Diziam os argonautas que navegar é preciso,
mas que viver não é preciso.
Argonautas, nós da sensibilidade doentia,
digamos que sentir é preciso,
mas que não é preciso viver".
Bernardo Soares ( heterônimo de Fernando Pessoa)

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Manoel de Barros

O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás da casa.
Passou um homem depois e disse: essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás da casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Aquecendo para o Sarau...

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos -
O verbo tem que pegar delírio.
(Manuel de Barros - Livro das Ignorãças)

terça-feira, 16 de junho de 2009

É a sala de aula que me salva...

domingo, 14 de junho de 2009

"Eu não tô entendendo nada!"

Já perdi a conta de quantas vezes assisti ao filme Amélia de Ana Carolina. Sempre encontro um pretexto para passar para @s alun@s: discutir capital cultural do Bourdieu, discutir etnocentrismo na Antropologia e por aí afora. Esse final de semana, assistindo aos extras e ouvindo a Ana Carolina dei mais uma de minhas "piradas".

A diretora comenta da incomunicabilidade humana. A cena em que as irmãs chegam ao hotel e encontram com a criada de Sara, Vicentine, é um bom exemplo disso. Ana Carolina, deixa a cena sem legenda, enquanto Vicentine fala em francês levando o espectador a compartilhar da angústia das irmãs.

Mas a orientação de Amélia era: "finjam que conhecem tudo muito bem, não é difícil, é só ficarem caladas". E, segundo Ana Carolina, quando não entendemos, começamos a adivinhar. É o que as irmãs tentam fazer, adivinhar o que aquela mulher está querendo dizer naquela língua estranha. E quantas e quantas vezes não entendemos nada, mas fingimos que conhecemos tudo muito bem? Por isso a interlocução é tão difícil.

Estava tudo muito seguro, previsível até o encontro das irmãs com a francesa. Mas estar de frente com a alteridade desestrutura tudo. O "outro", o diferente tem o poder de desencadear isso em nós. Segundo Ana Carolina, na maioria das vezes não entendemos ou entendemos muito mal o "outro", pois para entendê-lo é preciso conhecê-lo. Essa lição a antropologia já nos ensinou, mas o conhecimento da diferença exige acolhimento e generosidade.


Quando a alteridade se coloca, tudo que estava seguro entre aquelas mulheres se abala. A crise de Sara é a crise de todos nós, diz Ana Carolina, por isso "bem aventurados aqueles que conseguem, debaixo de grande tortura, achar um jeito de fazer o seu dialeto próprio". Às vezes demoramos uma vida inteira pra aprender a falar a nosso própria língua, nos fazer entender, conseguirmos nos expressar. A não expressão é o hospício, diz Ana Carolina. Mas construir seu próprio dialeto não é tarefa fácil. A cineasta usa a metáfora de uma caixa de concreto onde se está preso. A ruptura dessa caixa é resultado de trabalho árduo, que às vezes pode levar anos, é "estiva" como ela mesma diz e não tem nada de glamour. Mas não há outra saída: ou conseguimos nos expressar ou é a loucura!

Felizes aqueles que conseguem construir seu próprio dialeto, felizes aqueles que rompem a caixa, felizes os que conseguem se fazer entender!!!

Salve, salve, Ana Carolina!!!

sábado, 13 de junho de 2009

De novo, Clarice...

"Borboleta é pétala que voa"

Sou Clarice, sou Adélia

Hoje acordei Clarice, mas Adélia me arrumou:

Dona Doida
Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso,
com trovoada e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.
(Adélia Prado)

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Sala de aula: exercício de humanidade...

Um dia desses, li uma entrevista[1] do ator João Miguel, de quem gosto muito, diga-se de passagem, e fiquei extremamente mexida com as coisas que ele disse. Guardadas as proporções, os sentimentos e sensações vivenciados por ele nos palcos são parecidos com os que vivo na sala de aula: um exercício diário de alteridade, de encontro com a diferença. João Miguel disse que empresta suas memórias para seus personagens. Comigo não é diferente, são minhas memórias que alimentam o meu ofício de professora. A sala de aula é um espaço onde me reinvento todos os dias. É lugar de encontro, de diálogo, de afeto, mas também de conflito. É na sala de aula que exerço a minha humanidade, é onde, todos os dias, sou chamada a rever minha prática, com os meninos e meninas me colocando pra pensar, me instigando, me ensinando coisas novas, com aquela energia própria da juventude. Muitos alunos e alunas mais quietos, mais calados, esperam pacientemente a aula terminar para, em particular, dar seu depoimento de como tem sido legal a troca. E os depoimentos têm sido muitos... E se (meus) meninos e meninas têm sido tocados, é porque, parafraseando João Miguel, ali abriu-se um canal, que para mim é sagrado. A todos vocês, meus alunos e minhas alunas, serei pra sempre devedora. E parafraseando mais um grande mestre, de vocês quero ser discípula e testemunha ... Para sempre!

[1] Para quem quiser ler a entrevista (Entre o sertão e o abismo) ela está disponível em http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/3078,1.shl

domingo, 24 de maio de 2009

"Clara manhã de quinta à noite"

Ah, o menino...
Ele já havia comentado do livro:
- Mãe, hoje, a professora de literatura leu um livro muito legal, ele é todo ao contrário.
E por dias, ele ansioso, doido pra trazer o livro para casa, para a mãe ver, queria compartilhar com ela, ver sua reação. Pediu inclusive, à bibliotecária para reservá-lo.
Naquela noite, quando a mãe chegou em casa, ele tinha novidades. Mostrou feliz, o tal livro. Parecia a menina de Clarice Lispector no conto Felicidade Clandestina.
- Mãe, a maioria dos livros começa assim: Era uma vez uma princesa... Esse não,
“Clara manhã de quinta à noite”. O título já diz tudo! - dizia o menino entusiasmado.
- Olha só essa frase: "Acordei e sonhei que tinha morrido"! - Não é uma frase legal?
A mãe ouvia o entusiasmo do menino com o livro na mão.
Na hora de dormir a mãe leu o livro. Uma, duas vezes, de trás pra frente, inclusive. Aquele não era um livro qualquer, abria muitas possibilidades... E a mãe aprendeu mais uma coisa com o menino: escapar ao óbvio é fundamental!

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Receita

Adélia Prado ensina:

Se o amor lhe fere,
Ponha ele no pilão,
Junte cinza e grão de roxo,
Soque bastante, macere bem
Faça um cataplasma
E coloque sobre a ferida.
É tiro e queda!

domingo, 17 de maio de 2009

Cazuza

"O dia também morre e é lindo
Quando o sol dá a alma
Pra noite que vem"

quarta-feira, 13 de maio de 2009

"Criança não merece fome, criança não merece guerra"

Lá iam, o menino e a mãe, de mãos dadas pela calçada.
Ele, em “lua de mel” com o cofrinho que acabara de ganhar, dentro algumas moedas...
De repente, a mãe é abordada por um garoto, desses em “situação de risco social”, como é politicamente correto falar, hoje em dia. Já é um adolescente, aproxima- se e pede uma moeda. A mulher diz que não tem, o garoto se afasta. Ter o não como resposta já faz parte do seu cotidiano, nem se importa mais... Depois que o garoto se afasta, o filho pergunta:
- “Mãe, o que ele queria”.
- “Uma moeda” – ela responde.
- E por que você não deu? Insiste o garoto. “Você mentiu pra ele, você tem uma moeda”.
O menino se afasta da mãe, aproxima do garoto e pergunta?
- O que você quer? Uma moeda? Pode ficar com as minhas. E sem titubiar, abre o cofrinho e despeja todas as moedas nas mãos do garoto. Não são tantas assim, mas o garoto se surpreende com o gesto do menino...
De mãos dadas mãe e filho seguem seu caminho, ele cantarolando: “criança não merece fome, criança não merece guerra”. A mãe engole o choro e aperta a mão do filho que olha cheio de ternura pra ela.

sábado, 9 de maio de 2009

Cerrado

O Cerrado sempre foi o quintal de minha casa.
Lembro com saudades da infância com meus irmãos e irmãs e da aventura que era ir pro mato para catar gabiroba, mangaba e cagueiteira... Também o pequi, o articum, a goiabinha do mato...
Há alguns dias, reencontrei um texto de Guimarães Rosa, uma carta para seu tradutor italiano, onde ele explica para o "estrangeiro" o que é a VEREDA: " a vegetação é a do cerrado: arvorezinhas tortas, baixas, enfesadas (só persistem porque têm longuíssimas raízes verticais, pivotantes, que mergulham a incríveis profundidades)."
Me senti a própria: uma arvorezinha do cerrado, torta, baixa, enfesada e com raízes longuíssimas...
Foi lendo Guimarães Rosa que perdi meu complexo de ser da roça... do cerrado...

Acontecências...

Acontecências aconteceu sempre. Simplesmente aconteciam, ou eu queria que elas acontecessem.
Tinham que existir, num carne e osso de tinta e papel.
A palavra saltou de um estalo. Penetrando no mundo renovado e pitoresco onde respiram personagens, um mundo cheio de mar, observei que há gentes, do lado de cá, que passam a vida inteira sem saber as coisas lindas e diferentes que acontecem do lado de lá.
Acontecências emergiu do mar, fazendo minha Minas Gerais sentir saudades.
Mineiro, quando descobre a imensidão de água, que engole céu e matas usando suas cores, primeiro se assusta, não acredita. Depois escreve, pinta, faz canção. E termina se apaixonando pela beleza desconhecida, onde pedras e praias escondem segredos que pescadores revelam, coqueiros apostam com montanhas qual vai relar mais vezes no céu, e a gaivota mergulha, mas o peixe já pulou para ver.
Sem acabar a linha do fim, ele vai e depois volta. Manso, concordando com proas e pôpas. batendo nas rochas, endoidado de raiva ou de alegria.
Cada vez que ouço a onda desenrolada bater no casco do barco, eu sei. Ele está me contando mais uma acontecência...

Vilma Guimarães Rosa

sexta-feira, 8 de maio de 2009

O poder da palavra: Narradores de Javé à luz de Pedagogia do Oprimido

Diante da ameaça de desaparecimento do povoado sob as águas de uma barragem que será construída para abastecer uma usina hidroelétrica, os moradores do Vale do Javé se reúnem para a busca de uma solução. Descobrem, então, que existe uma possibilidade de salvação: o tombamento do local como patrimônio histórico. Mas para isso, a cidade tem que ter uma “coisa grande”, uma “história importante”. Esse é o enredo que conduz a narrativa do filme de Eliane Caffé.

No entanto, os moradores se vêm diante de um impasse: de quem será a “mão santa” que colocará as letras no papel? Desencavar da cabeça os “grandes acontecimentos”, as “histórias das origens , a “história grande”, não é problema. Cada um dos moradores tem a sua versão do mito fundador do lugar. Eles têm a palavra cantada, contada e recontada, muito ouvida, mas nunca escrita. Mas quem seria capaz de colocar no papel, de “ajuntar as histórias espalhadas” e transformá-la em “dossiê científico”? Antônio Biá é a resposta. Antigo funcionário do posto de correio, ele é expulso da cidade quando os moradores descobrem que para manter o seu emprego e impedir que o posto feche, por não ser utilizado, Biá começa a escrever histórias sobre as pessoas do vilarejo e enviar para todos conhecidos, aumentando assim, o seu serviço . Os moradores, então, concedem o perdão, se em troca, Biá assumir o lugar de “escrivão” da “grande odisséia” do Vale. Aceito o desafio, ele sai então, em busca das “lembranças javéicas”, dos “grandes feitos”, pois, “histórias grandes”, “de valor”, é que não faltam, ali.

Mas o que Narradores de Javé tem a ver com a Pedagogia do Oprimido? O Vale é um lugar de analfabetos, e segundo Paulo Freire (1968), alfabetizar é conceder ao outro o direito a palavra. Esse é o papel que Antônio Biá desempenha na história. Ele ajuda as pessoas a “biografar-se”, a “existenciar-se”, “a historicizar-se”, pois na pedagogia freireana, alfabetizar-se é aprender a escrever a sua vida, como autor e testemunha de sua história. E é isso que Biá proporciona aos moradores do lugar, na medida que busca palavras para dizer e escrever a história do povoado.

Como na pedagogia do oprimido, as palavras em Narradores de Javé, têm uma força pragmática que instaura e transforma o mundo humano. Os moradores ao ganharem distância para ver a própria experiência, analisam e reconstituem uma situação vivida. Ao objetivar seu mundo, reencontram-se uns com os outros no mesmo mundo comum e, juntos recriam criticamente o seu mundo. Ali, a palavra transforma-se no lugar do encontro, de cada um consigo mesmo e com os outros. É a dialogicidade como prática de liberdade. Isso porque, como nos diz Paulo Freire, a língua é cultura, onde a partir de suas palavras, o homem constrói o seu mundo. “O que o homem fala e escreve e como fala e escreve, tudo é expressão objetiva de seu espírito. Por isto, pode o espírito refazer o feito, neste redescobrindo o processo que o faz e refaz” (FREIRE, 2005, p.11). E é isso que faz cada morador.

No mito fundacional de Javé, existe a figura daquele que guia seu povo para a terra prometida, Indalécio. A cada história narrada, o narrador busca o herói para si. Mas não é essa a função da narrativa? Nutrir-se da memória para narrar o que aconteceu em torno de uma determinada experiência? Sua lógica vai sendo tecida no modo como o (a) narrador(a) transita entre os eventos e imagens mais significativos (Teixeira et al 2006). E assim, a cada narrativa, cada morador se torna protagonista da sua história, re-existenciando criticamente as palavras de seu mundo e dizendo a sua palavra.

A possibilidade de desaparecimento do lugar leva os moradores a se re-descobrirem através da retomada reflexiva de um processo onde vão manifestando-se e configurando-se enquanto autores de uma história. Segundo Freire, esse seria o objetivo da alfabetização, mais do que aprender a ler as palavras, é preciso aprender a dizer a sua palavra.


Referências Bibliográficas

CAFFÉ, Eliane. Narradores de Javé. Bananeira Filmes, 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 41 ed, 2005.
TEIXEIRA, Inês Assunção de C., PRAXEDES, Vanda L., PÁDUA, Karla C. et al. Memórias e percursos de estudantes negros e negras na UFMG. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Enquanto espero..

[...] Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem,
e canto lento,
para mim só,
vagos cantos que componho enquanto espero [...]
Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)

A febre de sentir...

"Eu digo que todo mundo tem de viver uma grande paixão amorosa e ter uma experiência pela possibilidade da revolução. Sem essas duas coisas você não viveu uma vida completa" Marilena Chauí

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Confissão

[...] a necessidade de confissão, essa doença moderna que condena à morte, pela palavra e pela sintaxe, todos os sentimentos que nos oprimem [...] Sérgio Buarque de Holanda

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Pessoa, de novo...

"Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir.
O que confesso não tem importância, pois nada tem importância.
Faço paisagens com o que sinto."

Sentimento

"Não é possível aprisionar o sentimento do corpo."

Pessoa

"Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas."

segunda-feira, 27 de abril de 2009

A minha São Paulo

O que estava no meu imaginário?
Congestionamentos intermináveis, poluição e a tão “banal” violência...
O que eu vi? Muitos, muitos chineses, coreanos ou será japoneses? Sei lá! Só sei que tinham os olhos puxados e falavam uma língua estranha... Ficava imaginando o que aqueles gringos estariam fazendo ali, na Florêncio de Abreu...
Que mais vi?
Vi o “Mestiço” na Pinacoteca. Vi que o perfil do público que freqüenta a Pinacoteca é muito diferente do que o que freqüenta o Parque da Luz, embora estejam ali, um do lado do outro, numa aparência de espaços democráticos, mas com uma divisão invisível. E os dois públicos não se misturam, mesmo!
Vi a muvuca que é a 25 de Março, e embora, imbuída de alma de etnógrafo, não dei conta da multidão... Quis sair logo dali, mas estive lá: Eu vi!
Ah, vi também a Paulista, com seus prédios imponentes... Mas não gostei. Me lembrou a Savassi. Tudo bem! É preconceito mesmo! Eu sei!
Vi manifestações de trabalhadores nas escadas da Sé...
Vi o Pateo do Collegio onde tudo começou.
Vi a beleza da arquitetura do Municipal.
Me encantei com a Estação da Luz...
Ah, engoli em seco ao atravessar a Ipiranga com a Av. São João. A boca encheu de água, deu vontade de tomar “uma” na Bar da Brahma.
Me emocionei no Memorial da América Latina vendo os troncos pintados do Quarup, engoli o choro...
Andei MUUUITO de metrô, que fez tudo parecer pertinho.
Comi pizza paulista, mas não gostei.
Não comi pastel do Mercado. Outra vez não tive paciência com a multidão. Acho que tô ficando velha...
Amei MUUUITO...
Ri MUUUITO, e acreditem, gargalhei MUUUITO. Que doido! Há quanto tempo não ria assim... Vai ver foi a serotonina liberada...
Morri de saudades do João... Acho que até entraria no Mc Donald’s pela primeira vez, só para realizar o desejo dele. (Te amo filho! Você faz muita falta)
E...
Fui pedida em casamento.
É mole? Aos 42 do segundo tempo...

domingo, 26 de abril de 2009

Começar é o mais difícil...

Começar não é fácil... Assim, pego emprestado da minha mana querida, um acróstico que ela ganhou, num domingo à tarde, lá pelos idos de 1980, em um passeio na "Feira Hippie", em Belo Horizonte. Numa outra oportunidade, conto a história toda...
"Começar é o mais difícil... Mesmo assim
Levando em conta o
Enorme barato e o grande prazer que sinto agora
Um só acróstico não bastaria pra
diZer tudo o que sinto
Assim sendo, dê um tempo, você não perderá por esperar..."
Bom, não sei ainda o que isso vai dar... mas "Confissões" já está no ar...