domingo, 12 de março de 2017

Tempo, tempo, tempo...

10:30h. A manhã voa. Tiro a panela do armário e começo a preparar o arroz. Fico pensando no texto da Anzaldúa quando ela diz que a mulher que escreve tem mais poder e que é preciso colocar as tripas no papel. Pra mim, a leitura e a escrita funcionam como uma espécie de reza antes de começar o dia.
Mas, pegar a palavra na mão, tal qual um peixe vivo, é coisa infrequentíssima, aprendi com Adélia. Com Carolina aprendi que é possível escrever sentada no quintal, com um pedaço de carvão e papel de pão. Clarice escrevia com um filho em uma perna e a máquina de escrever em outra. Com Conceição aprendi que essas confissões são na verdade, escrevivências.
11:00h. Tempero o feijão. Abro o youtube e vejo um vídeo da escritora Conceição Evaristo dizendo que a luta diária do cotidiano lhe rouba um tempo precioso que poderia ser dedicado à escrita.
Me entedia um pouco a literatura de grandes feitos, de grandes personagens salvando o mundo. Sinto falta de uma escrita com cheiro de alho, de sabão em pó, de água sanitária, de amaciante. A caneta com cheiro de cebola, porque a ideia surgiu enquanto se preparava o almoço. O caderno sujo de óleo, porque passa os dias na mesa da cozinha. Sinto falta de personagens que lavam sua roupa, que cozinham sua comida, que levam os filhos pra escola.
Cozinha, esse lugar visto como menor. Pois é daqui, da mesa da cozinha, olhando para o morro que vou juntando os ingredientes da minha escrita. É desse lugar que, devagarinho, as letras vão se formando sobre o teclado e vão marcando, pouco a pouco, as páginas em branco. Computador, livros e cadernos dividem o espaço com o pote de pimenta, a lata de pão, o vidro de azeite. É mexendo uma panela e outra, que vou dando sentido ao vivido e experimentado. Minhas anotações estão todas marcadas: uma gota de gordura que caiu do prato, a marca da pata do cachorro, que de tanto esperar, já ficou entendiado, pingos do café entornado que apagaram o escrito e da sopa que coloriu de urucum, justamente a passagem onde escrevi sobre o caboclo.
É daqui, do espaço da cozinha, que vou colocando os temperos e arrumando lentamente as ideias na cabeça, na expectativa que o resultado fique gostoso. Afinal, saber pode ter sabor.
11:05 preciso me apressar. Daqui a pouco o menino chega com fome. E passar fome não é coisa pra gente, não. Já dizia Adélia. Eu penso que passar fome não é coisa nem pra bicho. Bora terminar o almoço.
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