sábado, 4 de fevereiro de 2017

Tchau, Dona Marisa!


Scooby me acordou antes das 6 para o seu rolê. O dia ainda escuro. Abri o portão pra ele sair e voltei pra a cama, mas não consegui mais dormir. Levantei. Uma dorzinha de cabeça chata, de finalzinho de TPM. Um certo mal estar. Colhi na horta, 3 folhinhas de hortelã para um chá. Lembrei de Adélia:
"Hoje estou velha como quero ficar.
Sem nenhuma estridência.
Dei os desejos todos por memória
e rasa xícara de chá."
Será mudança da lua? Confirmei no calendário: 4 de fevereiro de 2017 - lua crescente. É impressionante como a mudança de lua mexe comigo. Lembrei de Cecília:
"Tenho fases, como a lua.
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
(...)
Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso."
Dona Marisa e Lula não me saem da cabeça. 66 anos. Tão jovem, ainda. Uma pena!
Sua morte me remeteu para outras mortes, por mim, já vividas. Vovô, vovó, mamãe, papai, dindinha, Jardel, meu sobrinho e até a mãe do vovô. Lembrei dele no enterro, carregando o caixão e dizendo: "Eu quero carregar ela, gente! Ela me carregou tanto!" Aquilo foi tão triste! Eu tinha uns 6, 7 anos e nunca mais esqueci. Depois a morte da Didinha, irmã da vovó. Levaram o caixão dentro do quarto para a vovó se despedir, pois ela não saía mais da cama por conta de vários avc's já sofridos. AVC. A gente chamava de derrame. Foi triste também. A morte do Jardel nem se fala. Uma criança. 4 anos. Atropelado. Minha irmã nunca mais foi a mesma. Vovó tinha medo de morrer e chorava: "Tenho medo d'ocê deixar o Izé sozinho". Não deixei. Só me juntei a mamãe e aos meus irmãos e irmãs, que já haviam mudado para BH, depois da morte do vovô. Depois teve a morte de papai, jovem ainda, de doença de chagas, morte de pobre. Foi enterrado com uma camisa que a minha irmã deu de presente e ele adorava. Não tinha meias. Alguém quis ir correndo na rua comprar. Eu achei bobagem. "Se em vida ele viveu sem, pra quer calçar agora?" A morte de mamãe foi a mais recente, em 2010. Tão difícil chegar aqui e ver na varanda, no lugar de suas plantas, uma coroa de flores. O caixão no meio da sala. Tive medo de olhar, mas ela estava serena. Lembrei de Adélia, e percebi ali, que o semblante fechado da mamãe, em vida, na verdade,"era raiva não, era marca de dor." Sem dor, o rosto dela foi abrandado.
E agora Dona Marisa, jovem ainda.
Quando o chá ficou pronto, Gilberto Gil cantou para mim:
"Não tenho medo da morte
mas sim medo de morrer
qual seria a diferença
você há de perguntar
é que a morte já é depois
que eu deixar de respirar
morrer ainda é aqui
na vida, no sol, no ar
ainda pode haver dor
ou vontade de mijar"

Lembrei também do Saramago, em seu discurso em Estocolmo, quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998 (http://bu.furb.br/sarauEletronico/index.php?option=com_content&task=view&id=191). Ele disse que seu avô, pouco antes de morrer, abraçou cada uma das árvores do quintal se despedindo dos frutos que não mais comeria e das sombras amigas. Neste discurso, Saramago também falou da avó, sentada com ele, ainda menino, na porta de casa, olhando as estrelas. Ela dizia: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer." Como Gilberto Gil, ela não tinha medo da morte, mas de morrer:
"não tenho medo da morte
mas medo de morrer, sim
a morte é depois de mim
mas quem vai morrer sou eu
o derradeiro ato meu
e eu terei de estar presente
assim como um presidente
dando posse ao sucessor
terei que morrer vivendo
sabendo que já me vou".
Saramago é quem diz que "a morte é simplesmente a diferença entre estar aqui e já não estar.
Hoje, vou falar baixo, pisar leve, dizer pouco. Chorar e me despedir. Afinal é pra isso que temos braços longos, não é? Para os adeuses, Já disse o poeta.
Tchau, Dona Marisa!

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