domingo, 13 de janeiro de 2019

Terceira margem

Um dos contos que mais gosto no livro "Primeiras Estórias" do Guimarães Rosa, é a "Terceira Margem", história de um pai que abandona tudo para viver numa canoinha no rio. Um homem comum, ordeiro, positivo, apesar de quieto. Um belo dia, ele encomenda uma canoinha pequena, de forma a caber só o remador, de madeira boa, feita para durar muito tempo em águas de longas funduras. Sem explicação, a família pensa que fosse intento para alguma pescaria, mas chegou o dia em que o homem encalcou o chapéu na cabeça e sem explicação, sem matula e trouxa, entrou na canoa e se foi... Mas na real, não foi a parte alguma, só ficou ali, dentro da canoa, no rio... Seria pagamento de promessa? Alguma doença contagiosa ou enlouquecimento? A notícia se espalhou. A mãe, mesmo envergonhada, se mantinha prudente, sensata, cordata. A notícia se espalhou, homens do jornal vieram, tiraram retrato, mas o velho se recusou a contato, desaparecendo no liso do rio. A família acabou por se acostumar com aquilo, se bem que acostumar, acostumar, não acostumaram não, mas resignaram. Como o homem aguentava aquilo? Sol, chuva, calor, sereno, friagem, sem pisar em chão nem capim. E nas enchentes, como ele fazia? A família não falou mais no homem, embora ainda pensasse nele. A filha casou, o neto nasceu e todos foram até a beira do rio levar a criança para o velho conhecer. Erguendo nos braços a criança e usando o mesmo vestido branco do casamento, a filha gritava pelo pai. Ele não apareceu. Todos choraram abraçados. Desgostosos, um a uma foram se mudando. Só um dos filhos ficou e um dia, na beira do rio propôs trocar de lugar com o pai: " O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!" A canoa apareceu, o velho fez um gesto, o primeiro, depois de tantos anos decorridos. O filho se assombrou, correu, fugiu, pois o pai parecia vir do além. Nestes tempos brutos que estamos vivendo, eu fico pensando em quantas pessoas próximas têm vivido presas em suas canoinhas, apartadas do mundo real, da convivência. Também conheço gente, que da margem oferecem ajuda, um alento, um descanso. Às vezes, o sentimento é que estou eu dentro da canoa; às vezes me sinto na margem oferecendo ajuda. É isso.

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Raízes: escritoras negras - resistência histórica


Sou uma das autoras do livro "Raízes: escritoras negras - resistência histórica". São vinte mulheres negras de várias partes do país, que em uma sociedade racista e patriarcal, aprendem diariamente a resistência através da escrita. Tivemos o prazer e a honra de contar com o prefácio da escritora Cidinha da Silva:

"Este Raízes Escritoras Negras – Resistência Histórica traz as vozes de 20 escritoras para a cena literária central. A capa já nos avisa que de uma mulher negra brotam baobás, ou seja, esta mulher é a própria terra, é a fertilidade que gera a vida.
A escolha das epígrafes do conjunto de textos de cada autora remete a duas leituras imediatas: a primeira, sobre a valorização da ancestralidade, a reverência àquelas que vieram primeiro e permanecem entre nós, a exemplo de Conceição Evaristo, Angela Davis e Sueli Carneiro, entre outras, e às que já se foram como Carolina Maria de Jesus e Audre Lord. A segunda leitura trata dos pequenos livros dentro do livro, do universo particular de cada autora.
Estes pequenos livros costurados pela tradição afro-diaspórica de publicar em coletâneas para potencializar as vozes numa convergência de investimentos (financeiros, publicitários, de circulação) expressam linguagens altivas, imperativas, compreendidas como amplificadores de lutas que entendem a escrita ativista como uma escrita literária possível e potente.
As questões ligadas às desigualdades de gênero atravessam de maneira incontornável a poética dessas autoras. A memória da passagem atlântica e do que ficou submerso se manifesta crua, mas também se ressignifica na influência exercida por competições de SLAM e saraus no ritmo da oralidade que convoca a leitora e o leitor para virem junto no contracanto.
É livro de variada sonoridade. Aprimoremos a escuta."

sexta-feira, 27 de abril de 2018

"Quando a coisa fica preta, fica linda!"

Segunda-feira passada, dia 16 de abril, fui ouvir a escritora Ana Maria Gonçalves no Projeto Pretança no Centro Universitário UNA. Ana Maria falou sobre gênero, raça, narrativas e contemporaneidades. Entre outras coisas, a escritora falou sobre como estamos reativos. Em tempos de imagem/legenda, nossa reatividade resume-se a dar like e repostar conteúdos nas redes sociais, sem no entanto, elaborar qualquer tipo de reflexão. Como criar, se posicionar e ser propositivo num mundo que nos demanda tanta reação, foi o questionamento de Ana Maria. E foi com ele na cabeça que saí de lá. 
A conversa foi tão boa que decidimos, eu e uma amiga, seguirmos para o Teatro Espanca, uma espécie de quilombo urbano na região da Praça da Estação, onde a escritora seria homenageada. Um público majoritariamente negro a aguardava para o segundo evento da noite, dentro da Segunda Preta, projeto que busca empretecer as segundas-feiras da cena artística belorizontina.
Terminei o dia convencida que, apesar dos golpes que estamos sendo vítimas, diariamente, desde o afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff, existe uma revolução em curso, e que, na minha opinião, passa pelo povo negro. Hoje, o que acontece de mais interessante vem das periferias e da população preta.
Dias depois, assisti a uma entrevista com a filósofa Marilena Chauí, onde ela explicava que a sensação de impotência que nos acomete em períodos de crise, vêm justamente de um sentimento de perda individual, e que a capacidade de reversão disso, só virá se estivermos juntos com outros, num experiência de comunidade, de coletividade, de grupo, de movimento. Imediatamente fiz o link com a experiência da Segunda Preta, pensando como saí de lá me sentindo mais fortalecida. Lembrei, então, de uma fala da escritora Conceição Evaristo, de quem sou devota. Segundo ela, quando o sujeito escravizado fugia para o quilombo, ele nunca tinha certeza de sua liberdade, que podia ser perdida a qualquer momento. O que exigia sempre um exercício de resistência, persistência e resiliência. A isso, ela denomina de “práxis quilombola”.
Daí, a minha alegria ao ser convidada para colaborar com o Instituto Bambarê, uma organização que trabalha na divulgação, difusão e valorização da cultura afrobrasileira em suas variadas vertentes. Meu desejo é que esse espaço se transforme num quilombo, onde coletivamente possamos deixar de sermos apenas reativos, propagadores de imagens/legendas, mas capazes de pensarmos juntos alternativas para sairmos do buraco onde o país se enfiou e que parece não ter fundo. Que aprendamos com as nossas mais velhas, com todas e todas que vieram antes de nós. Como diz a mestra, Capitã Pedrina, precisamos continuar resistindo, como nosso povo faz, há mais de 500 anos. Segundo ela, que é uma mulher de palavra, se o pensamento é força viva, a palavra também o é. Que esta coluna seja um lugar de reflexão e de proposição.
Aquilombemo-nos!

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Carta ao Presidente Lula

Belo Horizonte, 10 de abril de 2018.
Querido Presidente Lula,
Sou Dalva, mulher do povo, mãe de filho. Sou a oitava de uma família de dez irmãos. Pais lavradores. Era assim que meu pai orgulhosamente se definia: um lavrador! Morreu jovem, de doença de chagas. Morreu sonhando com a reforma agrária e um pedacinho de chão que fosse seu. Minha mãe, como a sua, era analfabeta. Das letras, porque o mundo ela lia como ninguém. Meu pai trabalhou a vida toda como meeiro em terras de outros. Quando não conseguia terra para plantar era o empreendedorismo da mamãe que colocava comida na mesa. Vendíamos bolo e pastel numa mesinha na praça, durante as festas do padroeiro da cidade; merenda no grupo escolar e no ginásio; Q-suco gelado no campo nos dias de futebol. Lembra do Q-suco, Presidente? O gelo era fornecido pelos vizinhos, pois não tínhamos geladeira. Mamãe também fazia sabão artesanal do óleo do coco, não o da bahia, mas o de espinho, misturado com um tipo de soda cáustica artesanal, fabricada a partir de cinzas. "Quebrei muito coco para pagar essa casa", ela repetiu a vida toda, orgulhosa.Também vendíamos verduras que mamãe caprichosamente arrumava num balaio e saíamos oferecendo pela vizinhança. Essa atividade era mais difícil, pois a maioria das casas, a exemplo da nossa, também tinha horta. Eu fico irritadíssima quando ouço críticas à ascensão ao consumo da classe C, realizada no seu governo. Normalmente, quem faz essas críticas nunca precisou pedir gelo ao vizinho para tomar uma limonada gelada.
Fico pensando em como o bolsa família teria feito diferença em nossas vidas. Talvez mamãe não precisasse fazer, como fez muitas vezes, farofa de picão. O Senhor conhece picão, Presidente? Sim, é aquele mato. Pois, como a sua mãe, a minha também muitas vezes não teve o que dar de comer para os filhos. Se naquela época tivéssemos bolsa família, empreendedora do jeito que era, D. Dulce teria feito uma revolução com o dinheiro. Tenho certeza que ela seria como uma das milhares de mulheres, chefes de família, que devolveram o cartão, quando não precisavam mais do benefício.
Dos dez filhos, seis fizeram universidade pública, Presidente. Seis! Estatística interessante para filhos de trabalhadores rurais, não é? Muitas vezes indo a pé por não ter o dinheiro da passagem. Fico pensando como a nossa vida teria sido mais fácil se na época tivéssemos o Reuni, o Fies, o sistema de cotas, o minha casa minha vida, o pronatec... Mudamos para Belo Horizonte no começo da década de 1980, com a taxa de desemprego mais alta que a história do país já teve. Foram muitos sub-empregos, muita dificuldade. Chegamos a morar 8 pessoas em um barracão de 3 cômodos. Naquela época o Senhor já irritava a elite com as greves no ABC. Lembro quando o Senhor foi preso e quando saiu da prisão para acompanhar o enterro da sua mãe. A orfandade é pra sempre, não é presidente? Minha mãe também se foi, há 7 anos. Uma das poucas vezes que a vi no trato com o lápis foi para aprender a escrever seu nome para votar no Senhor, em 1989. Depois de terminada as obrigações de dona de casa, ela sentava na mesa da cozinha e ficava lá, com o lápis e o papel num desajeito de quem só tinha coordenação motora para o trato com a enxada. O lápis exigia uma coordenação motora fina que era demais pra ela. Mas mesmo assim, ela conseguiu aprender a escrever: L U L A. A partir do seu governo, Presidente, a minha vida e da minha família mudou radicalmente. Meus sobrinhos já têm uma vida diferente. Quase todos fizeram graduação. Uma sobrinha acabou de se formar num dos melhores cursos de Relações Internacionais do país, pelo FIES. Danadinha, ela! O Senhor precisa ver. Outra faz doutorado em agronomia. Tem uma que é estatística, outra fez letras e biblioteconomia. Tem também pedagoga, administradora; uma fazendo direito e outra psicologia, ambas pelo FIES. Não precisaram arrancar as folhas brancas e costurar para customizar novos cadernos ou levar o pouco material escolar na sacolinha reciclada de arroz ou açúcar, como fazíamos na infância. Muitos na minha família adquiriram carro e terminaram a construção da casa que durou décadas, graças à redução de impostos do seu governos e da presidenta Dilma. No seu governo eu voltei a estudar, fiz especialização, mestrado e doutorado. E com bolsa, Presidente. Também realizei um estágio doutoral "sanduíche" em Lisboa, onde morei por nove meses com meu filho, bancada pelo povo brasileiro, através do governo do PT. Vi, com meus próprios olhos, como o perfil do aluno brasileiro que fazia estágio no exterior mudara. Muitos estudantes negros e das classes populares. Conheci vários professores fazendo pós-doutorado. Quando terminei minha graduação em 1995, estudar fora do país era privilégio dos filhos da elite. Durante seu governo, Presidente, meu rosto foi um dos que fizeram os aeroportos parecerem rodoviária. Meu filho não teve que esperar mais de 30 anos para andar de avião. Muitas amigas e amigos meus passaram em concursos e estão lecionando nas universidades ou nos institutos federais e em cursos criados em seu governo. Por tudo isso, Presidente, sou muito agradecida ao Senhor. Saiba que tem muita gente aqui fora lutando e resistindo para que a injustiça que estão fazendo seja reparada. Espero, um dia, encontrá-lo pessoalmente para conversarmos sobre dona Dulce e dona Lindu, essas duas mulheres incríveis que nos fizeram ser quem somos. Força, aí! Se cuida!
Um grande abraço, Presidente Lula.
Dalva Maria Soares

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Caminhada

A caminhada agora não é mais no caminho pedregoso e poeirento da cidadezinha. Agora é no asfalto, aproveitando uma ciclovia carecendo de pintura. Pouco mais de dois meses e já conheço algumas coisas. Há dois quarteirões de casa tem um cachorro que vive na rua. Algum/a filho/a de Deus abastece uma vasilha com água e outra com ração e tem sempre um paninho pra ele dormir. Na firma, logo abaixo, tem um cachorro preto, que lá pelas 7 horas, está sempre próximo ao portão balançando o rabo na expectativa da chegada de alguém. Na loja de peças de carro usadas tem um gato, sempre na calçada. O ferro velho logo à frente é cheio de galinhas. Próximo à padaria uma casa enorme, térreo e primeiro andar, janelas e portas de madeira em estilo colonial. Pintada de verde e amarelo possui um cartaz enorme com os dizeres "escritório político", e o sobrenome do vereador e da irmã deputada. O imóvel está sempre fechado. Na garagem três carros e uma moto. Praticamente ao lado, três senhores em situação de rua, todos os dias, disputam espaço com os pombos. Quando passo, um deles está sempre de pé, arrumando suas tralhas num carrinho de supermercado e pronto pra sair e cuidar da vida. Todos os dias é assim...

Domingo

Ontem uma amiga me sugeriu a música de Sá e Guarabyra, "Meu lar é onde estão meus sapatos". Fui ouvir e um verso me chamou a atenção:
"A gente tem que saber
Ser dono do seu destino
Partir se tem que partir
Ficar se tem que ficar
Meu lar é onde estão meus sapatos
Um pouco em cada pedaço e lugar"
Hoje completam 11 domingos desde que a pickupzinha do Zéze trazendo nossos trenzinhos, veio ziguezagueando pelas curvas dos cerca de 100 km que agora me separam da minha patriazinha. Confesso que só agora parou de doer a distância da janela azul de tramela, meu portal para Nárnia. Repito pra mim mesma, quase que como um mantra, diariamente: "desapega, Dalva, desapega! Perder mais, mais rápido e com mais critério, lembra?". Agora há pouco lia um conto que falava de caduquice, que “caducar não é endoidar, não, é só esquecer o que d’ora em vante não tem mais serventia pra vida." É isso! Enquanto tiver serventia a gente vai lembrando. Daí, recordo da poesia de Adélia e me convenço que a memória e o sentimento são um país que posso sempre visitar e fecho os olhos e ouço novamente a risada de Dona Geralda a caminho da igreja, as vozes do coral cantando durante a missa e o sermão do padre. E estou novamente na minha patriazinha e "é domingo, é domingo, é domingo"...

Choque cultural

Meu primeiro choque cultural foi quando, aos 12 anos de idade, minha família mudou de uma cidadezinha de sete mil habitantes para BH. A cidade grande me assustava, morria de medo de me perder, não entendia os quarteirões fechados da Praça Sete, não sabia usar o telefone público. Foi em BH que a ficha da injustiça social caiu. Vi mendigos na rua pela primeira vez e percebi o quanto minha família era pobre. O segundo choque cultural foi quando entrei na universidade. Era começo da década de 1990, o muro de Berlim havia caído e discutia-se o fim da história. Influenciada pelos irmãos Souza (Betinho, Henfil e Mário) lá fui eu fazer Ciências Sociais. Lembro de uma greve de ônibus que teve, e como ia a pé para UFMG, fui assim mesmo. Achava que ia perder a caminhada, pois com greve nos transportes como é que as pessoas se deslocariam até lá? Quando cheguei e vi o estacionamento tomado de carros, alheios à greve, percebi o espaço elitista onde estava me metendo. Lembro do primeiro período, tendo que ler Pierre Bourdieu e não entendendo nada. Lembro de um trabalho que fui fazer na casa de uma colega de curso. Um menina que estava na segunda graduação, que já havia morado no Canadá e falava francês fluentemente. Essa colega às vezes zoava o meu sotaque da roça, eu que nem sabia que tinha, porque morando em BH há mais de 10 anos, achava que já dominava todos os códigos. Mas não adianta, pobre tem cara de pobre, jeito de pobre e alma de pobre. Já disseram por aí. Quando cheguei no apartamento da colega para discutirmos o texto tomei outro susto. Localizado na zona sul de BH, num prédio de um apartamento por andar, com cerca de, sei lá, 150/200m2. Era um apartamento de quatro quartos e ficamos discutindo o texto numa mesa enorme na sala de jantar. Chegamos a morar, eu e minha família, 8 pessoas em um barracão de três cômodos. Eu olhava pr'aquele apartamento enorme e me perguntava como podia abrigar somente uma pessoa? Por isso carrego uma simpatia enorme pelos movimentos de luta por moradia e, às vezes, tenho muita vontade de ocupar algumas casas vazias que vejo por aí. Minha colega morava sozinha e deve ter percebido a minha cara de espanto, pois ficou justificando de onde vinha a riqueza, que o apartamento era do pai que enriqueceu durante a ditadura na década de 1970, com aquela história que o bolo tinha que crescer pra depois dividir. Foi a primeira vez que ouvi isso. Depois estudaria sobre o período nas aulas de economia e aprenderia que o bolo cresceu sim, mais foi dividido somente com uma pequena parcela da população, aquela que ficava no topo da pirâmide, às custas do empobrecimento de quem estava na base. Nesses dias de aniversário do golpe militar de 1964, tenho lembrado dessas histórias.