sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Mais Raduan Nassar, menos Roberto Freire!

"Imagina se no Brasil tivesse uns 30 ou 40 Raduan fazendo isso, ajudando o povo?" A pergunta é de Gediel Viana da Silva, funcionário da fazenda Lagoa do Sino, doada pelo escritor Radua Nassar à Universidade Federal de São Carlos - USFCar.

Desde domingo, Raduan Nassar não me sai da cabeça. Explico. É que uma amiga publicou em seu perfil do facebook uma matéria veiculada no Globo Rural no dia 8 janeiro deste ano (http://g1.globo.com/economia/agronegocios/globo-rural/noticia/2017/01/escritor-que-virou-agricultor-realiza-sonho-doando-fazenda-para-ufscar.html). A matéria falava sobre o campus Lagoa do Sino da UFSCar. O campus funciona na fazenda de mesmo nome que foi doada pelo escritor Raduam Nassar ao Ministério da Educação. Eu já sabia da doação, pois ano passado Ruduan e o presidente Lula foram homenageados pelxs alunxs quando estiveram por lá, inaugurando um laboratório (https://www.youtube.com/watch?v=VWmsZwIgSvw).

Em 2007, Raduan Nassar tentou doar a fazenda de 640 hectares ao governo do estado de São Paulo, mas Geraldo Alckimin não quis (. Durante três anos, o escritor, tentou em vão efetivar a doação, mas a má vontade e a burocracia o fizeram desistir. A notícia chegou aos ouvidos do presidente Lula, que na época, efetivava, através do então ministro da educação, Fernando Haddad, a ampliação das universidades federais. A única reivindicação de Raduan era que os funcionários da fazenda não fossem demitidos, que ali fosse implantando um complexo educacional e que vagas fossem reservadas  para negros, indígenas e filhos de trabalhadores rurais.

Hoje, o campus Lagoa do Sino possui 5 cursos voltados para a área da segurança alimentar e da agricultura familiar: agronomia, engenharia ambiental, engenharia de alimentos, administração de agroindústria e ciências biológicas. O campus possui cerca de 500 alunos e 90 servidores.

A fazenda está localizada numa área que possui 4 nascentes, 9 lagoas e 2 rios, é autossuficiente no plantio, tratamento, colheita, secagem e silagem de milhares de sacas de feijão, milho, soja e trigo. Mas, além dos grãos, a fazenda produz conhecimento. Mas não só. O impacto do estabelecimento de uma instituição de ensino federal na região já pode ser sentido nos cerca de 40 municípios localizados na região.

O município de Campina de Monte Alegre, a cerca de 6 km da região agora, abriga repúblicas de estudantes. Com a chegada de moças que vieram morar sozinhas, o assédio na cidade aumentou, o que levou as estudantes a criarem um coletivo feminista: "esquadrão das minas". Os filhos dos funcionários da fazenda estudam no campus e o conhecimento produzido na instituição já está impactando na agricultura familiar da região com feiras de produtos orgânicos dentro e fora da Universidade. Os filhos dos agricultores agora têm a possibilidade de cursar o ensino superior numa universidade federal e depois de formados, continuarem na região que é um pólo agrícola. Uma jovem, que nasceu na fazenda é uma das servidoras da Universidade. Ela conta que começou como faxineira e hoje é assistente de sala de apoio.  A pousada da região terá que ser ampliada para atender a demanda que aumentou significativamente depois da instalação da unidade. Além disso, o reitor da unidade afirma que o poder simbólico da doação de Raduan Nassar mudou a convivência entre as pessoas da região, pois criou um sentimento de pertencimento não só com o campus, mas com o território.

Raduan Nassar verá o seu sonho se completar, em 2018, quando as primeiras turmas se formarão. Eu penso, que nesses tempos brutos, o gesto do escritor precisa ser amplificado. Doar uma fazenda produtiva de 640 hectares não é pra qualquer pessoa não. Eu nem imagino o que é isso, já que fui criada em um quintal de cerca de 300 metros quadrados.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Momento de céu

Tenho um artigo para terminar, mas o que atrai mesmo meu olhar é um livro de cerca de 500 páginas com 50 contos de Machado de Assis. Ontem, li o conto "O Machete" e passei a manhã ouvindo violoncelo. Yo-Yo Ma tocando Bach, já ouviu? Não? Então coloque "Cello Suíte número 1 - Prelude" e viva um momento de céu. 

Ouça duas vezes. Na primeira de olhos fechados. Na segunda, observe a expressão de Yo-Yo Ma. Depois leia o conto de Machado de Assis e vai entender porque o casamento de Inácio com Carlotinha não deu certo. Quando Inácio tocou pela primeira vez o "cello" para esposa, depois que a última nota expirou, o braço do músico tombou. Segundo Machado, não de fadiga, "mas porque todo o corpo cedia ao abalo moral que a recordação da obra lhe produzia". Carlotinha levantou-se e foi ter com o marido exclamando eufórica: "Oh, lindo! lindo!" Inácio estremeceu e olhou pasmado para a mulher. A exclamação de entusiasmo da esposa destoara porque o que o artista acabara de tocar não era lindo, mas severo e melancólico e também, porque a reação correta seriam lágrimas, ainda que só duas, mas não aquele aplauso ruidoso. Inácio pegou silencioso o instrumento e colocou-o num canto. Carlotinha não experimentava as sensações que o violoncelo provocava no marido. Estava longe daquela paixão silenciosa e profunda que vinculava músico e instrumento. Ainda que tivesse acostumada a ouvi-lo, ou até mesmo aprecia-lo, não o entendia. 
Quer trazer luz para o seu dia?
Leia Machado de Assis!
Ouça Yo-Yo Ma!

sábado, 11 de fevereiro de 2017

O hip hop é foda

- Mãe, você gostou do Tupac, né?
- Aquela que você me mostrou [Califronia love], sim! Maior estilo baile black.



- E a nova do Rincon, você já ouviu?
- "Ponta de Lança"? Já! Da hora, né? 

Eu gosto muito do Rincon. Já assisti uma entrevista dele 
no "Provocações", do Abujamra 

e no Freestyle, do Marcílio.


-Não conhecia.
- Aposto que você viu no perfil do Emicida.
- Não, foi o Joel que compartilhou e eu ouvi e gostei. Muito pesada! Cheia de referências.
- Sim!
- Então, ontem eu fui assistir "Roots" [Raízes] mas não dei conta de ver não, mãe. Muito pesado! A cena do açoitamento de Kunta Kinte, porque se recusava a abandonar seu nome africano, me deu muita raiva. Tanta raiva que fui assistir "Django" só pra ver o momento que o escravizado começa a ganhar dinheiro para matar os brancos.
- Você foi assistir pra se vingar, né?
- Não, mãe. Não foi por vingança, foi uma espécie de redenção! [E o menino se cala surpreso com o próprio pensamento].
- Por isso pirei na música do Rincon: 'Se a vida é um filme, meu Deus é que nem Tarantino/Eu tô tipo Django'. Pesado demais, mãe!
- Sim! E ele faz um monte de crítica, reparou? Traz uma letra foda, numa batida de funk, com um monte de referência africana, num cenário da Cohab.
- "Batemos tambores/eles panela. Olha isso, mãe!
- Foda! Eu penso que a gente devia fazer uns vídeos tipo "reação/análise" de rap. O que acha? Nós dois juntos.
- Da hora.
- João, papai tá chamando pra almoçar na casa da vovó. [chama a irmã, que acabou de chegar].
- Vou lá, viu mãe?
- Beleza, depois continuamos essa conversa.

O que te fortalece?

Ontem, pela manhã, enquanto observava os passarinhos atravessando a cozinha, pensava: "todo mundo deveria ter um pé de mamão junto a janela só para observar a farra dos pardais'. Daí, fiquei me achando ridícula, pois, enquanto lá fora a vida estoura em bombas, eu aqui, no meu cotidiano ordinário, rindo de passarinho. Então, apareceu na minha TL uma crônica do Rubem Braga, "Um sonho de simplicidade", onde ele fala que a vida poderia e deveria ser mais simples. Casa, comida, um amor [se puder], andar limpo, não ter fome, nem sede, nem frio. "Não precisamos tomar nota de nada, precisamos apenas viver – sem nome, nem número, fortes, doces, distraídos, bons, como os bois, as mangueiras e o ribeirão", ele diz. Como sempre, passei o dia nos meus afazeres de dona de casa, de mãe de filho, de professora, preparando cronograma para o próximo semestre que se incia em breve. No final do dia, aproveitei a trégua da chuva e fui caminhar. O caminho pedregoso, os quintais dos vizinhos, galinhas pelo meio da rua, cachorros enrodilhados, crianças brincando ainda com o uniforme da escola. Eu, como sempre me distraindo com o cerrado no rebroto, parei para colher flores. Um senhora riu. Eu expliquei que era para enfeitar a casa. Ela deve ter pensado, como meu irmão, que as amarelinhas não são flores, mas mato, carrapicho. Todos os dias eu me espanto com as mesmas coisas, como se fosse a primeira vez. Quando cheguei em casa, um post de uma amiga recente, falava sobre a necessidade de nos fortalecermos nessa "noite sem lua" que virou esse país pós-golpe. Segundo ela [e eu concordo], uma maneira de nos fortalecermos é nos cercando "de beleza, dos grandes livros e pensadores, das pessoas que fazem o bem, procurando estar ao lado do que é bom, justo, ético. cuidando das crianças, dos jovens e dos velhos. olhando pelos que estão nas ruas, pelos que estão passando fome, sendo discriminados." Sabe o que me fortalece? Essa casa velha me fortalece, ouvir o menino cantando Paulo César Pinheiro, antes das 7h da manhã, enquanto se prepara para ir pra escola me fortalece. Fridinha e Scooby enrodilhados aos meus pés e me recebendo no portão a cada vez que chego como se estive há anos longe de casa, me fortalece. Uma conversa com um amigo, ainda que via Whatsapp, me fortalece. Um bom livro me fortalece, ouvir Milton Nascimento me fortalece. Preparar o meu próprio pão me fortalece. Poder acordar com os passarinhos me fortalece. A sala de aula me fortalece. Ler um recado de umx alunx num trabalho de final de semestre me fortalece. Escrever me fortalece. Os tempos estão brutos e dá medo pensar no que ainda está por vir. Por isso, mais do que nunca precisamos fortalecer as nossas redes de afeto. Mas, como disse a minha amiga, também é preciso "saber quem é quem para que nos fortaleçamos e possamos nos proteger." Calvino já disse: "O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: procurar e reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço." 
Eu prefiro a segunda opção. 
Abramos caminho, então!

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Tchau, Dona Marisa!


Scooby me acordou antes das 6 para o seu rolê. O dia ainda escuro. Abri o portão pra ele sair e voltei pra a cama, mas não consegui mais dormir. Levantei. Uma dorzinha de cabeça chata, de finalzinho de TPM. Um certo mal estar. Colhi na horta, 3 folhinhas de hortelã para um chá. Lembrei de Adélia:
"Hoje estou velha como quero ficar.
Sem nenhuma estridência.
Dei os desejos todos por memória
e rasa xícara de chá."
Será mudança da lua? Confirmei no calendário: 4 de fevereiro de 2017 - lua crescente. É impressionante como a mudança de lua mexe comigo. Lembrei de Cecília:
"Tenho fases, como a lua.
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
(...)
Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso."
Dona Marisa e Lula não me saem da cabeça. 66 anos. Tão jovem, ainda. Uma pena!
Sua morte me remeteu para outras mortes, por mim, já vividas. Vovô, vovó, mamãe, papai, dindinha, Jardel, meu sobrinho e até a mãe do vovô. Lembrei dele no enterro, carregando o caixão e dizendo: "Eu quero carregar ela, gente! Ela me carregou tanto!" Aquilo foi tão triste! Eu tinha uns 6, 7 anos e nunca mais esqueci. Depois a morte da Didinha, irmã da vovó. Levaram o caixão dentro do quarto para a vovó se despedir, pois ela não saía mais da cama por conta de vários avc's já sofridos. AVC. A gente chamava de derrame. Foi triste também. A morte do Jardel nem se fala. Uma criança. 4 anos. Atropelado. Minha irmã nunca mais foi a mesma. Vovó tinha medo de morrer e chorava: "Tenho medo d'ocê deixar o Izé sozinho". Não deixei. Só me juntei a mamãe e aos meus irmãos e irmãs, que já haviam mudado para BH, depois da morte do vovô. Depois teve a morte de papai, jovem ainda, de doença de chagas, morte de pobre. Foi enterrado com uma camisa que a minha irmã deu de presente e ele adorava. Não tinha meias. Alguém quis ir correndo na rua comprar. Eu achei bobagem. "Se em vida ele viveu sem, pra quer calçar agora?" A morte de mamãe foi a mais recente, em 2010. Tão difícil chegar aqui e ver na varanda, no lugar de suas plantas, uma coroa de flores. O caixão no meio da sala. Tive medo de olhar, mas ela estava serena. Lembrei de Adélia, e percebi ali, que o semblante fechado da mamãe, em vida, na verdade,"era raiva não, era marca de dor." Sem dor, o rosto dela foi abrandado.
E agora Dona Marisa, jovem ainda.
Quando o chá ficou pronto, Gilberto Gil cantou para mim:
"Não tenho medo da morte
mas sim medo de morrer
qual seria a diferença
você há de perguntar
é que a morte já é depois
que eu deixar de respirar
morrer ainda é aqui
na vida, no sol, no ar
ainda pode haver dor
ou vontade de mijar"

Lembrei também do Saramago, em seu discurso em Estocolmo, quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998 (http://bu.furb.br/sarauEletronico/index.php?option=com_content&task=view&id=191). Ele disse que seu avô, pouco antes de morrer, abraçou cada uma das árvores do quintal se despedindo dos frutos que não mais comeria e das sombras amigas. Neste discurso, Saramago também falou da avó, sentada com ele, ainda menino, na porta de casa, olhando as estrelas. Ela dizia: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer." Como Gilberto Gil, ela não tinha medo da morte, mas de morrer:
"não tenho medo da morte
mas medo de morrer, sim
a morte é depois de mim
mas quem vai morrer sou eu
o derradeiro ato meu
e eu terei de estar presente
assim como um presidente
dando posse ao sucessor
terei que morrer vivendo
sabendo que já me vou".
Saramago é quem diz que "a morte é simplesmente a diferença entre estar aqui e já não estar.
Hoje, vou falar baixo, pisar leve, dizer pouco. Chorar e me despedir. Afinal é pra isso que temos braços longos, não é? Para os adeuses, Já disse o poeta.
Tchau, Dona Marisa!

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

"Janela de ônibus"...

I
Cansada desse vai e vem, eu fazia um esforço mental para não me aborrecer. Me acomodei na poltrona dura, tentando achar uma posição confortável, em vão. Escolhi o lado esquerdo do ônibus para pegar o sol nascendo. O menino avisou: "mãe, vou colocar os fones", o que significa, 'tô desligando do mundo'. Confirmei se os documentos estavam na bolsa. Apesar do aviso, cutuquei o menino e mostrei a fotografia da primeira carteira de trabalho. "Quantos anos você tinha, mãe?" "14, a sua idade, hoje." "Já usava black, hein mãe?" "Mais ou menos, a intenção não era bem essa, mas os poucos recursos da época..." Ele ri. "Você já trabalhou muito, heim? Duas carteiras..." Ele olha o primeiro emprego: servente - Instituto Alcinda Fernandes. "Fui tão humilhada, aí. Faliram!" "Bem feito!" Ele diz. Ele olha o emprego seguinte: Irmãos Nasser Ltda - Auxiliar de Serviços Gerais. Admissão: 3 de setembro de 1985. "Quantos anos você tinha aqui, mãe?" "19" "E o que você fazia?" "Limpava a loja, lavava banheiro, repunha mercadorias nas prateleiras. Trabalhava na seção de brinquedos. Foi quando decidi voltar a estudar." "Auxiliar de separação de pedras?" "Era uma indústria de jóias. Separava pedras preciosas: brilhantes, rubis, esmeraldas." "Nossa!" Depois, telefonista, telefonista, telefonista, telefonista, telefonista, telefonista/recepcionista, telefonista/recepcionista, telefonista/recepcionista. "Melhorou um pouquinho né, mãe?" "Sim! Já tinha ensino médio completo." "E aqui? Analista de pesquisa e planejamento." "Aí, já tinha curso superior." "Bacana demais, mãe!". Professora auxiliar, professora assistente I, professora assistente I, professora, professora. São os registros da segunda carteira de trabalho. "Cê tá há muito tempo no corre, né mãe?" "Há 36 anos, meu filho! E ainda vou ter que trabalhar mais 15 para me aposentar." "Cê é loco!". Ele devolve as carteiras, eu guardo na bolsa e ele recoloca os fones. "Agora tô desligando do mundo, viu mãe?" Também coloco os meus fones. Celso Adolfo canta:


"A vida ferve na cuia do tempo,
quem espera a dor não viaja no vento
Ranquei a hora do chão do momento,

Nasci de manhã e o sol veio olhar
Brilhou meu setembro, fiquei no lugar,
mais cedo que a vida, fui trabalhar "...