domingo, 24 de maio de 2009

"Clara manhã de quinta à noite"

Ah, o menino...
Ele já havia comentado do livro:
- Mãe, hoje, a professora de literatura leu um livro muito legal, ele é todo ao contrário.
E por dias, ele ansioso, doido pra trazer o livro para casa, para a mãe ver, queria compartilhar com ela, ver sua reação. Pediu inclusive, à bibliotecária para reservá-lo.
Naquela noite, quando a mãe chegou em casa, ele tinha novidades. Mostrou feliz, o tal livro. Parecia a menina de Clarice Lispector no conto Felicidade Clandestina.
- Mãe, a maioria dos livros começa assim: Era uma vez uma princesa... Esse não,
“Clara manhã de quinta à noite”. O título já diz tudo! - dizia o menino entusiasmado.
- Olha só essa frase: "Acordei e sonhei que tinha morrido"! - Não é uma frase legal?
A mãe ouvia o entusiasmo do menino com o livro na mão.
Na hora de dormir a mãe leu o livro. Uma, duas vezes, de trás pra frente, inclusive. Aquele não era um livro qualquer, abria muitas possibilidades... E a mãe aprendeu mais uma coisa com o menino: escapar ao óbvio é fundamental!

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Receita

Adélia Prado ensina:

Se o amor lhe fere,
Ponha ele no pilão,
Junte cinza e grão de roxo,
Soque bastante, macere bem
Faça um cataplasma
E coloque sobre a ferida.
É tiro e queda!

domingo, 17 de maio de 2009

Cazuza

"O dia também morre e é lindo
Quando o sol dá a alma
Pra noite que vem"

quarta-feira, 13 de maio de 2009

"Criança não merece fome, criança não merece guerra"

Lá iam, o menino e a mãe, de mãos dadas pela calçada.
Ele, em “lua de mel” com o cofrinho que acabara de ganhar, dentro algumas moedas...
De repente, a mãe é abordada por um garoto, desses em “situação de risco social”, como é politicamente correto falar, hoje em dia. Já é um adolescente, aproxima- se e pede uma moeda. A mulher diz que não tem, o garoto se afasta. Ter o não como resposta já faz parte do seu cotidiano, nem se importa mais... Depois que o garoto se afasta, o filho pergunta:
- “Mãe, o que ele queria”.
- “Uma moeda” – ela responde.
- E por que você não deu? Insiste o garoto. “Você mentiu pra ele, você tem uma moeda”.
O menino se afasta da mãe, aproxima do garoto e pergunta?
- O que você quer? Uma moeda? Pode ficar com as minhas. E sem titubiar, abre o cofrinho e despeja todas as moedas nas mãos do garoto. Não são tantas assim, mas o garoto se surpreende com o gesto do menino...
De mãos dadas mãe e filho seguem seu caminho, ele cantarolando: “criança não merece fome, criança não merece guerra”. A mãe engole o choro e aperta a mão do filho que olha cheio de ternura pra ela.

sábado, 9 de maio de 2009

Cerrado

O Cerrado sempre foi o quintal de minha casa.
Lembro com saudades da infância com meus irmãos e irmãs e da aventura que era ir pro mato para catar gabiroba, mangaba e cagueiteira... Também o pequi, o articum, a goiabinha do mato...
Há alguns dias, reencontrei um texto de Guimarães Rosa, uma carta para seu tradutor italiano, onde ele explica para o "estrangeiro" o que é a VEREDA: " a vegetação é a do cerrado: arvorezinhas tortas, baixas, enfesadas (só persistem porque têm longuíssimas raízes verticais, pivotantes, que mergulham a incríveis profundidades)."
Me senti a própria: uma arvorezinha do cerrado, torta, baixa, enfesada e com raízes longuíssimas...
Foi lendo Guimarães Rosa que perdi meu complexo de ser da roça... do cerrado...

Acontecências...

Acontecências aconteceu sempre. Simplesmente aconteciam, ou eu queria que elas acontecessem.
Tinham que existir, num carne e osso de tinta e papel.
A palavra saltou de um estalo. Penetrando no mundo renovado e pitoresco onde respiram personagens, um mundo cheio de mar, observei que há gentes, do lado de cá, que passam a vida inteira sem saber as coisas lindas e diferentes que acontecem do lado de lá.
Acontecências emergiu do mar, fazendo minha Minas Gerais sentir saudades.
Mineiro, quando descobre a imensidão de água, que engole céu e matas usando suas cores, primeiro se assusta, não acredita. Depois escreve, pinta, faz canção. E termina se apaixonando pela beleza desconhecida, onde pedras e praias escondem segredos que pescadores revelam, coqueiros apostam com montanhas qual vai relar mais vezes no céu, e a gaivota mergulha, mas o peixe já pulou para ver.
Sem acabar a linha do fim, ele vai e depois volta. Manso, concordando com proas e pôpas. batendo nas rochas, endoidado de raiva ou de alegria.
Cada vez que ouço a onda desenrolada bater no casco do barco, eu sei. Ele está me contando mais uma acontecência...

Vilma Guimarães Rosa

sexta-feira, 8 de maio de 2009

O poder da palavra: Narradores de Javé à luz de Pedagogia do Oprimido

Diante da ameaça de desaparecimento do povoado sob as águas de uma barragem que será construída para abastecer uma usina hidroelétrica, os moradores do Vale do Javé se reúnem para a busca de uma solução. Descobrem, então, que existe uma possibilidade de salvação: o tombamento do local como patrimônio histórico. Mas para isso, a cidade tem que ter uma “coisa grande”, uma “história importante”. Esse é o enredo que conduz a narrativa do filme de Eliane Caffé.

No entanto, os moradores se vêm diante de um impasse: de quem será a “mão santa” que colocará as letras no papel? Desencavar da cabeça os “grandes acontecimentos”, as “histórias das origens , a “história grande”, não é problema. Cada um dos moradores tem a sua versão do mito fundador do lugar. Eles têm a palavra cantada, contada e recontada, muito ouvida, mas nunca escrita. Mas quem seria capaz de colocar no papel, de “ajuntar as histórias espalhadas” e transformá-la em “dossiê científico”? Antônio Biá é a resposta. Antigo funcionário do posto de correio, ele é expulso da cidade quando os moradores descobrem que para manter o seu emprego e impedir que o posto feche, por não ser utilizado, Biá começa a escrever histórias sobre as pessoas do vilarejo e enviar para todos conhecidos, aumentando assim, o seu serviço . Os moradores, então, concedem o perdão, se em troca, Biá assumir o lugar de “escrivão” da “grande odisséia” do Vale. Aceito o desafio, ele sai então, em busca das “lembranças javéicas”, dos “grandes feitos”, pois, “histórias grandes”, “de valor”, é que não faltam, ali.

Mas o que Narradores de Javé tem a ver com a Pedagogia do Oprimido? O Vale é um lugar de analfabetos, e segundo Paulo Freire (1968), alfabetizar é conceder ao outro o direito a palavra. Esse é o papel que Antônio Biá desempenha na história. Ele ajuda as pessoas a “biografar-se”, a “existenciar-se”, “a historicizar-se”, pois na pedagogia freireana, alfabetizar-se é aprender a escrever a sua vida, como autor e testemunha de sua história. E é isso que Biá proporciona aos moradores do lugar, na medida que busca palavras para dizer e escrever a história do povoado.

Como na pedagogia do oprimido, as palavras em Narradores de Javé, têm uma força pragmática que instaura e transforma o mundo humano. Os moradores ao ganharem distância para ver a própria experiência, analisam e reconstituem uma situação vivida. Ao objetivar seu mundo, reencontram-se uns com os outros no mesmo mundo comum e, juntos recriam criticamente o seu mundo. Ali, a palavra transforma-se no lugar do encontro, de cada um consigo mesmo e com os outros. É a dialogicidade como prática de liberdade. Isso porque, como nos diz Paulo Freire, a língua é cultura, onde a partir de suas palavras, o homem constrói o seu mundo. “O que o homem fala e escreve e como fala e escreve, tudo é expressão objetiva de seu espírito. Por isto, pode o espírito refazer o feito, neste redescobrindo o processo que o faz e refaz” (FREIRE, 2005, p.11). E é isso que faz cada morador.

No mito fundacional de Javé, existe a figura daquele que guia seu povo para a terra prometida, Indalécio. A cada história narrada, o narrador busca o herói para si. Mas não é essa a função da narrativa? Nutrir-se da memória para narrar o que aconteceu em torno de uma determinada experiência? Sua lógica vai sendo tecida no modo como o (a) narrador(a) transita entre os eventos e imagens mais significativos (Teixeira et al 2006). E assim, a cada narrativa, cada morador se torna protagonista da sua história, re-existenciando criticamente as palavras de seu mundo e dizendo a sua palavra.

A possibilidade de desaparecimento do lugar leva os moradores a se re-descobrirem através da retomada reflexiva de um processo onde vão manifestando-se e configurando-se enquanto autores de uma história. Segundo Freire, esse seria o objetivo da alfabetização, mais do que aprender a ler as palavras, é preciso aprender a dizer a sua palavra.


Referências Bibliográficas

CAFFÉ, Eliane. Narradores de Javé. Bananeira Filmes, 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 41 ed, 2005.
TEIXEIRA, Inês Assunção de C., PRAXEDES, Vanda L., PÁDUA, Karla C. et al. Memórias e percursos de estudantes negros e negras na UFMG. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Enquanto espero..

[...] Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem,
e canto lento,
para mim só,
vagos cantos que componho enquanto espero [...]
Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)

A febre de sentir...

"Eu digo que todo mundo tem de viver uma grande paixão amorosa e ter uma experiência pela possibilidade da revolução. Sem essas duas coisas você não viveu uma vida completa" Marilena Chauí