sexta-feira, 31 de março de 2017

"A coisa à volta do seu pescoço"

Acordei com o som das patinhas da Frida na porta. Levantei, abri para ela entrar e voltei para cama. Fridinha se enrodilhou perto de mim e peguei "A coisa à volta do teu pescoço" da Chimamanda para ler o último conto que faltava: "A historiadora obstinada". O livro é composto por 12 contos, todos com histórias de mulheres incríveis. Este último, narra a história de Nwamgba, uma oleira de língua afiada que ousou enfrentar o pai, a ter um casamento arranjado. Casou sim, mas como quem ela escolheu. Essa mulher incrível, cujo marido foi assassinado, teve a preocupação em criar seu único filho de maneira altiva. Com a chegada dos missionários a Onicha, aldeia do interior da Nigéria, Nwamgba quis que seu filho aprendesse a língua do homem branco. Não porque a valorizasse, mas porque, à essa altura, ela já percebera que "certas pessoas dominavam outras, não porque fossem melhores, mas porque tinham melhores armas". Matriculou seu filho na escola dos brancos, e não demorou a perceber que não tinha sido uma boa escolha. Notou que a curiosidade tinha sumido dos olhos do menino, que agora, habitava um espaço mental que lhe era estranho. Quando o filho deixou de comer a comida da mãe, que segundo ele, era sacrificada a deuses pagãos e passou a tratar os não-cristãos como se tivessem uma doença contagiosa, Nwamgba sentiu que o tinha perdido de vez. A esperança só voltou a habitar seu coração quando a neta nasceu. Batizada pelo padre O'Donnell como Grace, a avó a chamava por "Afamefuna" - o meu nome não será perdido. O coração de Nwamgba encheu-se de alegria quando ela percebeu a curiosidade da neta por sua poesia, pelas histórias que contava e pela fabricação dos vasos de barro. A matrícula da menina na escola secundária, entristeceu a avó, que temia que os costumes dos brancos destruíssem o espírito combativo da neta, substituindo-o por uma rigidez sem curiosidade como fez com o pai. Na escola, Grace aprendeu que as cantigas que a avó cantava não eram poesia, pois tribos primitivas não tinham poesia. Grace riu tão alto do que considerava uma grande mentira e foi colocada de castigo pela professora. Foi esbofeteada pelo pai, em público, para que todos vissem como ele disciplinava seus filhos. A ficha da menina caiu quando, no Dia do Império, prestou atenção especial à letra do hino britânico que dizia "God bless our gracious King. Send him victorius, happy and glorious, long to reign over us" [Deus abençoe o nosso gracioso rei. Envie-o vitorioso, feliz e glorioso para longo tempo reinar sobre nós]. Um desprezo pelas beatices do pai foi nascendo da mesma maneira que adorava ouvir as histórias das aldeias. E em 1950, tomou a decisão de mudar do curso de química para o de história. Grace começou a perceber uma ligação clara entre educação e dignidade e entre as coisas duras e sérias que aparecem impressas nos livros e as coisas suaves e sutis que se alojam na alma. Depois de ouvir muitas histórias dos mais velhos e de pesquisar em arquivos empoeirados em Londres e Paris, Grace finalizou seu livro, "Pacifying with bullets: a reclaimed history of southern NIgeria" [Pacificar com balas: uma história reivindicada do sul da Nigéria]. Anos depois, quando apesar dos prêmios, dos amigos e do belo jardim, ainda sentia um desenraizamento, foi até o cartório de Lagos e mudou o seu nome. Segurando a nova certidão de nascimento, lembrou do dia da morte da avó, quando sentiu em sua mão, a mão áspera de quem passou uma vida inteira a fazer potes de barro. A certidão trazia o novo nome de quem se reconciliava com a sua história. Agora, oficialmente, a historiadora passaria a assinar "Afamefuna" - o meu nome não será perdido, nome que a avó lhe dera no dia em que nasceu.

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