domingo, 26 de novembro de 2017

"Meu quintal é maior do que o mundo

Scooby me acordou cedo, como sempre. Aproveitei para fiscalizar cada broto novo no quintal. Dois ou três dias de chuva e o verde já ficou diferente. O pé de maracujá da vizinha avançou pelo muro e já está em flor. A chuva foi pouca, mas a pitangueira, teimosa, floriu. O pé de abacate está carregado, mas sua sombra atrapalha a amoreira, que mesmo assim, fornece uns poucos frutos, disputadíssimos por quem frequenta esse quintal. Minhas perpétuas seguem "sempre-vivas", resistentes ao sol desse início de sertão. O pezinho de alecrim que Seo Miguel plantou pra mim, nem murchou. O piso em volta dessa casa velha, cedeu ao charme da "mulata na sala", uma das flores preferidas de mamãe. Gosto de pensar que as sementes que germinaram são ainda da época em que ela mesma cuidava do seu jardim. Os beija-flores pararam de brigar pelo bebedouro e agora até permitem que os pardais tomem da água. Também, com esse calorão, penso que os bichos ficam mais solidários. Tem gente que só vê aqui, uma casa velha carecendo de reforma e pintura, mas eu acho que há tanto pra ver.
"Meu quintal é maior que o mundo"... 

Amizade dada é amor

Riobaldo amava o amigo Diadorim. Só pensava era nele, sentimento dele voava reto. Diadorim, era sua neblina. Andavam sempre juntos, davam passeios, divergiam do resto do bando, cada um feito por si. Ninguém maldava nem caçoava, por risco de morte. Com Diadorim, Riobaldo aprendeu a pôr reparo no miúdo, a pôr sentido nas pequenas grandezas. As araras no ar parecendo pano azul e vermelho desenrolados, esfiapados no lombo do vento quente. Aprendeu a formosura dos gerais. “Mas ciúme é mais custoso de se sopitar do que o amor.” Riobaldo tinha ciúmes de Diadorim. Tinha ciúmes da confiança que Medeiro Vaz depositava no amigo, e da gratidão e admiração que Diadorim nutria por Joca Ramiro. Sem Diadorim por perto para reprovar, Riobaldo cedeu aos encantos de mulher moça, bonita. Trocaram carinhos feito casamento, esponsal. A moça serviu café coado por ela, refresco, limonada de pêra-do-campo e até presente deu. Uma presa de jacaré para o jagunço transpassar no chapéu contra mordida de cobra. Riobaldo até conheceu mãe da moça, uma adivinhadora de passado e futuro. Diadorim adivinhou o chamego e também se enciumou. “Essa velha Ana Dazuza é que inferna e não se serve...” A dona, segundo ele, não forneceu informações confiáveis ao chefe do bando. “Essa carece de morrer, para não ser leleira...” “Já sei que você esteve com a moça filha dela...” Confessou. Riobaldo entendeu o amor, mas também o ciúme do amigo e zangou-se: “Aí é a intimação? Pois, fizerem, eu saio do meio de vós, pra todo o nunca. Mais tu há de não me ver!...” Diadorim pôs mão em braço de Riobaldo que estremeceu num alvoroço de doçura, mas repeliu, como se pedra pontuda estivesse entre as duas palmas. “Você já paga tão escasso então por Joca Ramiro? Por conta duma bruxa feiticeira, e a má-vida da filha dela, aqui neste comfim de gerais?!” Irado, Riobaldo respondeu: “Dou!” E destilou seu cíume reclamando se todos tinham que honrar Joca Ramiro como se Cristo Nosso Senhor fosse. “Riobaldo, escuta, pois então: Joca Ramiro era o meu pai...” Diadorim tentou explicar a consideração. Riobaldo acalmou o fôlego, enquanto observava os braços bem feitos do amigo, a cara levantada, tão bonito, tão sério. O ouvido retorcia a voz dele, e no fim de tanta exaltação, seu amor inchou, de empapar todas as folhagens, e ele ambicionava de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos braços, beijar, as muitas demais vezes, sempre. Diadorim também se acalmou. “Tem discórdia não, Riobaldo amigo, se acalme, Não é preciso se haver cautela de morte com essa Ana Dazuza.” “Mas, se você algum dia deixar de vir junto, como juro o seguinte: hei de ter a tristeza mortal...” Falou Diadorim, colocando a mão por sobre a do amigo e a retirando em seguida. Riobaldo abraçou Diadorim em pensamento, como as asas de todos os pássaros e pelo nome de Joca Ramiro, e por seu amigo, agora ele matava e morria.

Das belezas sem dono

Riobaldo não gostava de ser jagunço, achava que não tinha nascido pr'aquilo. Não tinha braçagem pra matar, tinha pena de atirar. Diadorim ensinou Riobaldo a apreciar as belezas sem dono: o céu de estrelas em fevereiro, o cheiro forte das flores em abril, as cigarras em bando, o azul vivoso do céu no outono, o vento que não deixa juntar orvalho, o capim macio. Diadorim ensinou Riobaldo a gostar do silêncio, a obedecer quieto. O amigo era uma espécie de conforto na aridez do sertão. Diadorim deixou de ser nome e virou sentimento.

O encontro parte I

O encontro - parte I
Riobaldo menino, sarado de uma doença, teve que cumprir promessa feita pela mãe quando ficasse bom: tirar esmola suficiente para, metade celebrar uma missa, metade pôr dentro de uma cabaça, bem tampada e jogar no Rio São Francisco, para esbarrar no Santuário do Senhor Bom Jesus da Lapa, e quem sabe, um mais necessitado encontrar. Todos os dias, lá ia o menino para a beira do rio, com sua capanguinha, esmolar. Ninguém quase que não passava, dinheiro quase que nunca tinha, mas ele gostava de apreciar o movimento. Lá, pelo terceiro dia, nem não é que viu um outro menino pitando cigarro, encostado numa árvore? Regulado na idade com Riobaldo, usava chapéu-de-couro, menino bonito, com grandes olhos verdes. Puxou prosa com Riobaldo, que mesmo em fé de promessa, ficou envergonhado de estar esmolando e foi logo enrolando sua capanguinha. Ali mesmo, nascia em Riobaldo um prazer pela companhia daquele menino, que ele nunca por ninguém tinha sentido. Uma conversinha adulta e antiga e um desejo de que ele nunca mais fosse embora, e ficasse para sempre naquela parolagem miúda, só seu companheiro amigo desconhecido. O menino comprou um quarto de queijo, um naco de rapadura e convidou Riobaldo para um passeio de canoa, dessas escavadas em pau de árvore. O menino lhe deu a mão para ajudar a descer o barranco, uma mão bonita, macia, quente que deixou Riobaldo vergonhoso e perturbado. Sentaram um de frente para o outro na canoa que se equilibrava mal, balançando no estado do rio. Receoso com o vacilo da canoa, os esmerados olhos verdes luziam um efeito de calma sobre Riobaldo que não sabia nadar. O remador era menino como eles, e embora inseguro, Riobaldo fez questão de demonstrar brio. O rio era o de-Janeiro, de águas claras e o menino chamava a atenção de Riobaldo para as muitas flores subitamente vermelhas e roxas, pois era mês de maio. Periquitos passavam em bando por cima deles, um Nhambú cantou e Riobaldo para sempre jamais deslembraria aquele momento. O menino não se parecia com pessoa nenhuma, um jeito suave e forte, suas roupas sem nódoa e nenhum amarrotamento. Possuía um cheiro bom sem cheiro nenhum, demonstrava segurança de si e embora falasse pouco, como se apreciasse o ar do tempo, com seu jeito sabido parecia também gostar de Riobaldo. A canoinha foi saindo do rio de-Janeiro e entrando no Velho Chico. Riobaldo ansiado pediu pra voltar. O menino nem lhe olhou, porque já estava lhe olhando. "Para que?" perguntou e sorriu. E deu ordem ao canoeiro, com uma só palavra, firme e sem vexame: "Atravessa!" Riobaldo teve medo, medo e vergonha. Apertou os dedos no pau da canoa, fechou os olhos e lembrou que se a canoa virasse, ficaria boiando e era só se apoiar nela, disse. O canoeiro contradisse. "Esta é das que afundam inteiras. É canoa de peroba. Canoa de peroba e pau-d'óleo não sobrenadam". Riobaldo sentiu tontura. Tantas canoas boas no porto, boiantes e tinham escolhido logo aquela de madeira burra. Seu desespero deve ter ficado evidente porque o menino quieto, composto, de frente e olhando para Riobaldo disse: "Carece de ter coragem..." Sentindo já as lágrimas marejarem os olhos, Riobaldo respondeu: "Eu não sei nadar..." O menino sorriu bonito e sereno afiançou: "Eu também não sei."

O encontro parte II

Que é que a gente sente, quando se tem medo?" O menino perguntou. "Você nunca teve medo?" foi o que veio à cabeça de Riobaldo. "Meu pai disse que não se deve de ter", o menino respondeu. A tremura de Riobaldo enchia o menino ainda mais de coragem. E ele pôs a mão sobre a de Riobaldo, um mão de dedos delicados e ficaram assim, um fazendo parte da pele do outro. O menino mandou o canoeiro encostar, ordenou que tomasse conta e seguiu com Riobaldo no meio do capim. Conversando pouco, dividiram queijo e rapadura. Riobaldo acanhado, com vergonha de suas roupas, comparando-as com o menino. Um outro rapaz surgiu de repente, por ali, viu os dois, e maldando disse: "Vocês dois, uê, hem?! Que é que estão fazendo?..."Hem, hem, E eu? Também quero!" Insistiu. Riobaldo amedrontado, falava alto contestando que não estavam fazendo sujice, que estavam era espreitando as distâncias do rio e o parado das coisas. E o menino, sem demonstrar espanto, com seu sorriso, permaneceu sentado e imitando voz de mulher, disse ao rapaz: "Você, meu nego? Está certo, chega aqui..." E o rapaz, satisfeito, sentou juntinho. Imediatamente, pulou pra trás, deu um grito e varou o mato em fuga. Sem aluir do lugar, o menino limpava a lâmina de sua faquinha no capim, com todo capricho e a guardou na bainha dizendo: "Quicé que corta..." Riobaldo se apavarou ainda mais, com medo do rapaz buscar companheiros, foice, garrucha e voltar. Quis sair logo dali, ir embora. "Carece de ter coragem. Carece de ter muita coragem", o menino respondeu, gentil. E vagarozinho, sem olhar pra trás, sem medo, andou até a canoa. "Você é valente, sempre?" Riobaldo perguntou. "Sou diferente de todo mundo", o menino respondeu. E Riobaldo não tinha medo mais.
"Muita coisa importante falta nome".

Inveja

Quase tive um troço, lendo, agora, no "Grande Sertão: Veredas", o reencontro de Riobaldo com o menino. Agora rapaz, o Reinaldo. Lendo o cuidado e o carinho com que os jagunços tratavam os animais - cavalo, burros e mulas - lembrei de um prosa que tive com meu irmão, há alguns anos, logo que voltei para Baldim. Ele falava da época que nosso pai foi meeiro de grande fazendeiro. A pobreza em casa era muita. Cinco filhos. E meu irmão me contou:
"Sabe do que eu tinha inveja? Eu tinha inveja, inveja mesmo, era do filho do fazendeiro, que tinha um cavalinho todo arreado, com a selinha, ele todo paramentado, com chapéu e uma bota que ia até o joelho. Ele sempre passava com os peões da fazenda, todo empinado, tocando umas cem cabeças de gado. Cada qual num cavalo mais bonito que o outro. E nós... E nosso único cavalo... Mirradinho... O Bainho..."
Por isso Guimarães Rosa provoca tanto arcoçôo em mim. Seus personagens parecem saídos de dentro da minha casa. 

Grande Sertão: Veredas

As mais de trinta páginas narrando o julgamento de Zé Bebelo, ocorrido no sertão dos gerais, me prendeu ao livro. Prometi que o largaria assim que acontecesse o desfecho. Que nada! Em seguida, veio um período de calmaria para os jagunços, mas de dúvidas e angústias para Riobaldo, que se convenceu que o que sentia por Diadorim era "amor mesmo, mal encoberto em amizade". Seguiram páginas e páginas de um Riobaldo, desta vez, não em guerra com outro bando, mas com seus sentimentos. Ainda fruindo as dezenas de páginas onde o jagunço admite para si o que sente pelo amigo, e chegou a notícia da morte de Joca Ramiro. 
Fechei o livro. Fui buscar um ar. 
Benz'ó'deus!

Cerrado

O cerrado é tão bonito. Com a chegada das águas o mato está no rebroto. Os ipês amarelos deram lugar aos flamboyants que estão tingindo tudo de vermelho. As flores dos pequizeiros caíram de um dia pro outro e já é possível ver pequenos frutos. Já dá pra colher mangaba e as gabirobas estão madurando. A terra das rocinhas já está preparada, esperando as sementes. E as chuvas apagaram a poeira do caminho. Fiz o trajeto Baldim/BH dividida entre a leitura de "Grande Sertão" e o deslumbre com a paisagem que já sei de cor.

Delicadeza



Quando decidi ser mãe, eu tinha muita curiosidade em sentir as dores do parto. Eu queria experenciar no meu corpo se era uma dor insuportável ou não. Me preparei para o parto natural. Quando chegou a hora do menino vir ao mundo e as dores surgiram, me surpreendia os intervalos que o corpo dava entre as contrações. Eu conseguia respirar e me recompor para a dor que voltava, em seguida. "Grande Sertão" me remeteu para aquele momento. É que as descrições das batalhas entre os bandos de jagunços são muito cruéis. O autor não tem piedade do leitor e oferece um retrato realista de um Brasil profundo onde o Estado não chega e os sujeitos precisam criar, eles próprios, os seus sistemas de justiça. Mas, entre uma guerra e outra, Guimarães oferece momentos de ternura, onde o leitor consegue respirar. É assim nas partes onde Riobaldo conta para seu interlocutor sobre o amor que sente por Diadorim. Depois de dias encurralados numa fazenda abandonada no interior das Gerais, numa guerra que parecia não ter fim, num momento de pausa, entre um combate e outro, o relato de uma singeleza. Riobaldo carregava há tempos, dentro de um saquinho, costurado no forro de uma bolsa menorzinha, dentro da sua mochila, uma pedra de safira enrolada em algodão, trazida de Arassuaí, que ficou esperando, guardada em cautela, uma ocasião sensata para entregar o presente. "Diadorim, um mimo eu tenho, para você destinado, e de que nunca fiz menção..." Riobaldo desfez as costuras na mochila com a ponta de uma faca e entregou, em silêncio, a pedra ao amigo. "Diadorim entrefez o pra-trás de uma boa surpresa, e sem querer parou aberto com os lábios da boca, enquanto que os olhos e olhos remiravam a pedra-de-safira no covo de suas mãos."

Dia dos mortos

Hoje é dia de contrição, de falar baixo, de pisar leve, de dizer pouco. Dia de acender uma vela em memória, porque para lembrar e sermos lembrados é que fomos feitos. Hoje é dia de celebrar a memória dos meus mortos.
A primeira morte que senti foi a de Dindinha. Dindinha era irmã de vovó. Na infância, era ela quem lavava os meus pés com água morna, numa bacia esmaltada, todos os dias, antes d'eu deitar. Depois, cantava e fazia cafuné até eu dormir. Quando ela morreu foi muito triste. Minha avó não andava devido a vários derrames e foi preciso levar o caixão dentro do quarto para ela se despedir da irmã. Eu devia ter uns nove anos de idade, mas a cena ficou pra sempre gravada em mim.
Anos depois, foi a vez da vovó partir. Mas antes dela ir, eu a flagrei, muitas vezes, chorando. Perguntava por que e ela com sua fala enrolada, a boca torta pelos derrames tantas vezes repetidos, falava entre lágrimas: "tenho medo de morrer e ocê deixar o Izé sozinho". Não deixei. O receio dela pesava como chumbo em meu coração. Fiquei com vovô até a sua morte, embora meu desejo fosse morar em Belo Horizonte com minha mãe e irmãos que já tinham vindo em busca de melhores condições de vida. Numa noite, eu já dormindo em casa de mamãe, porque sempre vivi dividida entre as duas casas, me chamaram dizendo que vovó estava muito mal. Não lembro quem me levou. Quando cheguei, a casa estava cheia de gente. Vovô sentado na beira da cama, segurando uma vela na mão da vovó. Ela tinha os olhos abertos e olhou para o vovô e pra mim, várias vezes, como que se despedindo. Vovô chorava muito. Ainda chorou por semanas. Eu não sabia o que fazer para consolá-lo, e para distrai-lo, pedi que desenhasse pra mim. Ele fez muitos desenhos, não sei que fim levaram, uma pena não ter guardado.
Depois foi o Jardel, meu sobrinho de quatro anos. Morreu atropelado quando brincava numa rua perto da casa da mamãe. Uma tristeza terrível. Como assim uma criança morrer? Minha irmã foi em Baldim me avisar. Lembro da gente vindo de fusquinha do Culita, que foi nos buscar. O caminho estava deslumbrante com os ipês amarelos floridos, era final de agosto. Nunca esqueci aquela imagem.
Quando eu tinha quatorze anos foi vovô quem partiu. Ele, que assava pra mim, pão da padaria velha com margarina, na chapa do fogão à lenha. Que me levava e buscava na escola. Lembro que dei as suas varas de pescar para o meu amigo Eduardo. As roupas doamos para o asilo.
Papai foi alguns anos depois. O coração enorme por conta da doença de chagas parou de bater. Ele gostava tanto de viver. Lembro dele tentando aprender a tocar cavaquinho para acompanhar a folia de reis. Reformando caixas de madeira para levar legumes e frutas para vender na CEASA. De novo, minha irmã foi me chamar. Dessa vez, eu já morava em Belo Horizonte e alugamos uma Kombi que fez o caminho de volta. Era dezembro, chovia.
Mamãe se foi há 7 anos. É a que mais sinto falta. Quantas vezes, sentadas na mesa da cozinha, em Baldim, ouvia, contrariada, suas 'carteiradas' desconstruindo o amor romântico, uma bobagem, segundo ela. Eu, sofrendo por amor, ouvia ela dizer: "Cê gosta nada, minha filha! Isso é cisma! Você cismou com essa pessoa, só isso! Daqui a pouco passa." E passava. Às vezes demorava um pouco, mas sempre passava. Mamãe faz muita falta. Mamãe que não criou nenhuma de suas filhas para o casamento. "Você precisa estudar, trabalhar, ter sua casa, seu carro, suas coisas, não depender de ninguém", incansável, ela repetia, repetia... Como gostaria de ouvir suas histórias, novamente. Histórias contadas, recontadas e trescontadas, que às vezes, nos deixavam impacientes. Quanta sabedoria, quanto aprendizado.
Hoje, vou acender uma vela para reverenciar a memória dos meus mortos. Como mamãe fazia para o nosso anjo da guarda, para abertura dos nossos caminhos. Hoje, vou falar baixo, pisar leve, dizer pouco. Porque para lembrar e sermos lembrados é que fomos feitos.

Grande Sertão: Veredas

Estou aqui, com o livro "Cartas perto do coração" de correspondências trocadas entre Clarice Lispector e Fernando Sabino. Em 6 de maio de 1946, Fernando escreve a Clarice falando de Guimarães Rosa: "Outro dia saiu um novo livro que está fazendo furor, é o termo. Vocês até possivelmente já ouviram falar, pois é do Chefe do Gabinete do Itamarati, o Guimarães Rosa. Chama-se Sagarana, livro de contos, muito bem escrito, misto de Monteiro Lobato, Cyro dos Anjos, Euclides da Cunha e Mário de Andrade, entenda se possível. Todo mundo está deslumbrado, Álvaro Lins "descobriu-o" e "consagrou-o". Gostei do que li, é realmente uma perfeição de linguagem e expressões do interior de Minas, os diálogos principalmente muito bons, mas não é o meu gênero e penso que você também não gostaria."
Dez anos depois, em carta de julho de 1956, Fernando escreve outra vez sobre Guimarães: "O melhor de tudo, porém, é o livro do Guimarães Rosa, não o Corpo de Baile, que não li, mas o Grande Sertão - Veredas, que estou na metade e é obra de gênio, não deixo por menos. Adeus, literatura nordestina de cangaço, zélins, gracilianos e bagaceiras: o homem é um monstro para escrever sobre jagunços do interior de Minas e com uma linguagem que nem Gil Vicente, nem ninguém. Meu entusiasmo é de quem não terminou a leitura, pode ser que não se sustente, mas duvido. Se recebeu, leia - senão, me diga que mando. No princípio, dez primeiras páginas, é meio assim-assim, custa um pouco a engrenar, mas de repente a gente se embala no ritmo dele e não larga mais."
Dois meses depois, em carta de setembro, Fernando insiste com Clarice: "Você não falou nada sobre o Guimarães Rosa do Grande Sertão - leu? Continuo achando apenas o maior romance já publicado no Brasil - mas isso também é uma longa conversa."
No mês seguinte, em carta de outubro, Clarice responde: "Não, ainda não li o livro do Guimarães Rosa, mas vou pedir lá em casa que me mandem."
E em dezembro de 1956, Clarice envia uma carta ao amigo, toda ela falando de Grande Sertão: Fernando, estou lendo o livro de Guimarães Rosa, e não posso deixar de escrever a você. Nunca vi coisa assim! É a coisa mais linda dos últimos tempos."...

Carece de ter coragem

Riobaldo pagando promessa de uma cura de doença, ia todos os dias, esmolar na beira do rio de Janeiro. Dinheiro quase não aparecia, mas ele apreciava ficar observando o movimento. Lá pelo terceiro ou quarto dia um menino apareceu, regulado em idade com ele e o convidou para a travessia. Reinaldo deu a mão a Riobaldo para ajudá-lo a descer o barranco e entraram na canoinha, uma canoinha de nada, bamba, que se equilibrava mal, e balançava no estado do rio. Riobaldo cheio de medo, inseguro, sem saber nadar, mas com um enorme prazer daquela companhia, que nunca por ninguém não tinha sentido. Ficou ali, contemplando os olhos verdes do menino, dividido entre o receio e o gostar imenso de ficar perto. À medida que remavam em direção ao rio São Francisco, o medo de Riobaldo aumentava, mas a segurança que o menino lhe transmitia era imensa. Riobaldo teve medo, muito medo, medo e vergonha, mas enfrentou o bambalango das águas e realizou a travessia. Carece de ter coragem, carece de ter muita coragem.

Travessia

A cena, ainda no começo do livro, do encontro de Riobaldo e Reinaldo, ainda meninos, à beira do [rio] de Janeiro é emblemática de tudo que virá a seguir. Riobaldo gostava de esmolar na beira do rio, mas tinha muito receio de descer o barranco. No dia que o menino aparece e o convida a entrar numa canoinha de nada [como na Terceira Margem] é ele que dá a mão para ajudar Riobaldo a descer o barranco. Durante a travessia, Riobaldo que não sabia nadar, fica apavorado com o bangobalango da canoinha que saía das águas calmas do de Janeiro para entrar nas turbulentas do São Francisco. O menino então, pousa a sua mão sobre a de Riobaldo e diz: "carece de ter coragem, carece de ter muita coragem". Riobaldo, não só é convidado por Diadorim, como ele fica o tempo todo ao seu lado durante a travessia. Aquele amor em segredo, em silêncio, mas que cuida um do outro, sempre preocupados com a segurança do amigo. Fiquei pensando nos Diadorins que aparecem na vida da gente e nos ajudam a fazer a travessia. Uma travessia para a terceira margem, que não se alcança nunca porque ela é existencial.

Carece de ter coragem

Este final de semana foi o menino que veio e não eu quem fui pra Baldim. Acordei no domingo e o vi, enorme, maior do que a cama, dormindo tranquilo. Fiquei admirando sua beleza e pensando no tanto que caminhamos até chegar aqui. Quinze anos se passaram desde o dia em que ele pousou os olhinhos em mim pela primeira vez. Naquele final de domingo, dia de jogo do Atlético e Cruzeiro no Independência, eu só sabia repetir: "Ele é lindo, ele é lindo!" Era 21 de abril de 2002, e na Maternidade Santa Fé, os estampidos dos fogos do jogo se confundiam com o choro de quem enxergava o mundo pela primeira vez. Ontem, quando o vi dormindo sereno, fiquei mentalmente repetindo a mesma frase: "Como ele é lindo, como ele é lindo!"
Passamos o final de semana assim: eu, insegura e ansiosa com a prova que se avizinha e ele me dando conselhos. Ele é assim desde pequeno. "Para de reclamar, mãe. Reclamar não resolve. Veja o lado bom das coisas. Sempre tem um." E a gente briga, ri, discute, se diverte. No sábado, ele perdeu o ônibus porque na hora de sair ficamos discutindo feminismo. Quem vê, pensa que estamos brigando. Nosso lado "soares" se manifesta, falamos alto, os olhos arregalados. Queria tanto falar com doçura, como a mãe do poema de Adélia, num domingo sem cansaço.
Ontem, enquanto esperávamos o táxi coletivo que o levaria para Baldim, contei pra ele, [mas na verdade, queria era reafirmar para mim mesma] do encontro do menino Riobaldo com o menino Reinaldo na beira do "de Janeiro". Falei do medo de Riobaldo em descer o barranco e do convite do menino para a travessia. Era uma canoinha de nada que balangava nas águas tranquilas do "de Janeiro", o que deixou Riobaldo apavorado, só de pensar o que aconteceria quando entrassem nas águas turbulentas do São Francisco. Riobaldo ansiado querendo voltar. Reinaldo deu ordem ao canoeiro, com uma só palavra, firme e sem vexame: "Atravessa!" Riobaldo apertou os dedos no pau da canoa, fechou os olhos e lembrou que se a canoa virasse, ficaria boiando e era só se apoiar nela, disse. O canoeiro contradisse. "Esta é das que afundam inteiras. É canoa de peroba. Canoa de peroba e pau-d'óleo não sobrenadam". Riobaldo sentiu tontura. Tantas canoas boas no porto, boiantes e tinham escolhido logo aquela de madeira burra. Seu desespero deve ter ficado evidente porque o menino quieto, composto, de frente e olhando para Riobaldo disse: "Carece de ter coragem..." Sentindo já as lágrimas marejarem os olhos, Riobaldo respondeu: "Eu não sei nadar..." O menino sorriu bonito e sereno afiançou: "Eu também não sei."
João, ao ouvir a estória, disse: "Que foda isso, mãe!" Ele que há algum tempo descobriu as metáforas e se encantou por elas. O táxi chegou em seguida e ele partiu. À noite, trocando mensagens sobre as tarefas da semana, lembrei pra ele, mas reafirmando pra mim mesma: "Carece de ter coragem". E ele respondeu com um coração, desses que ficam pulsando..

Assis Valente

Antes de sairmos para o show do Racionais, o menino sugeriu, para já irmos entrando no clima, que assistíssemos ao clipe "Você me deve" ao vivo. A letra fala de alguém que sai à noite em SP, não para badalar, mas para correr atrás do que é seu. "Você me deve" é uma assertiva que me lembra "O cobrador" de Rubem Fonseca. Um cara que cansado de tanto pagar, resolve um dia sair pra comprar: "Estão me devendo xarope, meia, cinema, filé mignon e bu***a"... É um conto que eu adoro, o menino diz que não gosta, acha muito pesado. O segundo verso do rap "Você me deve" fala dos pretos que com seu trabalho conseguem dinheiro. A música traz uma referência à "Camisa listrada" de Assis Valente. Quando digo que o rap me ajuda na educação do menino, é disso que eu falo. Falei pra ele que era um samba famoso. Ouvimos juntos Elza Soares cantando, num arranjo maravilhoso, acompanhada de Violoncelo. O menino fazendo caras e bocas de aprovação, tipo, que música foda. Depois fomos pesquisar sobre Assis Valente, um artista incrível que se suicidou devido a dívidas. São tantas as referências legais nas letras de rap, que penso que o menino aprende mais com as músicas do que com as aulas, na escola. Como diz o Emicida, nossos livros de história foram os discos.

Racionais MC's

Ainda sobre ontem à noite...
É tão bom estar entre os nossos. Não precisar, por exemplo, explicar racismo porque ali todo mundo já tomou um baculejo ou um enquadro da polícia. Tem a ver com um sentimento de pertença e pertença tem a ver com identificação, identidade. Era um público majoritariamente negro e da quebrada. E, apesar de serem jovens em sua maioria, a diferença de idade não me causou nenhum estranhamento. Quando a gente faz a travessia da consciência racial, um processo que, às vezes, leva anos, não tem mais volta. E eu penso que na minha travessia, as letras de rap foram fundamentais na construção da minha subjetividade negra e periférica. Me dá uma alegria imensa saber que ela foi se construindo junto com a do menino. Muito da consciência racial e social que ele tem hoje, foi construída ouvindo rap. Ontem, na Serraria Souza Pinto, onde tantas vezes eu o levei pequenininho, como no evento "Mil Tambores", que ele tocou com sua mini-alfaia. Foram tantos os shows que ele curtiu enganchado no meu pescoço, que nem sei mais precisar. Ontem, ele preocupado em me proteger e proteger a tia, me fez lembrar de como foi importante, que mesmo sob protesto, durante anos, eu segurasse firme em sua mão na hora de atravessar a rua. Ou carregasse a matulinha com papinha, água, suco e fraldas para tantos eventos legais que nós fomos. Teve um momento que um rapaz enorme se postou bem na minha frente e o menino o cutucou e apontou pra mim, como a dizer, "cara, não tô acreditando que você vai ficar na frente dela". E o rapaz meio constrangido se afastou. O show de ontem foi por tanto tempo esperado, que nem sei... Quando ele tinha 12 anos não pudemos ir, pois mesmo acompanhado dos pais, só maiores de 14. Em outras oportunidades não tínhamos grana e ontem, enfim, o sonho foi realizado. É tanto preconceito que envolve a cultura hip hop que eu duvido que essas pessoas tenham alguma vez parado para ouvir as letras dos raps. Muitos falam do respeito aos mais velhos, da necessidade de ouvir os pais, reverenciam as mães que criam seus filhos sozinhas, e como diz o menino, "é a realidade na quebrada, né, mãe?" São letras que trabalham a autoestima de uma galera preta que não tem grana para frequentar terapia. Um orgulho de ser da quebrada que é reforçado a cada letra que ouvimos. E a consciência de que ser pobre não tem nada a ver com uma questão individual ou com a falácia da meritocracia, mas com um contexto de quase quatro séculos de escravidão e uma abolição que nunca se efetivou de fato. Um país que embora tenha sido construído com sangue e suor do povo negro é um dos mais racistas do mundo. Eu, mesmo não torcendo para nenhum time de futebol me emocionei com a festa dos 33 anos da Galoucura. Se engana quem acha que é só sobre futebol. Tem a ver com pertencimento, com coletivo, como dizia uma das faixas que enfeitava o salão, uma bandeira não chega nem se sustenta sozinha no estádio, precisa de muitas mãos. E, embora já estivéssemos cansados pela espera de cerca de duas horas, foi lindo ver a primeira mulher da torcida ser homenageada, a cozinheira (em memória) que nas viagens para outras lugares era a responsável pela comida dos torcedores que iam no ônibus. Foi lindo ver a velha guarda contando suas histórias de jogos de décadas atrás. Foi lindo ver o Leonardo Péricles do "Movimento de luta nos bairros, vilas e favelas" subir ao palco e falar das semelhanças entre os moradores das ocupações urbanas que lutam pelo direito à moradia e os milhares de torcedores excluídos dos estádio gentrificados durante a copa de 2014. Foi mágico quando o letreiro em vermelho escrito Racionais se acendeu e os quatro pretos mais perigosos do Brasil subiram ao palco. Eu, que descobri o rap tardiamente, quando por volta dos 7 anos o menino chegou em casa cantando negro drama, resolvi prestar atenção no que ele estava ouvindo e cantando. Me converti ali. Ali, iniciei a minha travessia. Ver o negro protagonista no palco, sujeito de sua própria história e servindo de referência para outros milhares de negros me encheu de esperança. Ver o RZO cantando junto, todos, com exceção de Mano Brown que vestia branco, vestidos de preto por dentro e por fora, como diz a letra. KL Jay concentrado em suas pick'ups, Ice Blue com seus corpo esguio e longos dreads, Edi Rock com seu cabelo estiloso e suas letras ácidas e Mano Brown com seu corpo e mente malhados, com uma tatuagem no braço que me pareceu o mapa da África. Um intelectual da quebrada que tem teses e dissertações escritas sobre sua trajetória. Tudo isso, sem falar no palhaço que sempre acompanha o grupo, que com sua máscara e seus passos de break revestiu o show de uma áurea de realismo mágico. Nem o som ruim tirou a magia do espetáculo. Das coisas mais legais que eu vivo na criação desse menino são esses momentos de descoberta e fruição que a gente vive junto, onde esquecemos todos os perrrengues pelos quais já passamos e conseguimos até fazer piada das nossas pequenas tragédias. Quando chegamos em casa, eu confessei a ele o baita orgulho que eu sinto, poder dividir com ele momentos tão emocionantes como o de ontem. Eu fico imaginando a bomba que foi na década de 1990 quando Racionais estourou na quebrada, numa época sem redes sociais, sem auxílio dos meios de comunicação hegemônicos, dos quais o grupo tem imensa antipatia. Onde a circulação das músicas acontecia em fitas cassetes, levando meses de um bairro a outro. Os quatro pretos mais perigosos do Brasil, porque, como diz a letra, entram pelo rádio e tomam os filhos, até mesmo dos playboys. "Seu filho quer ser preto, ah, que ironia"... O show foi na verdade uma grande celebração, um grande ritual de um povo que vive à margem, mas que dependendo de como se olha, são centro. Ontem, experenciando no meu corpo aquela eferverscência coletiva eu fiquei pensando que chegará o dia que o povo preto vai se convencer do valor e da força que ele tem e vai descer o morro e não será num dia de carnaval. E eu peço às deusas que eu esteja viva, ainda que velhinha, para poder participar desse momento, porque como diz a letra, "o bagulho é doido e o processo é lento", mas ele já começou. E depois que entramos na canoinha e iniciamos a travessia para a terceira margem, não tem mais volta. Nenhum golpe consegue barrar esse processo. Nenhum! O hip hop é foda!

"Saudade é uma espécie de velhice

Cerca de dez dias longe da casa velha de janela azul e parece que são dez anos. O milho já deve estar enorme e com a chuva que caiu o manacá já deve ter florido. As acerolas temporãs devem ter se perdido porque os pardais e sabiás não consomem na proporção que a natureza produz. As sementinhas vindas da Alemanha germinaram e eu não estou lá pra monitorar. A mudinha de orégano que plantei já deve estar firme e o capim cidreira que meu irmão plantou pra mim já deve estar cheio de folhas. Não pude fiscalizar o trabalho de colocação de terra que o menino fez nos canteiros novos. Será que ficou bom? O bebedouro dos beija-flores deve estar sem água, porque ninguém lembra de colocar quando eu não estou lá. A grama do quintal já deve estar reclamando corte. As estórias do meu irmão, contadas na mesa da cozinha, quando ele chega cansado da lida no campo, estão se acumulando. Isso sem falar nas saudades de Fridinha (que deve estar sentindo minha falta) e do Scooby. Os tocos que meu irmão trouxe do cerrado para o "jardim mandala" que estamos planejando estão esperando as flores. Das conversas com o menino nem vou falar, porque remediamos com os áudios no whatsapp. Mas qu'é'de a 'ave-maria" na hora do "angelus"? Daí, lembro dos conselhos do menino: "Foco, mãe! foco!" "Encare a prova como se fosse seu melhor jogo, independente do nível dos participantes". E procuro sossegar meu coração. Não, não é de um lugar geográfico que eu falo, é existencial. É meu Mutum, minha terceira margem, minha patriazinha.

Travessia

É só uma canoinha que a gente tem, uma canoinha de nada. E nem é de madeira boa, é aquela que se virar afunda. O bangobalango do rio é imenso porque as águas são turbulentas. E mesmo sem saber nadar temos que fazer a travessia.

Prego na parede

Tenho um sonho recorrente há anos: sonho que não tenho casa e alguém me acolhe. Nas duas últimas noites sonhei, novamente. O cenário muda, mas o sonho é sempre o mesmo. Não tenho onde morar e alguém me acolhe. Já combinei com o menino um ritual para o dia que tivermos nossa casa. Já moramos em tantos lugares que não podíamos furar a parede, que quando tivermos um cantinho nosso, vamos fazer o ritual do prego. Eu vou bater um prego enorme na parede da sala, em lugar bem visível e vai ficar lá, marcando o nosso espaço. Ele é mais discreto, quer só colar um pôster do Tupac.

Viver não cabe no lattes

Esta semana, enquanto atualizava o meu currículo Lattes, fiquei pensando no monte de coisa que eu já fiz e não está lá, e que apesar de não contar pontos nos concursos, contribuíram, e muito, para eu ser quem sou. Meu primeiro trabalho numa padaria como balconista. Acordava às 5h da manhã para abrir o estabelecimento e carregava cestos enormes de pães quentes para abastecer as vitrines. As caixas de saquinhos de leite, pesadíssimas, que empurrava, ajudaram a moldar os meus braços. As cuecas, calcinhas e tênis dos patrões que lavei quando fui empregada doméstica. As faxinas que fiz no período que, mesmo com pós-graduação, fiquei desempregada. Os banheiros que lavei numa loja de departamentos no baixo belô quando fui serviços gerais. As crianças que dei banho e fiz dormir quando fui educadora infantil na Prefeitura de BH. Os meninos e meninas que alfabetizei numa escola em Nova Contagem, onde pegava três ônibus e levava três horas pra chegar e fiquei seis meses sem receber salário, porque o prefeito do PSDB, Ademir Lucas, não pagava o funcionalismo. Os vômitos que limpei na escola infantil onde fui servente. O medo que passei quando, telefonista na Telemig, eu largava serviço meia noite e meia e tinha que esperar ônibus no centro da cidade, sozinha, até quase duas da manhã, fugindo das baratas que subiam pelas minhas pernas. O filho que criei sozinha, e que aos 15 anos curte Cartola e Elza Soares. Isso tinha que constar no meu Lattes, não tinha?

O sertão está em toda parte

Nos meus 51 anos de vida, a leitura de "Grande Sertão: Veredas" e o show dos "Racionais MC's" foram duas das coisas mais incríveis que me aconteceram nos últimos tempos. E eu fico aqui, pensando com os meus botões, que Riobaldo e Mano Brown têm muito em comum: dois intelectuais da quebrada, indignados com a injustiça social, pensando questões existenciais. Afinal, as periferias são sertões onde o Estado está ausente e o povo se vira como pode. No início dos anos 2000, meus alunos já falavam pra eu ouvir Racionais, que suas letras discutiam as mesmas questões das nossas aulas de Sociologia. Não me conformo de não ter parado para escutar naquela época, quando o grupo explodia na quebrada como uma bomba. Só fui ouvir, anos depois, quando por volta dos 7/8 anos o menino chegou em casa cantando "Negro Drama". Nunca mais parei... A linguagem do Sertão é tão parecida com a da Quebrada. O Sertão está mesmo em toda parte

Tá tudo lá

Daí que, depois de mais de 20 dias fora, você chega em casa. Nem se livra direito das malas, os cachorros pulando em você e o menino diz: "mãe, senta aqui que eu preciso te mostrar um rap". Deixei as malas pelo chão, Scooby pulando em mim, Fridinha pedindo carinho e o menino me obrigando a sentar. "Prest'atenção, mãe!" Exigiu. O clip, lançado hoje, começa com um jovem pegando um skate e tentando abrir algumas portas fechadas. O refrão diz: "eu só estou aqui porque minha mãe ainda paga aluguel". O rap se chama Sk8 [skate] do Matheus e é do Froid, um rapper foda, da nova geração. "Essa letra é muito nossa vida, mãe!". É uma crônica de um menino que deseja mil coisas e que a mãe não diz não, só diz: "entendeu?" quando o adolescente "só queria um skate igual ao do Matheus". E a letra continua: "Aluguel é um caminhão de frustrante/Bastante mudança/Mas me deu o direito de mudar/Por dentro ou pra algo distante ". O menino me cutucando com cara de quem diz, "mãe, é muito a gente". Em 15 anos ele já morou em 5 cidades, passou por 10 escolas e 10 casas diferentes. A letra continua falando dos desejos do menino de 11 anos que queria carrinho "Hot Wheels" e boneco "Max Steel", mas a mãe "é tipo engole o choro e nenhum pio". Eu disse que nós, na verdade, somos só mais uma das milhões de família monoparentais, chefiadas por mulheres que criam seus filhos sozinhas. Quando eu digo que o hip hop me ajuda na educação desse menino, é disso que eu tô falando. Tá tudo lá

Fácil não é...

Foi na Praça do Comércio, nas últimas semanas em Lisboa, onde fui fazer o meu estágio doutoral sanduíche, conversando com minha amiga, Andrea Moreno, que pensei pela primeira vez na ideia de vir para Baldim escrever a tese. Eu e o menino não tínhamos mais casa, nem móveis, só duas malas, alguns livros e umas poucas roupas, a maioria ganhadas de segunda mão. É verdade que tínhamos acumulado muito, mas eram coisas que não cabiam em malas. Tive que convencer o menino, que não gostou nem um pouco da ideia de sair de uma metrópole mundial e vir para uma cidade no interior de Minas com cerca de 8 mil habitantes. Mas viemos. Chegamos em julho de 2014. A opção por Baldim foi porque sem emprego, vivendo ainda de bolsa, não tinha como montar uma casa que ainda seria provisória. Não foi uma decisão fácil. A casa não é só minha, é a única herança material deixada por meus pais. Uma casa velha, carecendo de reforma. Pro menino foi mais difícil ainda, mas morar perto do pai, dos irmãos, da avó paterna pesou na balança e rapidamente ele fez amigos preciosos por aqui. E claro, viveu amores. Desde então, vamos levando, fazendo um esforço enorme para ressignificar. Morar aqui não é meu sonho de consumo. Sonho com o dia que teremos um cantinho só nosso, com um quarto e um armário para o menino, onde ele possa colar seu pôster do Tupac e tirar suas coisas das caixas improvisadas em armário. Eu, sonho com estantes para os meus livros espalhados aqui, em caixas de papelão; na casa da minha amiga Mariza, e da minha irmã Luia; alguns estão comigo na quitinete onde moro. Meus livros são meus bens mais preciosos. Quando cheguei aqui, o primeiro a me receber no portão foi Scooby. Eu nunca tinha convivido com cachorro. Enquanto escrevia minha tese, ele sempre por perto, sem incomodar, parece que compreendia. Depois, chegou Fridinha, uma cachorrinha de rua, toda perebenta, sempre maltratada pelas pessoas. Quando trocamos olhares, me converti a ela, que sempre vinha em busca de água e comida, até que um dia não foi mais embora. Hoje, até quando vou ao banheiro ela fica na porta me esperando. Agora, além das duas malas e dos livros, temos também uma cachorra. Cães dão trabalho? Muito! O cocô, o pelo espalhado pela casa, o cheiro que fica em tudo é o de menos. Difícil é quando chegam machucados da rua. Scooby já chegou sem parte da orelha e uma vez quase morreu de pneumonia. Sofri junto como nunca imaginei sofrer. Fridinha tem um problema de pele que não consigo dar jeito. Pra mim, eu compro shampoo de cinco reais, o dela custa mais de trinta e é o que ajuda em suas feridas pelo corpo. Por isso ela foi batizada de Frida. Eu tive que aprender a conviver e a gostar desses bichos. É um afeto que eu não conhecia. Assim, como aprendi a ressignificar a volta pr'aqui. Plantar milho, apreciar os passarinhos, caminhar pelo cerrado, foram formas de ressignificação de algo que parecia muito difícil. Por outro lado, estar aqui me levou para um lugar de memória, uma terceira margem, um lugar existencial que é onde recarrego as minhas energias com a coragem que a vida nos exige, sempre. Fácil não é, mas ninguém disse que seria, não é mesmo