sexta-feira, 31 de março de 2017

Terceirização

Eu trabalho desde os 14 anos. Há 33 anos assinei minha carteira de trabalho pela primeira vez. Antes disso, trabalhei muito em situação precária, como doméstica e balconista, mas sem carteira assinada. Depois fui, por anos, telefonista terceirizada na Telemig. Conap, Conset, Setesp, Têmporis foram algumas das empresas que me contrataram. A cada 3 meses tinha o contrato rescindido e era contratada por outra. Fiquei anos sem férias, vivendo a angústia se renovariam o contrato ou não. Depois, já com curso superior fui ser professora designada na rede pública estadual, também sem benefício nenhum. No mestrado fui professora substituta numa época que o salário era cerca de 300 reais. Com o término do doutorado, há cerca de 1 ano, me preparo para um concurso que pode não acontecer mais. Estou como a mulher do conto da Adélia, "tou com medo de apanhar tristeza, encardir de melancolia. Sei que sofrimento neste mundo é fazenda de todos. Mas tendo Justiça, meu Deus, ao menos miséria some, ao menos ninguém vai ter susto de ser preso à toa, de apanhar sem poder dizer essa boca é minha, explicar, de pé feito um homem, se tem culpa ou não." Mas cadê justiça? Como a narradora do conto, eu não sei o que fazer, nem como ajudar. A impotência toma conta de mim. Como no conto, tô me sentido como a galinha na chuva. Aquele passo bobo, aquele pescoço esticado pra frente, olha aqui, olha acolá, encharcada na friagem e na lama, sem resolver nada e, pior que tudo, sem saber de nada. Há 36 anos no mercado de trabalho e sem perspectivas de melhorar...Fazemos o quê, gente? Além de reclamar no facebook...

Esperança

Ontem, eu acordei pra baixo. Na noite anterior, depois de uma aula maravilhosa com uma turma incrível, a notícia da aprovação do PL da terceirização me derrubou. À noite, fui dar aula desanimada, coisa que rarissimamente acontece. Até xs alunxs que me conheceram há pouquíssimo tempo, perceberam a ausência do entusiasmo que eu tinha apresentado um dia antes. Mas uma esperança pousou ao meu lado. Não a concreta, o bichinho verde; a abstrata. 24 anos, mãe de dois filhos, trabalhadora desde os 16, bolsista por renda, escola pública e raça/etnia e também da FUMP - Fundação Universitária Mendes Pimentel, pioneira em ações afirmativas na UFMG. Com os olhos marejados, ela disse: "Professora, eu estou nessa universidade há 5 anos e há 5 anos eu me emociono a cada dia que eu entro neste campus." Eu fiquei quietinha, sem mover nenhum músculo para não espantar a esperança. Comovida, me emocionei porque esse também é o meu sentimento cada vez que eu entro na universidade: "estou dando aulas na UFMG!" Eu penso sempre que atravesso a faixa de pedestres, em frente ao portão principal, e a mesma emoção do primeiro dia de aula, quando atravessei o campus a caminho da FAFICH, em março de 1991, me invade. Para muitxs de nós, frequentar a universidade, seja como alunxs ou professorxs, é também um gesto simbólico poderosíssimo. E eu penso, que nestes anos que pretxs, pobres, indígenas ingressaram no curso superior, alguma coisa muito forte aconteceu e nenhum golpe vai conseguir barrar isso não. Facilitemos o caminho da esperança.

"A coisa à volta do seu pescoço"

Acordei com o som das patinhas da Frida na porta. Levantei, abri para ela entrar e voltei para cama. Fridinha se enrodilhou perto de mim e peguei "A coisa à volta do teu pescoço" da Chimamanda para ler o último conto que faltava: "A historiadora obstinada". O livro é composto por 12 contos, todos com histórias de mulheres incríveis. Este último, narra a história de Nwamgba, uma oleira de língua afiada que ousou enfrentar o pai, a ter um casamento arranjado. Casou sim, mas como quem ela escolheu. Essa mulher incrível, cujo marido foi assassinado, teve a preocupação em criar seu único filho de maneira altiva. Com a chegada dos missionários a Onicha, aldeia do interior da Nigéria, Nwamgba quis que seu filho aprendesse a língua do homem branco. Não porque a valorizasse, mas porque, à essa altura, ela já percebera que "certas pessoas dominavam outras, não porque fossem melhores, mas porque tinham melhores armas". Matriculou seu filho na escola dos brancos, e não demorou a perceber que não tinha sido uma boa escolha. Notou que a curiosidade tinha sumido dos olhos do menino, que agora, habitava um espaço mental que lhe era estranho. Quando o filho deixou de comer a comida da mãe, que segundo ele, era sacrificada a deuses pagãos e passou a tratar os não-cristãos como se tivessem uma doença contagiosa, Nwamgba sentiu que o tinha perdido de vez. A esperança só voltou a habitar seu coração quando a neta nasceu. Batizada pelo padre O'Donnell como Grace, a avó a chamava por "Afamefuna" - o meu nome não será perdido. O coração de Nwamgba encheu-se de alegria quando ela percebeu a curiosidade da neta por sua poesia, pelas histórias que contava e pela fabricação dos vasos de barro. A matrícula da menina na escola secundária, entristeceu a avó, que temia que os costumes dos brancos destruíssem o espírito combativo da neta, substituindo-o por uma rigidez sem curiosidade como fez com o pai. Na escola, Grace aprendeu que as cantigas que a avó cantava não eram poesia, pois tribos primitivas não tinham poesia. Grace riu tão alto do que considerava uma grande mentira e foi colocada de castigo pela professora. Foi esbofeteada pelo pai, em público, para que todos vissem como ele disciplinava seus filhos. A ficha da menina caiu quando, no Dia do Império, prestou atenção especial à letra do hino britânico que dizia "God bless our gracious King. Send him victorius, happy and glorious, long to reign over us" [Deus abençoe o nosso gracioso rei. Envie-o vitorioso, feliz e glorioso para longo tempo reinar sobre nós]. Um desprezo pelas beatices do pai foi nascendo da mesma maneira que adorava ouvir as histórias das aldeias. E em 1950, tomou a decisão de mudar do curso de química para o de história. Grace começou a perceber uma ligação clara entre educação e dignidade e entre as coisas duras e sérias que aparecem impressas nos livros e as coisas suaves e sutis que se alojam na alma. Depois de ouvir muitas histórias dos mais velhos e de pesquisar em arquivos empoeirados em Londres e Paris, Grace finalizou seu livro, "Pacifying with bullets: a reclaimed history of southern NIgeria" [Pacificar com balas: uma história reivindicada do sul da Nigéria]. Anos depois, quando apesar dos prêmios, dos amigos e do belo jardim, ainda sentia um desenraizamento, foi até o cartório de Lagos e mudou o seu nome. Segurando a nova certidão de nascimento, lembrou do dia da morte da avó, quando sentiu em sua mão, a mão áspera de quem passou uma vida inteira a fazer potes de barro. A certidão trazia o novo nome de quem se reconciliava com a sua história. Agora, oficialmente, a historiadora passaria a assinar "Afamefuna" - o meu nome não será perdido, nome que a avó lhe dera no dia em que nasceu.

Herança

Sexta-feira fui assistir "Processo de conscerto do desejo", do Matheus Nachtergaele. Assim mesmo, com "S" e "C". Os ingressos se esgotaram rapidamente, mas o Universo providenciou uma cortesia e fui com uma amiga preciosa, que se acabou de tanto chorar. Como o próprio Matheus diz, não é um espetáculo, mas uma espécie de ritual. Sua mãe se matou quando ele tinha 3 meses. Quando completou 16 anos, o pai lhe entregou uma pasta com cerca de 30 poemas escritos por ela. Matheus diz que a conheceu através desses escritos. Foi a herança que ela lhe deixou, os poemas e uma máquina Olivetti onde os datilografou. Matheus realiza uma espécie de Quarup em cena. Ele pranteia o morto e no final libera sua alma para outra dimensão. Na última cena, o ator coloca as pessoas para dançar, numa valsinha que ele mesmo compôs, em parceria com o violonista que o acompanha no palco, Luã Belik. É de uma boniteza! Assistindo ao espetáculo não tem como não pensar na relação entre mãe e filhxs. Fiquei lembrando de mamãe e da herança que me deixou. Uma tira dessa casa velha com a janela azul de tramela. Mas não só. Hoje, me vejo muito parecida com ela em muitas coisas. Desde o jeito de fazer a carne de porco que agora mesmo eu preparo para deixar pronta para o menino, passando pelo modo de quarar as roupas brancas na grama, a forma de pendurá-las no varal, o deslumbre com cada brotinho que surge neste quintal, até a postura feminista de igualdade que ela sempre reivindicou. A mania de autossuficiência, de não depender de ninguém, de resolver tudo sozinha, e de ter projeto. Até o finalzinho de vida mamãe tinha projeto. Reformar o telhado, fazer a varanda, pintar a casa... Dona Dulce concentrava suas energias e economias até conseguir realizar o intento, e quando finalizado, surgia outro, em seguida. Com mamãe aprendi a viver dentro do orçamento, a não gastar mais do que ganho, a customizar e reciclar tudo. Aprendi a ser só e a gostar da minha própria companhia. As marcas dela estão por toda parte nessa casa velha. Nas panelas que usava, nos forrinhos da mesa e do armário, na janela azul de tramela onde feito uma namoradeira, se debruçava com a mão no queixo, reflexiva, pensando sabe-se lá no quê. Matheus Nachtergaele conSerta o seu desejo num conCerto onde canta, dança e diz os poemas da mãe. Eu conserto o meu, todos os dias, sentindo a força de Dona Dulce em cada objeto dessa casa. Uma casa carregada de história, cheia de marcas. O piso já gasto, a louça descascada, a madeira surrada das portas e janelas. Objetos felizes que tantas vezes foram colhidos pelas mãos calejadas de mamãe. Um chão tantas vezes pisados pra lá e pra cá. Quando no final de semana eu venho correndo pra cá, as pessoas não entendem pra quê isso, se tenho que retornar para BH na segunda-feira. Não entendem que eu preciso disso! Preciso sentar nessa mesa e olhar para o morro; observar o beija-flor vigiando o bebedouro; preciso dos cachorros enrodilhados perto de mim; preciso colher a acerola, a pimenta biquinho, acompanhar o crescimento do mamão. Preciso ouvir as notas de utilidade pública e a Ave-Maria no alto-falante da igreja. Preciso ouvir o silêncio, os passarinhos, sentir o sol na pele enquanto mexo no quintal. Esta é a herança que mamãe me deixou. Este é o meu conSCerto do desejo. São essas coisas que me fazem feliz.

domingo, 19 de março de 2017

Doçura

O menino está crescendo. É tão fascinante ver o crescimento dele. Me assusto, diariamente, não só com as transformações físicas, como também com o amadurecimento emocional. João é um menino tranquilo, na dele. Construímos uma relação, desde sempre, baseada em muita conversa. Temos muitas discussões, muitas mesmo. Às vezes o tempo fecha. Eu, como Soares que sou, falo alto, arregalo os olhos num jeito agressivo que parece que estamos brigando, mas não é briga, não. Quando ele era pequenininho, lá pelos 6 ou 7 anos, depois de uma briga, eu li pra ele, o poema "Mater dolorosa", da Adélia:
"Este puxa-puxa
tá com gosto de coco.
A senhora pôs coco, mãe?
— Que coco nada.
— Teve festa quando a senhora casou?
— Teve. Demais.
— O que que teve então?
— Nada não menina, casou e pronto.
— Só isso.
— Só e chega.
Uma vez fizemos piquenique,
ela fez bolas de carne
pra gente comer com pão.
Lembro a volta do rio
e nós na areia.
Era domingo,
ela estava sem fadiga
e me respondia com doçura.
Se for isso o céu,
está perfeito."
Pensava na minha mãe e nas vezes que ela respondi
a com doçura. Falei pra ele que gostaria de responder sempre com doçura, mas que às vezes, a fadiga é tanta que não dá. Ele nunca mais esqueceu. Desde então, sempre que levanto a voz, ele diz: "Mãe, por que essa agressividade, cadê a doçura?". Daí, eu paro e me recomponho. Neste novo tempo que agora fico entre BH e Baldim, estamos, os dois, aprendendo. Eu, o desapego; ele, a autonomia. Na vinda pra cá, quando deixei uma grana com ele porque ficaria quase 10 dias fora, ele se emocionou. Pegou o dinheiro e disse: "Nossa, ter que ir ao supermercado comprar minha própria comida me dá tanta autonomia. Tô me sentindo um adulto." [Comprou um monte de porcaria, que eu sei!]. Dia desses, almoçávamos com uma amiga e eu insistia para que ele colocasse mais verdura no prato. Na primeira oportunidade que teve, disse: "Mãe, vou completar 15 anos, já estou mais autônomo, por isso queria te pedir que nos rolês você não ficasse me dizendo o que fazer, pode ser?Também não gostaria de ouvir de você, tipo,' Ah é? Já é autônomo? Se fode aí, então!"... Eu me calei e refleti. Lembrei do Affonso Romano com o texto, "Antes que eles cresçam". De repente, elxs falam uma coisa de tal maturidade que você olha pro lado e a ficha cai: cresceu! Graças às deusas eu não tenho do que me arrepender. Vivi cada fase desse menino, cada sufoco e cada delícia. Na sexta-feira ele veio passar o final de semana comigo, em BH [passar comigo é modo de dizer, pois ele tinha um 'esquema'], e antes de vir, me mandou mensagem perguntando sobre a arrumação da casa. Eu disse a ele pra trazer a blusa de uniforme da escola para eu lavar e ele respondeu: "Já lavei, mãe. Também já dei banho na Fridinha". Ontem, enquanto estávamos no ponto do ônibus para ele voltar pra Baldim, eu olhei aquele rapaz de mais de 1,80m e pensei como eu conseguia andar de ônibus com ele [que sempre foi enorme], carregando além dele, minha mochila e a bolsa com suas coisinhas. Enquanto subíamos o morrinho aqui da rua, que tenho que colocar "primeira" para dar conta, ele me puxava pela mão e eu dizia: "Paciência, meu filho, não consigo acompanhar o seu pique, não. Eu tenho 50 anos." Este semestre, só nos encontraremos nos finais de semana, mas eu sei que ainda assim, estaremos juntão. Sei também, que cada elogio que faço a ele é no fundo, um autoelogio. Mas é que me acho foda mesmo. Ser mãe solo é pedreira, mas vê-lo assim, amadurecendo, desenvolvendo sua autonomia, não tem preço [desculpa aí, o clichê].

Patriazinha

A caminho da avenida Antônio Carlos fui repetindo pra mim mesma: Carmésia, Carmésia, Carmésia. Como na infância, quando mamãe mandava buscar alguma coisa na venda ["Meia liva de café e 10 cm de fumo preto"]. É que da última vez, quando a minha ficha caiu que o ônibus não era BH/Baldim, ele já ia longe. Quando o veículo parou, perguntei ao motorista: "Baldim?". "Sim! Com conexão em São José de Almeida." O tempo que falávamos baldeação ficou pra trás. Conexão! Agora somos todos modernos. Me acomodei no banco desconfortável e coloquei os fones de ouvido. Deu para ouvir o finalzinho do programa "Trem caipira" na 100,9, rádio Inconfidência FM. Às 7h começou o jornal que discutiu a falácia do déficit da previdência. Jornalismo sério. Um alento. Abri o livro "A coisa à volta do teu pescoço" e fui em companhia de Chimamanda. Em Lagoa Santa o ônibus virou lotação e foi parando em cada ponto, apanhando diaristas e serventes de pedreiro à caminho das casas de campo das redondezas. A moça que sentou ao meu lado reclamava da grosseria do patrão, sempre maltratando os empregados. "Sai de lá, boba!", disse a colega. "Não posso. Emprego tá difícil, tenho que tolerar." Atrás de mim, o moço reclamava do valor que queriam pagar por quase 10 dias de serviço pesado. "E ele é empresário! Mas ninguém vê o lado do pobre! Se acha que tá caro, por que ele mesmo não faz o serviço?" O rapaz ao lado concordou e também tinha histórias para contar. Às 8 em ponto passamos sobre a ponte do Rio das Velhas. E pensar que esse rio já foi navegável. Quando a Serra do Cipó surgiu, imponente, à frente, era sinal de que já havíamos passado da metade do caminho. Em São José de Almeida, o carro que nos levaria a Baldim já estava à postos. Perguntei se podia ir ao banheiro. O motorista assentiu com a cabeça. Na porta, uma senhora franzina, com uma caixa de sapatos com um rolo de papel higiênico e um recipiente feito de garrafa pet, cheio de moedas. "1 real", ela disse. Na volta agradeci a gentileza do motorista. Depois do trevo, ele quebrou à direita e eu fechei o livro, pois a leitura ficou impossível com o sacolejo na estrada de chão. Em Vargem Grande avistei a casinha branca de janelas azuis, meu sonho de consumo. A plantação de eucaliptos vai avançando sobre o cerrado. Que tristeza! Mais 20 minutos e chegamos a Vila Amanda. Olho para o que resta do cerrado e lembro das aulas de geografia no ensino fundamental: árvores baixas, com troncos retorcidos, meu quintal. Lembro também de Guimarães Rosa explicando para seu tradutor alemão o que é a VEREDA: "a vegetação é a do cerrado: arvorezinhas tortas, baixas, enfesadas (só persistem porque têm longuíssimas raízes verticais, pivotantes, que mergulham a incríveis profundidades)." Às 9:11 chegamos em São Vicente. Uma volta na praça, desce gente, sobre gente e às 9:30, em ponto, chegamos a Baldim. Eu quase corro para chegar logo à casa velha de janela azul. No portão, sou recebida com festa por Scooby e Fridinha. Abro a janela e contemplo meu quadro preferido: o telhado da casa da Dona Maria do Heitor, com o morro ao fundo. Minhas perpétuas, cheias de raízes, seguem floridas. Dois bem-me-queres sobreviventes na jarrinha na janela. As flores brancas que colhi no dia anterior à viagem secaram, mas continuam no lugar que deixei. Vejo um respeito do menino e do meu irmão nesse gesto. O mamão está enorme, mais um pouco e vai dar pra colher. Baldim é Minas em mim, Minas comigo. Baldim é minha patriazinha!

domingo, 12 de março de 2017

Merece ou não merece?

Hoje eu me emocionei. Tá, não é difícil eu me emocionar. O menino mesmo, que me conhece como ninguém, sempre diz, quando vê alguma coisa que sabe que vai me comover: "cenas inadequadas para mães que choram à toa." É que minha irmã chegou na sala pulando da mesma forma que pulamos quando a Dilma foi reeleita. Contente toda vida ela me mostrou a cópia do Diário Oficial do Município - DOM com a publicação da aposentadoria dela. Mais de duas décadas como professora da rede pública municipal. Detalhe: dois cargos, pois um só não era suficiente para sobreviver com um mínimo de dignidade. Eu chorei, pois além de irmãs somos amigas desde a infância. Cinco anos mais velha do que eu, ela meio que ajudou a cuidar de mim. Foi ela que me apresentou a literatura, a boa MPB, Guimarães Rosa. Aos 12 anos ela já ajudava papai a 'panhar' laranja para vender na CEASA. Aos 13 veio ser babá na capital. Ontem mesmo conversávamos sobre isso. Ela contava que nesta casa, um dia acordou indisposta, febril e que não conseguiu levantar da cama. Passou o dia deitada e só se levantou quando a fome apertou. Foi até a cozinha e comeu uma banana. Depois ouviu a patroa falar com as amigas, que a empregada estava comendo toda a banana da filha. Nossa irmã mais velha, quando soube disso a levou de volta para Baldim. Em Baldim, quando já cursava o ensino médio, foi ser professora na zona rural. Eu a acompanhei muitas vezes. Lembro que voltávamos, a pé, pelo cerrado, cantando MBP4. "Salve, como é que vai", ela cantava. Eu respondia, "Amigo há quanto tempo", "Um ano ou mais"... E assim, esquecíamos do medo das cobras e das onças. Ela jurava que as marcas de pata que víamos no caminho poeirento eram de onça. Maiorzinha, ela também ajudava mamãe a buscar lenha. Segundo ela, isso foi determinante para despertar o desejo de sair de Baldim, uma vez que queria um destino diferente. Queria ser professora de educação física. Anos depois, já em BH, viveu a frustração quando descobriu que o curso era diurno e ela precisava trabalhar. Aliás, trabalhou numa mercearia que existe ainda hoje no bairro onde moramos e numa padaria que já fechou. Depois teve a oportunidade de trabalhar como escriturária, e teve 1 mês para aprender datilografia e participar do processo de seleção. Conseguiu o trabalho, mas o desejo do curso superior a continuou perseguindo. Trabalhou durante quase uma década e decidiu pedir demissão e usar o dinheiro do FGTS para pagar as contas. Foi uma decisão extremamente difícil, que rendeu noites de insônia, pois era abrir mão de um trabalho de carteira assinada, coisa que tinha uma importância enorme para quem viveu abaixo da linha da pobreza. A intenção dela era passar no vestibular para o segundo semestre e assim ter mais um tempinho para juntar mais uma grana. Só que passou para o primeiro. Lembram do menino Ali, do filme "Filhos do Paraíso"? Dividindo com a irmã, o único par de sapatos que tinha, o menino se inscreveu numa corrida, cujo segundo lugar era um par de tênis. Mas, parecido com minha irmã, ele chegou em primeiro. No sexto período minha irmã foi dar aulas como professora designada na rede pública estadual. Já formada, passou no concurso da prefeitura municipal de BH, onde o salário e as condições de trabalho eram melhores. Até hoje, ainda são. Mas um cargo não era suficiente, e ela prestou um segundo concurso. Foram 21 anos como professora de educação física em escolas da periferia da capital, enfrentando todo tipo de adversidade. Agora, aposentada, ela embarca no final do mês, de férias, para Paris, onde vai ficar por 3 meses. Merece ou não merece?

"Conscerto"

Quero aproveitar estes dias em BH e assistir "Conscerto", com Matheus Nachtergaele. Na peça ele diz os poemas da mãe, morta quando ele ainda era bebê. Matheus conta que quando era adolescente, o pai lhe deu os poemas escritos pela mãe para ele cuidar. Fico imaginando como seria você descobrir, de repente, que sua mãe é poeta. Matheus diz que conheceu a mãe através dos escritos. Eu fico pensando na minha, que não foi alfabetizada. Mamãe tinha muita vergonha de não saber ler. Cheguei a estudar o "Método Paulo Freire" para ensiná-la, mas ela não teve paciência. Lembro da mão desajeitada no trato com o lápis. Era tão difícil que ela chegava a ficar constrangida. O movimento de pinça exigia uma coordenação motora fina que ela não tinha. Era uma mulher da enxada e da foice. Era das pessoas mais inteligentes que eu conheci. Abstraía, construía teorias para explicar o mundo. Uma feminista radical, que morreu dizendo que se papai estivesse no céu, ela queria ir para o inferno, só para não encontrar com ele. Um dia, ela me confessou que seu sonho era ter sido médica. Eu fico pensando como teria sido a vida dela se tivesse aprendido a ler. O que ela leria? Será que gostaria de escrever? Uma pessoa que refletia tanto, que gostava de conversar, de debater, de colocar a gente para pensar. Eu carrego a frustração de não ter conseguido ensiná-la. Uma trabalhadora rural, sem terra, analfabeta, que conseguiu que 6 dos seus 10 filhos cursassem universidade pública. Eu gostava de ler para ela. Li "Só as mães são felizes" da Lucinha Araújo, mãe do Cazuza. Choramos juntas com a narrativa da morte do poeta. Ela também chorou quando li pra ela "poema esquisito" da Adélia. Mamãe não conheceu seu pai, teve uma história difícil com a mãe e quando eu li os versos finais: 
"Ôôôô pai
Ôôôô mãe
Dentro de mim eles respondem
tenazes e duros,
porque o zelo do espírito é sem meiguices:
Ôôôôi fia", ela não aguentou e caiu no choro. Acho que ela nunca ouviu um "ôôôôi fia", pois se casou ainda adolescente, aos 16 anos.
Em dias como o de hoje, quando celebramos a luta das mulheres que vieram antes de nós, muitas anônimas, mas que sustentam os pilares do mundo, eu sinto uma saudade de ter mãe.

Quarto de despejo

Hoje eu fui na casa da Lu fazer as unhas. A Lu não entende porque tendo manicure aqui por perto, eu ando cerca de vinte minutos até a última rua da cidade para fazer as unhas com ela. É que eu adoro a Lu. Ela teve uma vida difícil, morava na zona rural, perdeu a mãe ainda na infância e casou muito cedo. Gosto do jeito que ela conduz a própria vida, a forma como cria os filhos. Na verdade, esses momentos enquanto ela faz minhas unhas são uma espécie de terapia. Gosto da prosa dela, de sua generosidade, de sua compaixão pela miséria alheia. Hoje, enquanto contava pra ela do programa sobre Carolina Maria de Jesus que rolou ontem, no "Almanaque Brasil" da rádio Inconfidência , ela disse: "Mas não foi essa mulher que escreveu "Quarto de Despejo? Eu li esse livro quando morava em Vila Amanda [distrito de Baldim], ainda na adolescência." Lu falou de como o livro a impactou, que não conseguia largá-lo e que gostaria de relê-lo. Eu falei pra ela do (re)descobrimento de Carolina, de como existem trabalhos acadêmicos sobre sua obra e decidimos que vamos fazer um clube de leitura, aqui, no sertão das Gerais para reler "Quarto de Despejo". Isso não é fantástico?

Lanche

Eu tenho uma foto 3x4 da época que me mudei para Belo Horizonte. Está na minha carteira de trabalho, o primeiro documento que tirei. Todo mundo que vê a foto ri e comenta que eu melhorei com a idade. A pele, muito mais curtida pelo sol e o cabelo preso dos lados por dois grampos, recurso de quem não tinha dinheiro para comprar shampoo, nem frequentar salão de beleza. A franjinha eu mesma cortei. Agora, imaginem uma franjinha em cabelo crespo como o meu. Minha irmã tinha conseguido um emprego de escriturária e trabalhava numa seguradora. Inteligente que só, ela tinha feito datilografia, o que lhe garantiu o passaporte para um emprego melhor. Ela trabalhava ao lado do Edifício Acaiaca na avenida Afonso Pena, com rua Espírito Santo. Ali, funcionava o "Lanches Acaiaca" e eu sonhava em lanchar lá. Mas sabe como é, né? Pobre tem cara de pobre. Falei pra minha irmã do meu desejo e ela me disse: "Espere até comprarmos roupas novas". Achávamos que era necessário estarmos bem vestidas para entrar numa lanchonete, no centro de Belo Horizonte. O dia chegou. Lembro que a roupa foi costurada por mamãe, uma camisa xadrezinho de gola e manga. Minha irmã me levou e eu comi hambúrguer pela primeira vez na minha vida. Eu tinha 14 anos. 1 ano a mais que o João Victor, que morreu com um soco por estar pedindo comida em frente ao Habib's.

Salve, Carolina!

Tô eu aqui, preparando aula, sentada na mesa da cozinha, olhando pro morro através da janela azul e ouvindo na minha rádio preferida que é a Inconfidencia 100,9, o melhor Programa que existe no rádio mineiro, "Almanaque Brasil". E não é porque é da minha amiga Waleska Falci, não; é porque é bom mesmo. Hoje, o quadro "Poesia &" com o colunista Ricardo Aleixo contou com a participação linda e empoderada da minha outra amiga, Carlandréia, que foi falar de Carolina Maria de Jesus. Eu aqui, emocionadíssima, ouvindo os três lendo meus trechos preferidos de "Quarto de Despejo", ouço Waleskinha falar que eu tenho alma de Carolina e que o Programa era dedicado a mim. Cês tem noção de como eu fiquei? Ouvir Carlandréia falar que vai organizar um café em sua casa para nos conhecermos pessoalmente. Não tenho palavras para descrever a minha emoção. Waleskinha e Carlandréia, se sentir amada é muito bom. Ouvir declaração pública desse amor é melhor ainda. Meu coração ainda não voltou pro ritmo. Gratidão é pouco, o que sinto ainda não tem nome

(http://inconfidencia.mg.gov.br/modules/debaser/singlefile.php?id=12376)

Tempo, tempo, tempo...

10:30h. A manhã voa. Tiro a panela do armário e começo a preparar o arroz. Fico pensando no texto da Anzaldúa quando ela diz que a mulher que escreve tem mais poder e que é preciso colocar as tripas no papel. Pra mim, a leitura e a escrita funcionam como uma espécie de reza antes de começar o dia.
Mas, pegar a palavra na mão, tal qual um peixe vivo, é coisa infrequentíssima, aprendi com Adélia. Com Carolina aprendi que é possível escrever sentada no quintal, com um pedaço de carvão e papel de pão. Clarice escrevia com um filho em uma perna e a máquina de escrever em outra. Com Conceição aprendi que essas confissões são na verdade, escrevivências.
11:00h. Tempero o feijão. Abro o youtube e vejo um vídeo da escritora Conceição Evaristo dizendo que a luta diária do cotidiano lhe rouba um tempo precioso que poderia ser dedicado à escrita.
Me entedia um pouco a literatura de grandes feitos, de grandes personagens salvando o mundo. Sinto falta de uma escrita com cheiro de alho, de sabão em pó, de água sanitária, de amaciante. A caneta com cheiro de cebola, porque a ideia surgiu enquanto se preparava o almoço. O caderno sujo de óleo, porque passa os dias na mesa da cozinha. Sinto falta de personagens que lavam sua roupa, que cozinham sua comida, que levam os filhos pra escola.
Cozinha, esse lugar visto como menor. Pois é daqui, da mesa da cozinha, olhando para o morro que vou juntando os ingredientes da minha escrita. É desse lugar que, devagarinho, as letras vão se formando sobre o teclado e vão marcando, pouco a pouco, as páginas em branco. Computador, livros e cadernos dividem o espaço com o pote de pimenta, a lata de pão, o vidro de azeite. É mexendo uma panela e outra, que vou dando sentido ao vivido e experimentado. Minhas anotações estão todas marcadas: uma gota de gordura que caiu do prato, a marca da pata do cachorro, que de tanto esperar, já ficou entendiado, pingos do café entornado que apagaram o escrito e da sopa que coloriu de urucum, justamente a passagem onde escrevi sobre o caboclo.
É daqui, do espaço da cozinha, que vou colocando os temperos e arrumando lentamente as ideias na cabeça, na expectativa que o resultado fique gostoso. Afinal, saber pode ter sabor.
11:05 preciso me apressar. Daqui a pouco o menino chega com fome. E passar fome não é coisa pra gente, não. Já dizia Adélia. Eu penso que passar fome não é coisa nem pra bicho. Bora terminar o almoço.
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Feminismo

Mamãe não conseguia falar obstáculo, falava "bistaque". Com ela aprendi que quando você coloca "bistaque" nas coisas é porque no fundo, no fundo, não quer aquilo. Ela dizia que é preciso desejar muito, muito mesmo, para não desanimar diante dos "bistaque", porque eles sempre aparecem.
Mamãe não conseguia falar ódio. Falava "óido", como o Lula. "Que "óido" eu tenho de homem ruim. Mulher não precisa de depender de homem não, minha filha. Olhe pra mim, nunca precisei."
Um dia, nesta mesma mesa que agora escrevo, enquanto tomávamos café, ela me contou que no começo do casamento, ela e papai picavam lenha em terra dos outros. Recebiam por metro quadrado picado. Papai sempre ficava com o dinheiro. Ela então, resolveu observar quanto cada um picava e descobriu que picava o mesmo tanto que ele. Exigiu seu dinheiro. "Comecei a me separar dele naquele dia", ela me disse.
Mamãe, a primeira feminista que conheci!

sexta-feira, 3 de março de 2017

Sobre racismo, privilégio e branquitude

Na minha infância, uma família da elite local, tinha o hábito de distribuir kit's de pão com mortadela e pedaços de queijo com goiabada. Nós, os da periferia, os da rua do Campo, do Cerradinho, formávamos filas na porta da casa, na praça, para receber a iguaria. Aqui em casa, fome, fome não chegamos a passar, pois sempre tinha o arroz e o feijão, alguma verdura, normalmente do quintal - chuchu, couve, alface. Mas, pão, doces e carne, rarissimamente que tínhamos. Já na velhice, recebendo a pensão de 1 salário mínimo, mamãe gostava da despensa sempre cheia. Ela sim, tinha muito medo de passar fome, novamente. No último domingo, dia 26, João Victor, um garoto de 13 anos, morreu depois de levar um soco na cabeça de um segurança do Habib's, na Vila Nova Cachoeirinha, zona norte de SP. Habib's, aquela rede que apoiou o golpe, lembram? Distribuíram 150 mil broches e cartazes com palavras de ordem contra o governo da presidenta Dilma. João Victor era filho de um catador de lixo [foi assim que o pai, Marcelo Fernandes, de 42 anos se definiu]. Ele pedia dinheiro na porta do estabelecimento para comprar um lanche. Eu estou com um bolo no estômago desde domingo. Esse bolo aumentou quando o menino chegou, depois de passar o carnaval com amigos na zona sul de BH. Ele disse, que durante todos os dias teve sempre a preocupação de escolher BEM, a roupa que ia sair. "Pra não ser confundido, né, mãe?" Durante nossa resenha sobre o carnaval, ele me contou, visivelmente impressionado, que em um dos dias, um dos amigos entrou descalço em um supermercado. Impressionado com a atitude, ele me perguntou: "Que dia, mãe, que eu vou poder entrar descalço e vestido de qualquer jeito em um supermercado, na zona sul?" Se pá, ele não pode ficar nem do lado de fora. "Privilégios da branquitude, meu filho. Bem-vindo ao mundo adulto". Foi o que disse a ele. João Pedro tem 14 anos, completará 15, em abril. João Victor tinha 13 anos. Tinha fome. Queria um lanche. Pedia dinheiro. Morreu com um soco na cabeça.

Fez sentido...

No segundo semestre de 1995 eu cursava duas disciplinas na licenciatura em Ciências Sociais na Faculdade de Educação da UFMG. Prática de Ensino em Ciências Sociais era ministrada pelo Professor Juarez Dayrell e foi durante o estágio dessa disciplina que decidi ser professora. A outra era ministrada pela professora Inês Teixeira, não lembro se história ou sociologia da educação. Era meu último semestre na Universidade. Eu dura, vivia a angústia de terminar o curso, deixar de ser estudante e virar desempregada. Na saída de uma das aulas, lembro que conversava com a professora Inês. Ela me sugeria: "por que você não participa das designações para professora na rede estadual? É uma experiência interessante." Segui seu conselho e em fevereiro de 1996, comecei a dar as primeiras aulas numa escola na periferia norte de BH. Hoje, 21 anos depois (meu deus!), substituo o professor Juarez que recém aposentou. Agora a pouco, enquanto preparava o primeiro encontro com as turmas que começam na semana que vem, lia o posfácio de um livro organizado pelo Juarez. O texto começa citando o poema "Aula" de Manoel de Barros. Extremamente poético, fui conferir quem escreveu e pra minha surpresa tá lá, o nome da Inezinha. Engoli o choro. Inês e Juarez foram dois professores fundamentais não só na minha formação, como nas escolhas que fiz pra minha vida. Quando estou em sala de aula eles são minha inspiração e nesses 20 anos que sou professora procuro sempre imitá-los. Juarez, Inês, sala de aula, Manoel, poesia. Sabe quando de repente sua vida faz todo sentido?

Mas é carnaval...

Os últimos dez anos da minha vida foram para criar filho e estudar. Em 2007, iniciava o mestrado, em Viçosa. O menino com quatro anos. Nossos caquinhos seguiram em um caminhão de mudanças pago pelo amigo, Samuel. Ficamos quatro anos por lá e fomos muito, muito felizes. Fizemos amigos que seguem conosco até hoje.
Em 2010, tivemos que exercitar o desapego e nossos caquinhos foram vendidos para um topa-tudo: as bikes, a geladeira paga em dez prestações, comprada no cartão da Waleskinha, a estante linda, caríssima (onde eu estava com a cabeça, quando comprei?). Só carreguei os livros que hoje estão na casa da Mariza, esperando pacientemente, eu ter um cantinho pra eles.
Em janeiro de 2011, depois de nos desfazermos de nossas "posses", arrastamos nossas duas malas, ladeira acima, para morar numa kitinet, ao lado da UFSC, no bairro Carvoeira, em Florianópolis, onde fui fazer o doutorado. Por lá, também fizemos amigos preciosos.
Há cerca de um ano defendi a tese. A banca foi a mais generosa que alguém pode ter. O amigo, Davi Ochoa fez o cafezinho que a amiga Gabina serviu, junto com o bolo de banana e granola que a Bianca preparou. Defender uma tese é libertar-se de uma espada constantemente apontada para a sua cabeça.
Hoje, uma ano depois de, como a personagem de Clarice, ter comido minha barata, a vida segue tomando outros rumos. O menino crescido (não é mais uma criança, mas ainda não é um rapaz) começa a dar seus rolês sozinho. E eu, de cá, experimento uma liberdade que há muito tempo não me permitia.
"João, vou tomar umas cachaças com a Luia e a Mariza no baixo Belô", eu disse pra ele, ontem. 
Ele, que estava do outro lado da cidade com os amigos, respondeu:
"Tudo bem, mãe! Aproveita o rolê! Só toma cuidado para não dar "pt" (perda total: termo usado para designar o estado de uma pessoa extremamente alcoolizada, quase inconsciente. Tive que dar uma 'googleada' para aprender sobre a nova gíria ).
E fui, depois de anos, experienciar o carnaval de BH.
Gostei!
Uma multidão nas ruas, saindo de todos os lados. Gente de todas as idades, pais e mães com seus filhos. A população ocupando o espaço público, como deve ser. Muitos carregando a própria bebida em sacolas, carrinhos de supermercado, das formas mais diversas possíveis. Nem a chuva que caiu sobre os foliões esfriou a animação. Foram cerca de 4 horas atrás do carrinho de som que tocou de Caetano a Gera Samba. Um refresco nestes tempos brutos.
Festar é também resistir. Meus ancestrais sabiam bem disso. A história das irmandades do Rosário estão recheadas de exemplos. Quantas vezes ao negro foi proibido tocar seu tambor?
Por isso, hoje eu vou pra rua novamente, me juntar aos meus e resistir. Como dizia Jean Duvignaud, um estudioso das festas, entender esse movimento só é possível se se “ingressar no lance, ainda que grotescamente, com o nosso reles arrastar de pés e nossos corpos contraídos".
Bora, então!

Tempo, tempo, tempo...

Com o fim do horário de verão, minha preferência é caminhar pela manhã. Mas gosto de ir antes do sol nascer. Hoje, saí às 5:30h. Aquele momento em que "a manhã chegou, mas ainda é noite." Os sinos tocaram rapidamente. Foram apenas alguns segundos, quase que a pedir desculpas por acordar quem não ia rezar.
A algazarra dos passarinhos, os galos tecendo a manhã...
Dia desses, um amigo me falou a respeito de um texto que escrevi e enviei para ele ler, que meus dias são marcados, além das horas, por minhas rotinas domésticas. E que isso me traz uma dinâmica que no fundo, no fundo, não quero mudar, mas fazer valer. Lógico que essa é uma leitura de segunda mão, feita por sobre os ombros do meu amigo. Eu lendo a leitura que meu amigo fez de mim. Mas concordo com ele. Penso que Baldim me proporciona isso. Me desacelera, me permite sentir o tempo de um outro modo.
Daí, lembrei da monja coreana, Jeong Kwan, que também é cozinheira num templo na Corea do Sul. Ela diz que comida não é só pra língua, mas também para os sentidos: corpo, sensação, percepção, intenção e consciência.
Uma boa metáfora para a vida.
O redator do "The New York Times", Jeff Gordinier, que teve a oportunidade de experimentar a comida de Jeong, disse que o tempo é um ingrediente fundamental na alquimia dos alimentos. Você separa os ingredientes, acrescenta os temperos, mas é o tempo que vai proporcionar a transformação.
É isso! Precisamos do tempo e dos sentidos para perceber o mundo e digerir as coisas. Corpo, sensação, percepção, intenção e consciência. E, precisamos do tempo para que a transformação aconteça.

"O que sinto ainda não tem nome"

Ontem, minha amiga, Vânia, que estava pesquisando seus arquivos a procura de fotos para um livro sobre congado que vai publicar, me mandou algumas . Fui dormir comovida com tudo que as imagens me suscitaram. São fotos de cerca de uma década atrás. O menino por volta dos 4 anos, com seus dentinhos de leite; eu, 10 anos mais jovem, alguns quilos a menos. Mas algumas questões são recorrentes. Minha amiga, Vânia, e Paixão, seu marido, estão sempre presentes em nossa vida e em nossas histórias. E as festas de congado são sempre o cenário que permeia tudo isso.
Em 2004, fui demitida de um emprego onde eu era muito infeliz. Fui para o boteco comemorar, só para se ter uma ideia. Desempregada, resolvi voltar a estudar. Lembro do dia que voltando do centro da cidade, dentro do ônibus avistei Vânia, em seu carro ao lado. Ela fez sinal e eu desci no ponto seguinte. Entrei no carro e falei pra ela do desejo de voltar a estudar. Contei da vontade de fazer uma especialização em lazer, onde ela era professora. "Quero pesquisar o congado, você acha que dá?" "Claro que sim!", ela disse. E selamos ali, uma das nossas tantas parcerias. Ela foi minha orientadora no trabalho de conclusão de curso, uma monografia sobre a festa da Guarda Feminina de Nossa Senhora do Rosário, no bairro Aparecida. A Guarda da Maria, como é conhecida. O trabalho ficou verde, imaturo, bobinho até, mas foi o que dei conta de fazer na época. Funcionou como um rito de passagem para que eu saísse do lugar de espectadora e me assumisse como pesquisadora da Festa. Eu, que cresci ao som dos tambores do catopê e da folia de reis; coroando Nossa Senhora, sendo pastorinha nos autos de Natal. Inaugurava ali, um outro olhar sobre o congado.
Depois, em 2007, fui para Viçosa fazer o mestrado. O tema da minha dissertação também nasceu das conversas com Vânia. Foi de um antigo projeto dela que roubei a ideia de pesquisar gênero no congado. E, de novo, voltei ao bairro Aparecida para pesquisar a Guarda Feminina. Vânia participou da banca de defesa e me arguiu sem dó. Foi ela também que me ajudou no título da dissertação: Salve Maria(s): mulheres na tradição do congado em Belo Horizonte, MG. O trabalho ficou bem melhor que a monografia da especialização, mas ainda apresenta deficiências teóricas e metodológicas. Mas, de novo, era o que eu dava conta na ápoca.
Foi durante uma conversa nossa em seu sítio na região metropolitana de BH, que anos depois, nasceu a ideia do projeto para o doutorado. "Por que ao invés de pesquisar mulheres, você não foca na trajetória da capitã Pedrina?" Vânia sugeriu. Nascia ali, a tese que defendi ano passado: "Muita religião, seu moço!: os caminhos de uma congadeira". Um trabalho mais maduro, mais parecido comigo, mas com mais referências literárias que antropológicas. Foi, inclusive, Guimarães Rosa e Riobaldo, que me emprestaram as lentes para enxergar que a experiência de Pedrina era "muita religião" e não sincretismo. Clarice, Mário Quintana, Fernando Sabino, Ana Maria Gonçalves e até o rapper Rico Dalassan, foram algumas das referências literárias que me ajudaram a pensar a trajetória da capitã de congado.
As fotos enviadas por Vânia, ontem, são todas de festas de congado. O menino sempre presente. Na Comunidade dos Arturos, na festa da Abolição, no 13 de maio; na coroação dos reis festeiros, na festa de outubro no bairro Aparecida e até no evento "Mil Tambores" que aconteceu na Serraria Souza Pinto, em 2005, em comemoração ao dia da Consciência Negra. Foi ali que ouvi, pela primeira vez, a voz de Pedrina cantando em banto.
Com tantas lembranças, meu coração ficou amolecido como um figo na calda. Tem uma foto da Vânia olhando para o menino com tanta admiração e uma outra dele, no colo do Paixão, marido da Vânia e com a Júlia Dias, filha do Tizumba, junto. Júlia, que se tornou um mulherão e que assistimos dias desses, no espetáculo "Oratório: a Saga de Dom Quixote e Sancho Pança". Daí, entendi porque anos atrás, numa noite no sítio da Vânia e do Paixão, enquanto assávamos bolo e fazíamos pipoca, o menino virou pra mim e perguntou: "Mãe, eu não posso ter assim, tipo, uns padrinhos informais"? Criado agnóstico, eu até insisti com ele que se quisesse, poderia ser batizado, fazer catequese, etc. Mas ele afirmou, seguro, que não. Queria era só os padrinhos mesmo. E escolheu ali, a Vânia e Paixão. Ficamos todos muito comovidos e além de amigos, agora, somos também compadres.
Gratidão é pouco. Como diz Clarice, o que sinto ainda não tem nome.