domingo, 4 de março de 2018

Sobre ser negro/a

Eu não nasci negra. Me tornei negra. Foi lá pelos 26 anos, quando entrei na universidade. É, entrei tardiamente... Lembro de quando a ficha caiu. Foi na disciplina "antropologia do negro brasileiro", no curso de Ciências Sociais. Depois as dúvidas que eu tinha foram se dissipando quando morei em Florianópolis e depois, fora do país. Eu, inclusive, acho que todo brasileiro deveria poder viver a experiência de morar fora do Brasil. É interessantíssimo para a construção da identidade racial. Lembro das inúmeras discussões que provoquei em casa quando levantava essa questão. Somos 10 irmãos e acredito que só 5, depois de sofrerem muitas, mas muitas situações de racismo, se reconhecem como negros. Me preocupo porque vejo sobrinhos que são lidos como negros pela sociedade, mas que não se reconhecem como tal, e que não têm a discussão racial em casa, nem a autoestima fortalecida. Sofrem racismo, mas não sabem como se defender. Quando o menino nasceu, ouvi muito que ele teria que andar sempre bem vestido para não ser confundido com trombadinha, ou que era bom ele ser menino, porque assim poderia manter o cabelo sempre bem curtinho. Filho de pai que usa dreadlocks, ele nunca teve problema em reconhecer como bela a estética negra. Cresceu se achando bonito e se encorajando para deixar o cabelo crescer. Confesso que o fato dele ouvir rap me ajuda muito na sua educação e na autoestima positiva. Foi na escola o primeiro lugar que ele sofreu racismo. Aliás, a escola é um dos piores lugares para se frequentar quando se é negro. Ele tinha cerca de 9 anos quando foi chamado de negro por um coleguinha menor do que ele. Mas levantou a cabeça e respondeu altivo, sou sim, com muito orgulho! Sempre o carreguei para eventos sobre cultura negra, shows, palestras, lançamentos de livros, umbanda, candomblé, etc. Dia desses, enquanto ele jantava, me contava da preocupação que tem com o irmãozinho [por parte de pai] que é negro, mas nasceu de cabelo louro. O menino que também nasceu com a pele clara e olhos gateados, está cansando de ser considerado branco para ser chamado de negro, mas que na hora de sofrer o racismo essa dúvida desaparece. Ele cresceu incomodadíssimo com a falta de representatividade negra. Lembro da vez que questionou a professora porque o negro só era abordado na escola na condição de escravizado. Ele queria saber do negro feliz e ela mandou ele pesquisar. Ele então, escreveu um texto lindo onde falava de Bob Marley, Michel Jordan e Barack Obama, mas a professora nunca leu. Hoje, ele tem inúmeras referências positivas, principalmente por conta da cultura hip hop. Eu agradeço todos os dia os rappers que ele ouve e que o ajudam a fortalecer sua autoestima. Por isso, o filme Pantera Negra está fazendo tanto sucesso pelo mundo à fora. Eu, que nem gosto de filmes de ação, estou louca para assistir, de novo. Precisamos cuidar das nossas crianças, e se você tiver oportunidade, vá assistir Pantera Negra e leve um pequeno junto.

Bom dia pra quem?


Eu não gosto de ir ao centro de BH, me deprime. É assustador o aumento de pessoas em situação de rua e miserabilidade, inclusive idosos. Dia desses, numa tarde fria de chuva, uma senhora aparentando uns 70 anos passou na nossa frente. Carregava um saco com papelão, estava molhada. Nos pés uma sandália de plástico e meias encharcadas. Troquei olhares com o menino. Mãe, ela não deveria estar aqui. Tinha que estar num lugar quentinho, sendo servida por alguém, tomando um prato de sopa e parafraseou Racionais: podia ser a minha vó, que loucura! Hoje, quando entramos no Banco do Brasil, duas senhoras negras na porta. Uma nos disse, na volta você me ajuda, minha filha? Eu, sentindo um bolo na garganta acenei afirmativamente num movimento com a cabeça. Você vai ajudar, né, mãe? Na saída o menino comprou um tridente com a que vendia balas. Eu, dei minha contribuição à outra. O menino, já sentindo a minha comoção, me abraçou apertado e foi cantarolando: uma negra e uma criança nos braços solitária na floresta de concreto e aço. Esperei ele entrar no ônibus, de onde foi para o dentista. Antes de subir ele brincou, você vai me abandonar? Depois me abraçou e disse: eu te amo, mãe. Ainda o vi cedendo lugar para um senhor e uma senhora entrarem antes dele. Depois que ele entrou, coloquei meus fones e segui para meu compromisso, com Mano Brown cantando em meus ouvidos: essa porra é um campo minado...
Bom dia, pra quem?

Girassóis

Quando eu fui morar em Baldim, em 2014, era só o tempo de escrever a tese. O tempo foi passando e fiquei por lá três anos e meio. E, embora algumas pessoas não acreditem, eu gostei de morar lá. Gostei muito. Enquanto vivia o estresse da escrita, me angustiava a cada final de tarde quando ouvia a ave-maria no alto-falante da igreja, na hora do angelus. Eu ficava ansiosa porque mais um dia chegava ao fim e a tese não estava pronta. Ia caminhar ouvindo as gravações das minhas conversas sobre a pesquisa que tinha por skype com a minha amiga, Gabina. Mas o fato é que, a tese ficou pronta e foi defendida e não havia mais motivos para ficar por lá, mas fui ficando, arrumando desculpas. Até que o menino deu um basta. Sim, ele agora queria o que eu quis quando tinha a idade dele: a metrópole e tudo que ela oferece. Mudamos há cerca de um mês e eu ainda carrego uma certa tristeza por ter deixado a minha patriazinha. Fico aqui, ressignificando as coisas e buscando alegriazinhas como as que eu tinha por lá. Uma samambaia que dada como morta voltou a brotar, as duas rolinhas chocando seus ovinhos, os pardais que vêm roubar a ração da Fridinha. Enfim... Meu irmão que ficou por lá, me mantém informada das novidades. Ele colheu o milho criolo que nem pude desfrutar e que ficou todo pra semente. Ontem, me mandou foto dos bem-me-queres que semeei pelo quintal. E hoje, mandou foto do girassol, que enfim, se abriu para o mundo. Lembrei do Caio Fernando de Abreu:

"Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecem flores simples, fáceis, até um pouco brutas. Pois não são. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de meses, um dia pá! Lá está o botãozinho todo catita, parece que já vai abrir."

Saudades de África

Ainda impactada com o livro "O caminho de casa" da jovem ganense Yaa Gyasi. Passei o final de semana pensando na minha ascendência. Por parte de mãe, consigo ir até a minha avó. Mamãe não conheceu o pai e temos esse vácuo na nossa árvore genealógica. Por parte de pai, conseguimos chegar até a nossa tataravó, Filomena, "negra cativa", como gosta de dizer meu tio João. Uma das preocupações de Gyasi ao escrever o livro foi justamente criar uma genealogia para duas irmãs separadas em África. A jovem escritora refaz a história de sete gerações mostrando o impacto da escravidão na vida de 14 personagens que herdam dramas e ideais de seus ancestrais. A leitura me impactou, mas também me trouxe uma espécie de conforto. No fundo, é como se a árvore genealógica de Esi e Effia fosse também a minha. É como se todos os negros do mundo sentissem uma espécie de saudade de África, não como um lugar geográfico, mas como uma paisagem metafísica, um lugar existencial.

O caminho de casa

O livro "O caminho de casa", da ganense Yaa Gyasi, conta a história de sete gerações desde a infância das irmãs Esi e Effi, na África, até os dias atuais. Comecei o sábado lendo o capítulo sobre Willie, a quinta geração desde Esi. Willie mora no Harlem, em NY. O livro está mexendo muito comigo e tenho que ir aos poucos. É impressionante como sete gerações depois, os sujeitos ainda sofrem as conseqüências da escravidão, não só as econômicas e sociais, como as subjetivas, também. A autora, Yaa Gyasi, fala sobre isso, numa entrevista no jornal O Globo, do ano passado. Segundo ela, certos traumas são hereditários e herdamos marcas visíveis e invisíveis. Depois da leitura do capítulo fui replantar o coração magoado que trouxe de Baldim, uma mudinha pequenininha cujo espaço ficou apertado no vasinho. Daí, lembrei que há cerca de 40 anos, mamãe fazia o caminho BH/Baldim, vindo morar numa rua paralela à que hoje eu moro. Dia desses, passei lá e vi que a casa continua do mesmo jeito e que no endereço, ao invés de dois, agora são quatro domicílios. Mamãe morava no barracão de fundo que dava para um barranco enorme que, rapidinho ela encheu de plantas, flores e cebolinha. É que ela tinha fome de beleza, gostava de tudo muito organizado e sempre muito limpo. Enquanto eu mexia na terra replantando meus vasinhos, fiquei lembrando dessa história e relacionando com o livro de Gyasi, pensando nessas marcas visíveis e invisíveis que carregamos dos nossos antepassados. Daí, fui conversar com o menino e falei de como ele, a sexta geração desde a minha tataravó Filomena, uma negra escravizada, muitas coisas ainda permanecem as mesmas. 40 anos depois, estou de volta ao bairro Aparecida, repetindo o mesmo percurso que fez mamãe, morando de aluguel, e o menino que ainda não completou 16 anos já sonha com um emprego para comprar os trenzinhos dele. Tá certo que diferentemente de mamãe que não sabia ler nem escrever as palavras (mas que lia o mundo como ninguém), eu volto, hoje, como doutora, com praticamente a mesma idade dela quando veio para a metrópole. Mas, a pobreza é um marca difícil de romper. Eu, emocionada com a conversa, engoli o choro quando o menino disse: mãe, mas essa história ainda não terminou. Você tem muito o que viver e eu também. Seguiremos resistindo!

Nada de novo embaixo do sol

Hoje, assisti a um vídeo que apareceu na minha time line, onde três youtubers negros (AD Júnior, Spartacus Santiago e Edu Carvalho) dão dicas a negros de como se portarem numa abordagem indevida em tempos de intervenção militar (https://www.facebook.com/spartakusvlog/videos/521764858223613/). E uma das dicas é não saírem sem documentos, priorizando a carteira de identidade ou de trabalho. Daí que, estou lendo "O caminho de casa" da ganense Yaa Gyasi que conta a história de duas meia-irmãs separadas pela escravidão. Estou no capítulo que fala de um dos descendentes de uma das irmãs e o contexto é a cidade de Baltmore nos EUA, em 1850, e acaba de ser aprovado no sul daquele país, a lei do escravo fugitivo, onde qualquer escravo que tenha fugido do sul e viva livre no norte pode ser recapturado. No livro, o personagem Jo e sua esposa Anna, todos os dias, antes de saírem para o trabalho treinam os sete filhos e filhas a mostrarem os documentos, caso sejam abordados:

"De manhã, antes de Jo e Anna saírem para o trabalho, Jo fazia os filhos ensaiarem como mostrar os documentos. Ele representava o oficial federal, com as mãos nos quadris, indo até cada um deles, até mesmo com a pequena Gracie, e dizendo, com a voz mais severa que conseguia: “Aonde vocês tão indo?” E eles enfiavam a mão no bolso que Anna tinha costurado nos vestidos e nas calças e, sem discussão, sempre em silêncio, empurravam os documentos nas mãos de Jo. Quando ele começou a fazer isso, as crianças estouravam de rir, achando que era uma brincadeira. Elas não sabiam do medo que Jo tinha de pessoas uniformizadas; não sabiam como era ficar calado, quase sem respirar, debaixo do assoalho de uma casa de quacres, escutando o som do tacão da bota de um caçador de escravos acima de você. Jo tinha se esforçado tanto para que seus filhos não herdassem esse medo, mas agora desejava que eles pelo menos sentissem um pouquinho de medo."

Nada de novo sob o sol, são sempre os mesmos corpos matáveis.

Como escreve Conceição Evaristo em um de seus poemas:

"A terra está coberta de valas
e a qualquer descuido da vida
a morte é certa.
A bala não erra o alvo, no escuro
um corpo negro bambeia e dança.
A certidão de óbito, os antigos sabem,
veio lavrada desde os negreiros."

Janela

A janela agora é outra, não dá mais para a rocinha de milho, nem para o morro. Agora, a vista alcança uma casa abandonada que eu tento desvendar. Tem um alpendre na frente e uma pequena varanda atrás. Preso na parede, uma gaiola vazia com a portinhola aberta. Será que algum dia algum pássaro esteve preso ali? Tem um pezinho de mamão que resiste ao abandono e uma moita de ora-pro-nobis que avança por todo lado. Será que se eu observar mais eu decifro quem morou ali?

Pantera Negra

É representatividade que fala, né?

Não era pra eu ir assistir ao filme Pantera Negra com o menino. Ele iria com a namorada, mas um compromisso não permitiu que ela fosse na estréia. Como os ingressos já estavam comprados, lá fui eu. Com dor de cabeça e mal estar decorrentes da influência da lua nova na minha tpm. Fui insegura, com medo de passar mal no cinema. Nesses dias é sempre melhor ficar em casa, quietinha, com a cama ao alcance do corpo. O menino ansioso. Esperava por esse dia desde o ano passado. Eu, que morro de preguiça de filme americano, me animei quando soube que o elenco era majoritariamente negro e um super-herói africano me entusiasmou. Sem falar que o diretor e roteirista é Ryan Coogler, um jovem negro de 31 anos. E como disse o menino, me corrigindo. Não, mãe, ele não é só negro, ele é um negro diretor, roteirista e ativista. E ser ativista faz diferença. E o filme me surpreendeu. O menino me cutucou várias vezes, me apontando o braço arrepiado, como se fosse possível ver no escuro do cinema e com óculos 3D. Uma África tecnológica que não abre mão da tradição. E que beleza os corpos negros, as mulheres guerreiras, o figurino maravilhoso, até o sotaque africano nas falas em inglês. Cada dia me convenço mais que existe uma revolução em movimento e que passa pelo povo preto, no mundo inteiro. Ainda estou digerindo o filme, mas um certeza eu tive: quero me embrenhar pelo mundo dos HQ's, especialmente do Pantera Negra. Vão assistir ao filme, e por favor, levem as crianças!

Metrópole


Preciso redescobrir, reconciliar, fazer as pazes com BH, como um dia eu fiz com Baldim. A cidade grande ainda me assusta. O menino se apronta para o rolê. Eu faço o mesmo check list de sempre: chaves, carteira, dinheiro, documento... Já sei mãe, mãos pra cima, em lugar visível. Ele levanta a blusa, dá meia volta me mostra como é que faz e canta a letra dos Racionais: "Pode vir Gambé, Paga Pau, tô na minha na moral na maior/Sem Goró, Sem Pacau, Sem Pó. Eu tô ligeiro, eu tenho a minha regra/Não sou pedreiro, não fumo pedra. Um rolê com os aliados já me faz feliz"...
Ri, pega o skate e sai...
Eu, agora, só relaxo quando ele voltar pra casa.

Medo

"escrevo com muito medo/de que os homens saibam/que a mesa não está posta/e eu não limpei/o leite derramado". Eu, simplesmente, amo esse poema da Mariana Botelho. Na verdade, eu não estava escrevendo, mas passei a manhã lendo "O voo da Guará Vermelha", da Maria Valéria Rezende. A primeira vez que ouvi falar de Maria Valéria foi através do projeto "Quebras", do Marcelino Freire, há uns dois anos. Assisti a uma entrevista dela, no jardim de sua casa, em João Pessoa, feito pelo Marcelino. Ali, me encantei com a trajetória dessa mulher incrível que "fumou maconha, lutou contra a ditadura e foi amiga de Fidel (http://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2018/02/maria-valeria-rezende-freira-escritora-e-feminista.html). Depois, a vi na Flip, em julho do ano passado. Mas só esta semana peguei um livro dela pra ler. Não li mais rápido porque era pdf e não dava para carregar pra todo lado.Terminei agora à pouco, encantada com a história de Rosálio, um homem cujo objetivo de vida era aprender a ler. Maria Valéria, educadora popular, está inteira no livro e seus personagens são, na minha opinião, os educandos jovens e adultos que ela encontrou pelo caminho, seja no Brasil, na Argélia, no México ou em Timor Leste. Enquanto lia, lembrava o tempo todo de Paulo Freire, sua "Pedagogia do Oprimido" e do direito à palavra. Enquanto não terminei de ler o livro não consegui fazer o almoço. E, agora, escrevo com medo que as pessoas saibam que a casa está desarrumada e o tanque cheio de roupas sujas.

Escola pra quem?

Pegamos um Uber para chegar na hora. O sorteio estava marcado para as 10 da manhã e era necessário a presença do responsável pelo aluno. Quem não estivesse presente perderia a vaga. Chegamos às 9h50 e a sala já estava cheia. Muitos mães, alguns pais, filhos e filhas tensos dentro e fora da sala. 15 vagas para o primeiro ano do ensino médio. O menino vai para o segundo. Cada nome sorteado era cantado várias vezes por uma funcionária, ajudada por pais e mães numa espécie de jogral, até todos terem certeza que o sorteado não estava presente. Mães e pais cujos nomes dos filhos eram sorteados saíam com um sorriso no rosto. Algumas adolescentes choraram a vaga conseguida. Quem não conseguia, ia embora triste e frustrado. Na hora do sorteio do segundo ano, a diretora anunciou que eram 20 vagas para mais de 200 nomes. O número do menino era o 106 na lista de espera. O menino preocupado com a minha pressão arterial me abraçava tentando me acalmar. Não vai chorar agora, mãe. A diretora explicou que com a reforma do ensino médio, muitas vagas foram perdidas por causa do ensino integral. Além disso, a demanda aumentou com uma quantidade considerável de alunos egressos das escolas particulares. A cada explicação, nossa tensão aumentava. O menino gostou da escola desde o primeiro dia que estivemos lá. Na quadra, os olhinhos dele brilharam quando ele viu o grafitte: "Rap é compromisso" e um Luther King com a frase clássica "I have a dream". Mãe, eu não quero criar expectativas porque nunca ganhei nada em sorteio, mas olha, eu gostaria muito de estudar aqui. Uma escola que tem um grafitte do Sabotagem, não tem como não ser legal. Depois do terceiro número sorteado, a diretora resolver contar os presentes. Éramos 24. Ela então decidiu: Quer saber? 4 vagas a mais, 4 vagas a menos... Qualquer coisa, eu faço um puxadinho. Façam uma fila aqui para assinar a ata da reunião e pegar a lista de documentos necessários para a matrícula.
Na mesma hora, chegou um áudio da minha amiga Eda cantando:
"Abracei o mar na lua cheia, abracei
Abracei o mar
Abracei o mar na na lua cheia, abracei
Abracei o mar
Escolhi melhor os pensamentos, pensei
Abracei o mar
É festa no céu é lua cheia, sonhei
Abracei o mar"...
Eu abracei o menino e agradeci.
Odoyá!

Saudades

Tô com saudades do quintal da casa velha, da janela azul, do morro. Tô com saudades de encontrar com a Celsa na praça ou na porta de sua casa e receber seu abraço. Saudades de ouvir dona Geralda reclamando do joelho e me gritando da rua para ir até sua casa buscar um prato da comida de domingo: arroz, feijão, frango ensopado e macarronese. Saudades do meu irmão e das conversas na mesa da cozinha. Nem deu tempo de colher o milho criolo, ficou tudo pra semente. Saudades até do Scooby me acordando cedinho para abrir o portão pra ele dar o seu rolê.

Melancolia

Eu me mudei para BH no começo da década de 1980, aos 14 anos de idade. Sem formação e sem experiência trabalhei muito em subempregos. Na época, final da ditadura militar, o presidente da República era o general João Batista de Figueiredo. Depois, sobrevivi a Sarney, Collor e Fernando Henrique Cardoso. O sentimento daquela época era resignação, uma submissão sem revolta, um conformismo. Lembro do país vivendo a fome, a inflação e o desemprego. Depois, vieram os governos Lula e Dilma e senti na pele a transformação. Voltei a estudar, fiz especialização, mestrado e até doutorado com estágio sanduíche fora do país. Criei o menino com dinheiro de bolsa. Muitos amigos passaram em concursos nas universidades e nos institutos federais criados pelo presidente Lula. Vi muita gente sair da miserabilidade, vi contemporâneas minhas melhorarem de vida com o bolsa família. Hoje, aquele sentimento de resignação me ronda. Tô como a mulher do conto da Adélia, feito galinha na chuva, com "aquele passo bobo, aquele pescoço esticado pra frente, olha aqui, olha acolá, encharcada na friagem e na lama, sem resolver nada". Tô "com medo de apanhar tristeza, encardir de melancolia".

Metrópole

Os últimos três anos e meio morando em Baldim foram muito importantes. Cidade pequena, pais e mães meio que tomavam conta uns dos filhos dos outros, mais até do que os meninos gostariam. Alguém sempre dava notícia de onde e com quem estavam e eles ficavam meio que protegidos. O anonimato da cidade grande, que tanto o menino almejava, dá um certo desamparo. A metrópole é complexa: tem pista de skate, batalha de rima, sarau de poesia, cinema, shows de rap, mas tem uma desigualdade que agride. Não que em Baldim não existisse pobreza, mas parece que lá, os pobres ostentavam uma certa dignidade. Aqui, não. A injustiça social é jogada, diariamente, na nossa cara. O empobrecimento pelo qual passa a população tem sido gritante no último ano. Crianças voltaram pra rua, coisa que eu não via há muito tempo. Toda vez que o menino sai sozinho, são as mesmas recomendações: pegou documento? E se a polícia abordar, como faz? Sim, senhor! Não, senhor! Nada de capuz na cabeça. E o coração só sossega quando ele volta são e salvo pra casa.

Fruição


É sempre um aprendizado a convivência com o menino. Ele queria muito 'um quarto só pra si'. Agora, tem. Queria um armário para arrumar suas coisas que ficaram por tanto tempo em caixas de papelão. Agora, tem. Tá, é um armário velho, comprado em topa-tudo, mas até que ganhou um certo charme com os grapixos que ele fez. A cama ganhada não aguentou o peso dele e quebrou no primeiro dia. Tudo bem. Ele ajeitou o colchão no chão. Ele queria um som e trouxe o velho "3 em 1" Gradiente que o pai cedeu, e ainda catou um monte de vinil bonzão. A madrinha deu uma rede que ajudou a compor o quarto. Ficou charmoso, tem identidade. Dia desses, enquanto estreávamos o velho e bom chiado do vinil, ouvindo "Whish you were here", um disco de 1975 do Pink Floyd e que fez a minha cabeça na adolescência, ele me disse: "mãe, como eu gostaria de ouvir isso, de novo, pela primeira vez".

Tenho tudo que preciso

Estou no Aparecida! Cheguei segunda-feira. 
Passei a semana a desembrulhar as coisas.
Estamos sós, eu e Fridinha. Já varri o terreiro, lavei roupas e agora, faço a minha comida. E sinto prazer nisso. Reparo na incidência do sol sobre a casa, nos sons que chegam da casa do vizinho. Fridinha já responde aos cachorros do outro lado do muro. Enquanto estendo as roupas no varal improvisado, sinto o calor do sol sobre a minha pele. É bom estar só. Gosto do silêncio. Sinto que o deus das casas me protege.Tenho tudo que preciso!!!

Mãe solo

Difícil de ser mãe solo não é só a grana. Às vezes a gente quer dividir a opinião sobre a escolha de uma escola. Sei que não é fácil para o menino ser meu filho. Cresceu em meio às problematizações. Consciência e sensibilidade tem desde pequenininho. Ontem, almoçando no centro da cidade, ele perdeu a fome vendo pessoas em situação de rua. Eu briguei com ele: "Agradeça que você tem e coma essa comida!" Sempre conversamos muito, conversas, às vezes, muito difíceis. É preciso vigilância porque muitas vezes ele assume um lugar que não é dele. Dia desses, em um momento de estresse no meio de uma discussão acalorada, nem lembro mais o que falei sobre o lugar dele, e ele me respondeu bravo:
- Meu lugar é de filho. Um adolescente de 15 anos que ainda não trabalha e que não tem dinheiro.
Eu fiquei muda, chocada com a resposta que me trazia de volta à realidade. Apesar de toda parceria, ele é só um menino e tem direito a viver a sua adolescência. Não posso esquecer disso.
Desculpa meus excessos, João.

Mudança

Há cerca de uma semana estamos, efetivamente, por conta da mudança. Mas o projeto de mudarmos foi sendo gestado já há algum tempo. Na semana passada, faxinamos a casa. O menino trabalhou duro, sem reclamar. Pelo contrário, estava e está feliz demais com a casa nova. Casa que os padrinhos [que ele escolheu] construíram e moraram por tanto tempo. Estamos de volta ao bairro onde ele nasceu. Isto é, nascer mesmo, ele nasceu na maternidade Santa Fé, mas morávamos aqui, no bairro Aparecida. O bairro que mamãe veio morar quando se separou de papai, em 1978 ou 79, não lembro ao certo. E, hoje, fomos acolhidos pela mesma família que nos acolheu naquela época: os Noronha. Mamãe, uma jovem senhora de 49 anos, analfabeta, insegura com a metrópole que exigia o domínio de códigos que ela não tinha, foi auxiliada por Dona Detinha que a ajudou, entre outras coisas, a procurar escola para os filhos pequenos. No domingo, começamos a fazer a mudança. Buscamos uma doação aqui, outra acolá, e enchemos a pickupzinha do Zezé, que veio pesada, me deixando tensa nos 96km de Baldim a BH. Um barulho estranho na roda direita dianteira e eu assustada. "O que é isso, Zé?" "É sinal de que alguma coisa está estragando", ele falou com aquele sotaque de personagem saído de algum conto de Guimarães Rosa. "Pelo amor de deus! Não podemos ficar na estrada, não!" Não ficamos. A pickupzinha chegou inteira e paramos só uma ou duas vezes para Zezé proteger o vaso de capim cidreira que ele mesmo plantou para mim para os chás nos dias de tpm. Meu irmão trabalhou pesado. Ajudou a montar, carregar e descarregar. Depois me ligou dizendo: "É muito ruim saber que vocês não vão chegar". É, sim, Zé! Mas fica a lembrança de tudo que vivemos juntos nesses mais de três anos na casa de janela azul. Voltar ao bairro Aparecida, onde morei por tantos anos, também mexe muito comigo. Estou novamente cercada de amigos generosos. E já, já, será possível ouvir os tambores de congado pelas ruas do bairro. Deixá só abrir o reino.

Casa nova


Agora, a janela não é mais azul nem de madeira, mas dormiu aberta. Numa noite sem lua, quem velou meu sono foi a estrela D'alva. O silêncio é bom, quebrado apenas pelo som de passarinhos. Sim, há passarinhos por aqui, também. Fridinha dorme em sua caminha tão profundamente, que me certifiquei se ela respirava. Ainda está em processo de adaptação, meio insegura. Estranhou a viagem, mas se comportou como uma lady. Deve estar sentindo falta do quintal, da grama, do Scooby, dos sons e cheiros que estava acostumada. O menino está em lua de mel com o 'quarto só pra si' e o armário que agora é só dele. É um armário pequeno, comprado em topa-tudo, mas agora ele tem uma gaveta para meias e outra para cuecas, como desejou por tanto tempo e, pacientemente, esperou. Ainda faltam o suporte para o violão e uma caixinha para a guitarra. E o pôster do Tupac que ele já cobrou. Ah, e já temos geladeira, graças à generosidade da Fatima Maria, que eu faço questão de publicizar.

A arte de perder


Scooby dorme aos meus pés embaixo da mesa. Daqui, ouço o padre celebrando a missa de domingo. Os periquitos fazem algazarra no pé de manga. Sentada na mesa da cozinha, olho para os pés de milho criolo que começam a endurecer. O dia está nublado. Na sala, nossas malas e caixas de livros. Essa mudança é estranha. Sei que não vou sumir de Baldim, mas é certo que não virei com a mesma frequência. O coração começa a apertar e eu lembro de Elisabeth Bishop e seu poema "A arte de perder". A poeta nos ensina que perder não é nenhum mistério. Precisamos treinar diariamente o desapego. Perder um pouquinho a cada dia. Comece lembrando que perdemos as horas. Perca as chaves de casa. Depois exercite com coisas maiores: lugares, nomes, viagens. A gente também perde pessoas, e não é nada sério. Vamos sentir saudades, mas não chega a ser mistério.
Exercitar a perda alarga a alma e abre espaço para novos afetos.
Bom domingo

Mais um dia de reis

6 de janeiro de 2018. Mais um dia de Reis. Saímos de Baldim por volta das 17h. Escolhemos o caminho da Peroba. Zezé, precavido, separou um saco para os pequis que seriam recolhidos pelo caminho. Levamos muito mais tempo que o previsto, porque a cada pé de pequi, ele parava para recolher. A primeira surpresa do caminho foi uma raposa. Que bicho lindo! Foi a primeira vez que vi uma. Ela é pequenina, imaginei muito maior. Tentei fotografar, mas esperta, ela se embrenhou pelo cerrado. Depois, com o chove-não-chove, fomos brindados com um arco-íris. Lamentamos a ausência da Luia e do Roberto. É que a beleza sozinha é triste, ela pesa. E queríamos dividir com mais gente. Há anos, Zezé vai me apresentando os lugares e repetindo as histórias: aqui, eu trazia marmita para o papai; ali, ele plantou um quiabeiro; ali é a Tiririca onde Enir nasceu; esse corguinho aqui, nunca secou; ali é a Lapa, onde morava Dindinha Ana; aqui, passamos a noite, eu e Neném, depois de perdermos o caminhão de miçangas para Baldim, tivemos que ir à pé, no dia seguinte; ali, foi onde comi picão, época que passamos muita fome. Ele se emociona, os olhos enchem de lágrimas. Todo ano é a mesma coisa. Eu vou cobiçando e fotografando as casinhas. Olhe, Zé, uma dessas me atende, adoro janelas de madeira. Se eu morrer sem ter uma casa, vou morrer muito frustrada. Poderíamos comprar aquela ali. 40 mil. Vamos juntar dinheiro? A gente compra em sociedade. E sonhamos juntos. Da estrada enlameada ele vê o primo Dico na lida com as abóboras. Eu paro para fotografar a plantação de couve-flor que está uma beleza. Nos entretemos com a conversa. As chuvas fizeram perder muitas abóboras, que embora próprias para o consumo, não são compradas no mercado por causa de pequenos defeitos. Eu sofro com o desperdício. Não tem como doar para escolas, asilo? Não tenho como levá-las daqui. O primo convida para um café. Vamos até sua casa. Recém-separado está choroso. Eu e Zezé, experientes, ambos com dois descasamentos nas costas, damos um curso intensivo para ele. Olha, a gente não morre disso não, viu? Na maioria das vezes saímos melhor, mais fortalecidos. Separação é um processo longo de convencimento. Você precisa viver o seu luto. Tenha paciência, vai passar. A conversa-divã se prolonga. O café está bom. Um requeijão, desses de cortar em pedaços, sai da geladeira. Demoramos mais do que o previsto. Já é noite quando saímos de lá. Cuidado com a carência. Não vá se envolver com alguém nesse momento que você está fragilizado. Quando se está afogando, jacaré vira toco, viu? Já abraçamos cada crocodilo né, Zé? Rimos os três. O primo parece mais animado. Não sumam, não. Voltem depois. Qualquer hora eu apareço em Baldim. Quando finalmente chegamos no arraial, os foliões já estão no backstage da festa vestindo as fardas e afinando os instrumentos. Um dos primeiros a encontrarmos é Tio João, um dos fundadores da folia. 82 anos de lucidez, causos, piadas e uma risada parecidíssima com a de papai. Perdeu a bengala no caminho. Se apoia num pau de lenha que achou por aí. Ele ri. Isso a família de papai tem de sobra: bom humor. Vamos atrás de tia Mariinha, 95 anos. É a referência de todos da família. Queremos envelhecer como ela, vergada de motivos. Pergunta por todo mundo: e a Cleuza? Ainda está morando naquele lugar? E a Tina, o Nilson, a Luia? Enir, cadê? Seu menino não veio, por quê?Sabe a idade de todos. Lembra de datas. Falou emocionada no aniversário de morte do papai, 30 anos em 15 de novembro. Visitei ele uma semana antes. Falei de Deus pra ele. Ele ouviu quietinho. Tenho certeza que Deus o recebeu em glória. Morreu jovem, 62 anos. Já estou no lucro com 65, Zezé comenta. Falamos da doença de Chagas que o matou. Doença de pobre. Claro, rico mora em casa de pau-a-pique? Rico sempre morou em casa de alvenaria. Lembro de Carolina Maria de Jesus. Zezinho e Dulce, às vezes, Durça, é uma espécie de senha. Todo mundo conhece. Você é filha do Zezinho e da Dulce? Divera? Ô, diá! E viramos amigos de infância. Tia Mariinha conta, ajudei minha mãe a criar e enterrar meus irmãos e sigo firme, em pé. Procuro um lugarzinho dentro da capela para sentar com ela e vermos a adoração do presépio. Apesar de evangélica, ela respeita e se comove com a devoção do irmão. Depois do sagrado, vamos todos para o salão para a hora mais esperada, o lundu. O povo se diverte, as crianças participam. Terminada a dança e cantoria uma fila se forma. É hora do banquete coletivo. Feijão tropeiro, arroz, macarrão, frango ensopado. Sem área vip, Tio João entra na fila para dar o exemplo. Mas não precisa, tio; o Senhora é da diretoria, brinco. Ele faz questão. Antes, busca um prato de comida para a esposa. Alguém traz para tia Mariinha que está sempre cercada de gente de todas as idades, todos impressionados com sua vitalidade. A fila também é um acontecimento. Alguém passa oferecendo uma pinguinha para abrir o apetite. Conhecidos se encontram. Você é filho de quem? Ah, conheço o seu avô. Histórias são contadas. Ele perdeu um filho. Nossa, que tristeza! Avisa fulana para separar os doces que amanhã eu passo lá. E estou com muita gente, viu? 4 carros e uma van. Depois de comermos, saímos à francesa. Já são mais de 11 horas da noite.
Até para o ano, se deus quiser.

Reza é o que salva da loucura



  • Enquanto não rezo, meu dia não desenrola. Minha reza é a leitura e a escrita. Preciso ler um capítulo, um conto, uma crônica, um poema, algumas páginas. Depois, sento e escrevo, nem que seja um ou dois parágrafos. Estou lendo três livros ao mesmo tempo, mas nenhum me pegou de jeito. Fui ler Caio Fernando Abreu, que confesso, só descobri ano passado. E é muito bom! Li o conto "Terça-feira gorda" que me fez lembrar o clip "Flutua" do Johnny Hooker e da Liniker, com participação mais do que especial do Jesuíta Barbosa (https://www.youtube.com/watch?v=mYQd7HsvVtI). Assisti, ontem, com o menino. "Mãe, isso é tão bonito! Como alguém pode ver outra coisa além de beleza em duas pessoas se amando?" Depois da leitura fui ao quintal ver o milho criolo. Colhi duas espigas para usar no almoço. Ainda não estão completamente maduras, mas o medo que elas endureçam é maior, por isso fico monitorando. Tatiana e Eliel foram embora, ontem, no final do dia. A casa ficou num silêncio esquisito. Ainda estou refletindo sobre nossas conversas-divãs na mesa da cozinha. Tenho tanto orgulho da Tati. É minha sobrinha, filha de uma irmã muito querida, a Glória. Lembro da Tati, pequeninha. Me assusta vê-la agora, uma mulher feita, mãe, graduada em dois cursos, bibliotecária premiada. "Adoro o que faço, tia", me disse. Reli o conto do Caio: "Entreaberta, a boca dele veio se aproximando da minha. Parecia um figo maduro quando a gente faz com a ponta da faca uma cruz na extremidade mais redonda e rasga devagar a polpa, revelando o interior rosado cheio de grãos." Fui até a geladeira. Os imãs de bandas de rock do menino, todos, atrapalhados. Marca do pequeno Eliel. Eles sempre ficam assim quando tem criança na casa. Não mexi, deixei do jeito que estavam em homenagem ao sobrinho-neto. Peguei um figo no pote de doce. Fui certificar se Caio falava a verdade: "Você sabia, eu falei, que o figo não é uma fruta mas uma flor que abre para dentro. O quê, ele gritou. O figo, repeti, o figo é uma flor." Parti o figo. Realmente, é uma flor que abre pra dentro. Comi em contrição. Agradeci ao Caio e fui lavar o banheiro.

Visita


Sou um fracasso para protocolos, rituais. Sou péssima para grandes ocasiões, felicidade de hora marcada, mas me derreto com as alegrias das horinhas de descuido. Anteontem, meu amigo Roberto chegou de surpresa. A caminho de Sete Lagoas, atalhou por aqui e apeou para um café. Tirou da mochila um corte de doce de leite e outro de goiabada que trouxe de Itabirito. Sentou na mesa da cozinha e iniciamos a prosa do mesmo ponto onde paramos da última vez. A bateria da telepatia estava carregada, porque no dia anterior, meu irmão tinha perguntado por ele. É que Roberto já nos visitou outras vezes. Já até foi no remate da Folia em Santo Antônio do Baú com a gente. Passei o café. Tomamos nas duas únicas xícaras com asas que temos nessa casa. Meu deus! Quando recebo visitas é que vejo as mil coisas que precisamos. Apesar que, a amizade do Roberto prescinde dessas coisas. Ele não demorou. Saiu apressado para cumprir os rituais de final de ano com a família. Eu fiquei com a sensação que não conversamos tudo, que faltou a cerveja na praça, a caminhada pelo cerrado. Mas o pouco tempo que ficou foi intenso. Rimos, nos indignamos e sonhamos coisas para o novo ano. No fundo, essa ilusão do calendário até que é boa, pois nos dá a impressão que podemos sempre recomeçar. Recomecemos, então!

Esperar biblicamente pelo tempo das coisas

A ansiedade foi tanta que colhi uma espiga de milho antes do tempo. O cabelo da boneca já encrespando e escurecendo, achei que já era chegada a hora da colheita. Que nada! A expectativa se transformou em frustração. Quando abri a palha, me deparei com grãos que ainda não estavam prontos. Justo eu, que vivo parafraseando Adélia e repetindo como um mantra que é preciso esperar biblicamente pelo tempo das coisas. Por dentro da espiga, cada fio de cabelo se ligava a um grão que começava a ganhar uma cor vermelho escuro. Um cabelo que nasceu louro e liso e que foi escurecendo e encrespando com o tempo. Aproveitei a consequência do afobo e brinquei com a espiga, lembrando da infância e de quando o milho verde eram nossas bonecas. De qualquer forma vou cozinhar esses grãos ainda imaturos e usá-los no almoço de hoje. Hei de aprender a esperar biblicamente pelo tempo das coisas.
Valei-me, Adélia!

Ray Davies

Que manhã maravilhosa! Não há uma nuvenzinha no céu. Comecei o dia ouvindo o trompete de Ray Davies, em "Theme from kiss of blood (https://www.youtube.com/watch?v=nod3Gx3c3Kw). Foi o menino quem me apresentou. A música é o sample do rap "Vida loka II" do Racionais que o menino com seu espírito de pesquisador garimpou. Decidi que vou fazer uma playlist só com músicas fodas de samples dos Racionais. O milho criolo cresceu tanto! As espigas estão gigantes. Levei sementes dele para o Festival Quilombola em São Julião e distribui para representantes das três comunidades presentes e para quem mais quis. O morro está verdinho com o mato no rebroto por causa das chuvas. Fridinha e Scooby estão enrodilhados aos meus pés. O cheiro deles denuncia que o banho não pode passar de hoje, mas quando Scooby lambe minha mão e Fridinha vem atrás de mim quando eu me levanto dessa cadeira, deixa de ser importante. O afeto dos bichos é uma coisa que me comove. Levei muito tempo para me converter. Os periquitos estão no pé de manga no quintal da vizinha numa algazarra só. Os pendões do milho estão cheios de abelhas fazendo o trabalho de polinizar as espigas. Vez ou outra, os beija-flores vêm tomar água no bebedouro. Sim, a casa é velha. Tem uma porta sendo destruída por cupim, atrás do barracão tem um monte de tralha e um opala velho embaixo do pé de abacate. Mas essa janela, esses pés de milho, o bebedouro e o morro são minha canoinha. É onde entro e não quero mais sair. É minha terceira margem. E sigo rio abaixo, rio a fora, rio a dentro, porque a terceira margem não se alcança, mas é ela que nos move a remar. Como diz o poeta, "dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes".
Eu consigo me fazer entender?
Vocês me compreendem?
Bom sábado pr'ocês!
Ah, escutem Ray Davies!

São Julião

"Ai, meu deus!" 
Essa foi uma das frases mais ouvidas nos poucos mais de 400 km do trajeto BH/Teófilo Otoni, a caminho do Festival Quilombola do Mucuri, em São Julião. É que nosso motorista, o simpaticíssimo Beto de Castro, tem realmente o pé pesado, embora, diretamente proporcional à sua segurança ao volante. Quem dizia a frase, a cada ultrapassagem na BR 381, sob uma chuva que durou todo o trajeto, era a menina Ricelli, uma arquiteta a caminho do festival para uma imersão junto à comunidade visando a construção coletiva da Casa do Batuque. No caminho, quem se juntou ao grupo foi o engenheiro Adriano, que foi nos dando aulas sobre os vários tipos de bambus e seus usos na construção. O grupo ainda contou com o mestre brincante, Roque Antônio, que se revelou um duende nos dias seguintes e a maravilhosa griô, Eda Costa. Apesar de cansativa, a viagem foi prazerosa na companhia de pessoas tão especiais. Ao final de cerca de 10 horas na estrada, já éramos todos amigos de infância. Chegamos ao final do dia em Teófilo Otoni e as notícias não eram boas. As fortes chuvas que caíam há dias deixaram os 80 km de estrada de chão até a comunidade de São Julião intransitáveis em alguns trechos e tivemos que esperar até o dia seguinte para seguir viagem. Na sexta-feira, logo após o café da manhã, Beto já nos aguardava para a aventura nas estradas enlameadas até o quilombo. As notícias davam que alguns veículos não conseguiram passar em determinados trechos, mas Beto "Pai Véio" conhece como ninguém aquele chão e estava decidido a cumprir o combinado entregando a "trupe" sã e salva em São Julião. O trajeto foi aumentado em alguns quilômetros com a orientação que fizéssemos um caminho diferente do convencional, mas que estava um pouco melhor. Mas antes, passamos no Sindicato Rural em Teófilo Otoni para um empréstimo de pratos e talheres para o festival. O carro foi abarrotado de malas e caixas, o que segundo "Pai Véio" era um fator a nosso favor, já que mais pesado, o veículo teria mais aderência na lama. Minha confiança foi abalada, quando no caminho cruzamos com um veículo oficial do governo do estado, que levava o secretário estadual de direitos humanos para o evento, parado no meio da lama. O secretário só seguiu viagem porque um funcionário do distrito de Topázio topou enfiar seu gol na lama num verdadeiro rali "Julião Topázio dakar". Eu tensa, com medo de ficarmos atolados no barro em plena zona rural, sem telefone nem internet, tinha minha insegurança abalada com a certeza do Beto que chegaríamos sãos e salvos na Comunidade. Tá certo que nos perdemos algumas vezes e que os moradores locais nos salvaram indicando o caminho. Para mim, a tensão só era quebrada com a beleza da paisagem da zona rural do Mucuri com suas belíssimas montanhas de pedras em meio à mata atlântica verdíssima com a chegada do tempo das águas. Chegamos em São Julião na hora do almoço e panelas enormes ferviam no fogo à nossa espera.

Inflorescência

O pendão é a inflorescência masculina e a espiga a feminina. A flor masculina joga as anteras pra fora, que se abrem para liberar o pólen que cai no cabelo da boneca do milho, penetra na espiga e percorre até o óvulo. Cada fio de cabelo da espiga corresponde a um grão fertilizado. Não é lindo? Vocês conseguem enxergar as abelhas ajudando no trabalho de polinização? Daqui a pouco os passarinhos também virão ajudar. O milho que já está quase, vai embonecar em breve e eu não estarei aqui para assistir. Onde que coloca esse aprendizado no currículo Lattes?

Naquela mesa

Das coisas que mais gosto quando estou em Baldim é quando o menino senta na mesa da cozinha para conversar comigo. É a repetição de um gesto que fiz, durante anos, com mamãe. Conversas difíceis que tínhamos porque ela sempre dizia o que tinha de dizer, sem enfeitar as palavras. Ontem, quando sentou aqui, o menino chorava. Chorava como nunca o vi chorar desde que adolesceu. Ele assistia "Escritores da Liberdade" e há poucos minutos do final, pausou o filme e veio conversar comigo.
- Você precisa assistir esse filme com seus alunos, mãe.
Ele resumiu a obra pra mim, com o cuidado de não dar spoiler. Mas, o mais doido foram as associações que ele fez com o filme. Primeiro, ele falou do trabalho lançado há pouco tempo, pelo rapper Delartovi, de Nova Lima: "A vida de Emmett Till" (https://www.youtube.com/watch?v=nT8T3pfp5YA). O disco é uma homenagem ao menino de 14 anos, assassinado no Mississipi, depois de assoviar para uma mulher branca. Depois, ele lembrou de um clip do James Brown, "It's A Man's Man's Man's World", feito em animação que retrata a segregação racial nos Estados Unidos (https://www.youtube.com/watch?v=H77fRz1rybs). Ele também lembrou do filme "Django" e falou de como há 15 anos, na escola, ele só ouve falar do negro na condição de escravizado. Mais uma vez eu senti gratidão à cultura negra, e em especial ao hip hop, por ensinar tanto ao menino. Ontem, choramos juntos nessa mesa. Ele me contou que dia desses, voltando do Mineirão onde foi andar de skate, na avenida Abraão Caram, uma moça que estava sentada no ponto de ônibus, guardou o celular na bolsa quando ele se aproximou. A conversa se prolongou por um bom tempo e ainda falamos de Carolina Maria de Jesus e dos livros que ele separou para ler nas férias. Tenho clareza, que muito da consciência racial e social que ele desenvolveu foi escutando rap. É óbvio que, desde pequenininho, eu o levo a eventos da cultura negra e ele cresceu com muitas referências negras positivas. Não é fácil educar um filho negro numa sociedade racista e eurocêntrica, por isso sou muito agradecida ao auxílio maravilhoso que recebo da música negra e que tem contribuído muito na construção de uma autoestima positiva. A cada dia me convenço mais que o hip hop é foda!

Portal para Nárnia


Com a chegada do tempo das águas, o morro tá verdinho, verdinho. O milho agradeceu a chuva e já alcançou metade da janela da cozinha. Já, já, pendoa. Os periquitos protestam porque ainda não tem manga madura. Ontem, durante a caminhada vi os meninos catando tanajura. Quis perguntar se era pra comer, mas fiquei sem jeito. Essa janela azul é o portal que me leva pra Nárnia. Dou uma volta pelo quintal fiscalizando os brotos novos e num segundo estou em Tatipirum do menino Raimundo e de Graciliano. Mais uns dias por aqui e era capaz d'eu encontrar a princesa Caralâmpia morando na floresta de cogumelos que nasceu no jardim.

A casa era por aqui

Sentada na mesa da cozinha fico admirando os pezinhos de milho criolo que eu e meu irmão plantamos. As sementes de quiabo que ganhei da Maria germinaram, mas somente três pés foram pra frente. O milho já passa da janela. Já, já vai pendoar e virá o período dos pardais ajudarem na polinização das espigas. Em seguida, virão as bonecas para enfeitar ainda mais a rocinha. Vejam bem, são pouco mais de duas dúzias de pés. Melhor explicar para não ser acusada de fazer propaganda enganosa. Eu, das filhas mais novas, nascida em Baldim, não vivi a vida dura que os mais velhos experimentaram na roça. Enquanto tomava o café, meu irmão comentava da época de fartura do tempo que a família morou no Guará. Papai foi meeiro de um fazendeiro e as terras que arrendou eram muito férteis. Era o paraíso, segundo ele. Uma chácara enorme com mangueiras, jabuticabeiras, jambos e até um pé de ingá na beira do córrego. Ali, não se viu fome. Daquela época, só restou a casa sede da fazenda e um bambuzal no lugar onde meus pais moraram. Meu irmão disse que durante muito tempo visitou o lugar e rememorou as lembranças. Agora não vai mais. "Pra quê? Não tem mais nada, lá." Ele suspira pesaroso. Lembrei de Manoel Bandeira. Enquanto ele comia seu pedaço de bolo, li o poema "Velha Chácara" pra ele:

"A casa era por aqui...
Onde? Procuro-a e não acho.
Ouço uma voz que esqueci:
É a voz deste mesmo riacho.

Ah quanto tempo passou!
(Foram mais de cinqüenta anos.)
Tantos que a morte levou!
(E a vida... nos desenganos...)

A usura fez tábua rasa
Da velha chácara triste:
Não existe mais a casa...

- Mas o menino ainda existe."

"É, divera! É isso mesmo". Ele se emociona.