sábado, 28 de fevereiro de 2015

Questionar, sempre!



o menino chegou excitado. a aula de história tinha sido sobre a formação da sociedade portuguesa no século XVIII, mas o tema que o impactou mesmo, foi o da inquisição.
- você sabia mãe, as pessoas eram queimadas vivas por pensarem diferente?! vc acredita que as fogueiras eram feitas no terreiro do paço?! ali mãe, naquele lugar lindo que você adora?! falava exaltado, num misto de afirmação e interrogação.
a conversa de tema tão difícil prolongou-se até a hora de dormir.
no apagar das luzes, o menino abraça a mãe e diz:
- mãe, obrigado por não  me impor uma religião e por me educar para questionar, sempre!
- dorme, menino! senão amanhã é aquela luta para te tirar da cama na hora da escola. desconversou a mãe, engolindo o choro.
(lisboa, dezembro de 2013)

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Negro é lindo!


desde que ele nasceu que eu escuto: "ainda bem que é menino, né? vai poder usar o cabelo bem curtinho." lembro dele aos 4 anos de idade dizendo para um negro lindo, cheio de dreads: "que cabelo bonito você tem!". depois foi zoado na escola por conta do cabelo e durante muito tempo só ia para aula de boné. há alguns anos vem ensaiando deixar o cabelo crescer, mas sempre alguém falava que estava feio e mandava cortar. nos últimos meses decidiu. creio que a decisão se fortaleceu depois de um evento que fomos cheio de dreads, blacks e crespos lindos. hoje, enfim, se encheu de coragem. isto não é só um penteado, é uma revolução estética e política na cabeça deste menino. são quase treze anos conversando e refletindo juntos sobre ser negro. estou emocionada! negro é lindo!



Cheiro bom de chuva



"Ele se esticava, rapava, com as patinhas para diante, arrancando terra mole preta e jogando longe, para trás, no pé da roseira, que nem quisesse tirar de dentro do chão aquele cheiro bom de chuva, de fundo."

(JGR, Campo Geral)

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Para criar passarinho...




"para criar passarinho há que deixá-los soltos para escolherem e esconderem seus ninhos entre árvores, varandas e telhados. É bom reparar, sem ansiedade, com distância, as suas pérolas postas em conchas de gravetos encarando ao azul, debaixo de árvores e sombras de renda"

(bartolomeu campos de queirós)

Minas em mim, Minas comigo, Minas...



o sol já vai alto, mas preguiçoso, ainda não dissipou a aragem fria da madrugada. a cidade ainda está silenciosa, o povo ainda dorme. aqui e ali sobe uma fumacinha de alguma chaminé. o pé de laranja que cresceu em frente a janela do quarto impede a visão do morro. o sábado foi intenso: aniversário, levantamento de bandeira, foguetório, rever parentes e amigos. o domingo também promete. agora, temos até um cachorro. a passarinhada dá sinais que começa a acordar. já é possível ouvir tambores tocando. os foguetes chamam os devotos. hoje tem congado. como diria são joão guimarães rosa, é brasil em ponto de dentro. é minas. minas em mim. minas comigo. minas.

(baldim, junho de 2014)

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Santa Clarice

"Se nada mais der certo leia Clarice", lição que aprendi lendo o escritor português José Eduardo Agualusa, apresentado por minha amiga Luciana Miranda, em Lisboa. Na verdade, eu já fazia isto. Quando os sentimentos ficam muito confusos, eu sempre leio Clarice. Ou eles se arrumam, ou bagunçam de vez. Perceber que não era só eu que fazia isto, me deu um alento... A literatura me salva...


Ontem, acordei com os sentimentos confusos, coração apertado, aquele nó na boca do estômago. Lembrei de Clarice. Fui reler "A paixão segundo G.H.". No livro a personagem se vê às voltas com uma barata.

Eu tenho horror a baratas! Odeio o que este inseto desperta em mim. Ter que matar a própria barata é tarefa das mais difíceis pra mim. A decisão tem que ser rápida, porque senão o inseto foge e você corre o risco de dormir com ele. Esta sensação também não é das mais agradáveis. Saber que está ali, em algum lugar da intimidade do seu quarto aquela barata...

O abismo de terror e nojo entre o espaço de avistar a barata e a decisão de matá-la tem que ser atravessado com a rapidez de segundos. É sempre uma confusão de sentimentos. Primeiro minha solidão é jogada na minha cara. Não tenho a quem recorrer, eu mesma tenho que engolir o nojo, a repugnância e o terror e matar a barata. Depois vem um sentimento de autossuficiência, de poder.  "Consegui, filha da puta!" - o palavrão sempre sai num espécie de desabafo preso na garganta. Em seguida, vem o alívio. Até nos depararmos novamente com outra barata. E são tantas que temos que matar pelo caminho...

No livro de Clarice, a personagem não só mata, como come a barata. Aí é libertação total! É como se você perdesse uma terceira perna, que lhe mantém de pé como um tripé, mas que lhe mantém imóvel, lhe impedindo de caminhar. Quando perdemos essa terceira perna, que embora nos mantendo de pé, nos mantém paralisados, é que percebemos o quanto ela era inútil e desnecessária.

Por isso sou devota de Clarice. Sigamos caminhando com nossas duas pernas e matando nossas baratas!

Que Santa Clarice continue inspirando seus devotos!

Bom dia!

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Baratofobia

ela era enorme e entrou voando pela janela. odeio quando elas aparecem. foram alguns segundos entre a hesitação e o golpe, mas pareceu uma eternidade. atravessei aquele abismo enorme de terror e nojo e com um golpe certeiro dei fim àquela agonia. odeio o que as baratas provocam em mim: solidão, fragilidade e força! tudo junto e misturado. puro horror!

(Foto capturada no google)

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

"Da alegria de se errar o caminho"




tal qual joão e maria, a mãe e o menino, andam pelas ruelas a deixar cair migalhas na esperança de não perderem o caminho de volta pra casa. mas a paisagem marcada como referência sempre escapa, e surge outra atrás da esquina, e outra, e mais outra e outros caminhos os atraem. perdem e se encontram o tempo todo... na verdade, a viagem é também para dentro de si.
(lisboa, setembro de 2013)

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Lembranças de Lisboa I

 O sábado foi de céu azul, sol visível e um calorzinho gostoso!
- ainda é o sol de inverno, muito baixo,  não é bom - explicou a portuguesa sentada ao meu lado, enquanto apreciávamos o som caboverdiano. A praça Martim Muniz lotada, todos espalhados pelo chão, feito lagartixas ao sol. Chineses, indianos, portugueses, brasileiros, skatistas, inúmeras tribos.
Um pouco mais à frente, no Terreiro do Paço, um grupo de espanhóis. Um bebê, sentado no chão catava pedrinhas e colocava em um baldezinho, desses de praia. Duas meninas de patins se movimentam pra lá e pra cá. Os adultos esticaram um corda e começaram a pular. Os adolescentes portugueses sentados perto de mim não resistiram e foram pular também! Do outro lado da praça os skatistas e suas manobras. Mais à frente uma família cujo cachorro cismava em espantar os pombos. Isso sem falar nas dezenas de pessoas sentadas junto ao Tejo, que neste dia estava com um azul diferente. Último mês nesta cidade e o coração começa a ficar apertado.

(Lisboa, maio de 2014)

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Milton convida Criolo

 “Eu estava lá em Berlim, mas meu coração estava aqui. Eu senti saudades de casa. Eu pedi a Deus um sinal. Ele mandou você pra mim: Milton! Milton!”

Assim cantou o rapper nos convidando a juntos chamarmos o anfitrião. Quando Bituca entrou o teatro delirou. A maioria do público parecia estar ali por conta dele. Muitos ainda não conheciam Criolo (como pode?).

Os dois começaram o show cantando juntos “a terceira margem do rio”, canção de Milton e Caetano inspirada no conto de Guimarães Rosa. Aí, é sacanagem! Ver Criolo se rendendo a Minas, a Milton e a Guimarães Rosa é demais para meu coração, principalmente num momento de volta pra casa.

Criolo ficou o tempo todo na posição de convidado, reverenciando o ídolo e anfitrião. Milton por sua vez, rendido a genialidade do rapper. É visível que essa parceria faz bem a ambos. Em dueto vieram “linha de frente”, “mariô” e “bogotá”, de Criolo; e de Milton, “morro velho”, “travessia”, “cio da terra”. O Show  teve ainda o solo de  Milton em “ponta de areia”, acompanhado de sua sanfoninha, presente da mãe, ainda na infância. Criolo cantou sozinho em “freguês da meia noite” e "não existe amor em sp". Para arrematar a participação de Júlia Vargas e sua voz maravilhosa.

No finalzinho Criolo nos salvou chamando-nos para frente do palco e nos libertando das cadeiras do Palácio das Artes, que embora confortáveis, naquele momento, prendiam quem queria dançar. Teve bis e tris… E depois, fila para o camarim. Não sei quem estava mais emocionado, se eu ou o menino.

Quando Guimarães Rosa morreu, Carlos Drummond de Andrade escreveu um poema onde diz que ficou sem saber se Guimarães Rosa era fábula ou se existiu de se pegar. Tão bom ver que nossos ídolos existem de se pegar. Milton saiu correndo, já passou dessa fase de receber fãs no camarim, já virou entidade. Criolo recebeu todos, sem pressa, posou para fotos, dividiu o lanche conosco. Confessei a ele que diante da indignação do menino, quando não tenho respostas para as suas perguntas, muitas vezes a gente senta juntos e escuta um rap. Ele então disse: “dá aqui um abraço”. Tirei uma foto dele com João. Na minha vez, um assessor disse, "deixa que eu tiro, assim vocês dois saem juntos na foto". Nossos braços de fãs enlaçaram as costas do ídolo. Ele nos puxou pra mais perto. Minha mão ficou sem lugar. A emoção era tanta, que meio encabulada, a pousei em seu peito.

Não, Criolo não é fábula, ele existe de se pegar!

(Baldim, junho de 2014)

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Plantadeira

o milho cozido, ainda quente, era segurado por um garfo espetado na espiga. sentado no degrau da sala para cozinha, o pequeno tinha um olho em mim e outro no milho.
- da última vez que estive aqui, não tinha milho, nem quiabo plantados - ele disse.
- fui eu quem plantou - respondi.
ele inclinou a cabecinha e me olhou incrédulo.
- você sabe plantar milho?
- uai... é só fazer a cova e jogar as sementes. depois tem que cuidar, regar, quando não tem chuva; capinar, quando o mato cresce.
- você sabe capinar também? ele ainda continuava na dúvida.
- uai... fui eu quem capinou essa rocinha aí.
entre uma bocada e outra, ele me olhava ainda meio espantado. quando terminou de comer, perguntou onde devia jogar o sabugo, agradeceu e disse:
- é, reparando bem, você tem jeito de plantadeira.




quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Permanente, só a mudança!


Enquanto embalava as poucas coisas que tinham, ela ia lembrando os “momentos de céu” que viveu naquela casa.

Lavar a louça acabou por se tornar um prazer, com a janela da cozinha emoldurando o verde do quintal, inclusive, o do vizinho. A mesma moldura, por onde contemplaram,  por tantas vezes, a lua cheia. Nessas noites, a mãe e o menino apagavam as luzes para admirar melhor, sempre com o mesmo espanto, como se fosse a primeira vez.  Às vezes, iam até a praia, para vê-la nascer, linda, atrás da ilha do Campeche. Da varanda lá de cima, assistiram o por do sol e o vermelho fogo que, nessas horas, se tornava o horizonte.


 Com a vizinha dividiu muito mais do que o quintal. Foram inúmeras as vezes em que ela a socorreu com seus chás - calmantes para parar o choro e ajudar na escrita dos trabalhos acadêmicos  e amargosos para o fígado e estômago nos dias que a TPM atacava. Isso sem falar nos mingaus e nos caldos quentes com os quais sua alma foi muitas vezes  aquecida.






O vizinho compartilhou muito mais que caronas para o supermercado e o sacolão. Com ele, a mãe dividiu o deslumbramento de cada brotinho verde que despontava no quintal, cada florzinha nova, cada frutinha. Sob os olhares atentos dos dois, a mãe e o menino procuravam cuidar da casa como se deles, fosse.
E os cachorros? O menino não chegava, nem saía sem falar com eles. Quando iam tomar banho no pet, ele ficava torcendo para chegar da aula primeiro do que eles. Assim, poderia recebê-los no portão. "Ah, mãe! Eles me recebem todo dia. Agora é a minha vez de retribuir a gentileza." – dizia o menino.





Andaram  tanto de bicicleta que não sabem mais viver sem uma. Lagoa do Peri, Armação, Matadeiro, foram inúmeros os passeios de bike. Isso sem falar no período, logo no comecinho, em que o menino ainda estudava longe. Foi a bike que os salvou, quando saíam, antes das 6h da manhã, ainda escuro, para pegar uma carona lá na avenida Pequeno Príncipe.





O galo e as galinhas do vizinho a levaram de volta para a infância, no interior de Minas, mas os aviões a lembravam que o mundo estava lá fora, e que não deveria esquecer que ainda há muito pra conhecer, muito pra descobrir... Assustada, às vezes ela dizia: - “Esse passou baixo demais”!

Aproveitou ainda para quarar a roupa na grama, pra ela ficar branquinha, como ela aprendera com a mãe. Poder secá-la ao sol, então... que maravilha! Nada de recolher a roupa correndo, a cada vez que ia usar o fogão...

E o silêncio do Campeche? Só mesmo o latido dos cachorros, o cacarejar das galinhas  e o som dos cortadores de grama para lembrá-los que ali, morava gente!

Mas agora é hora de ir conhecer outro canto e fazer outras amizades...

É, ser nômade tem suas vantagens...

(Campeche, Florianópolis, julho de 2012)

Tião



As mãos negras, ainda calejadas, carregam as marcas de uma vida inteira forjada no cabo da enxada. Agora, com sua roupa limpinha e a bolsa de agente de saúde à tiracolo, ele vai de casa em casa, feliz da vida, ainda tentando entender por que passou uma vida inteira convencido que só tinha competência para o trabalho pesado.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Pouso


tá batendo uma vontade de ter um cantinho...minhas sempre-vivas e a jarrinha do jequitinhonha  estão sem lugar.meu livros espalhados pelas casas dos amigos, o são benedito guardado na caixa. quero um lugar para a espada de são jorge, para os vasinhos de cebolinha e salsinha. preciso pendurar a pomba do divino. tô querendo um pouso...

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Carta de Lisboa

A carta que gostaria de ter escrito para mamãe contando da experiência de morar em Lisboa - se ela estivesse viva.

Lisboa, 4 de junho de 2014.

Oi mãe,
Daqui a 2 dias estarei embarcando de volta. Viu? Nem demorou tanto assim. A senhora sempre fica angustiada quando um filho vai pra longe…
Mãe, a senhora teria gostado tanto de Lisboa.



Ia poder escolher em qual igreja ir à missa. São tantas por aqui. É possível ouvir o sino marcando as horas. Ia pirar na feira da ladra; é tanta coisa, mas tanta coisa, que os caraminguás da pensão da senhora iam ficar todos lá. Posso até ver seus olhinhos brilhando nas toalhas com motivos portugueses.


Mãe, engordei 3 kg. Também pudera, os portugueses comem bem demais. Sabe o bacalhau que a senhora tanto gosta? Não, não são aqueles fiapinhos,  salgados toda vida, que a senhora sempre faz na semana santa, não! São postas enormes, como a enir levou uma vez da ilha da madeira e preparou pra gente, lembra?

Não teve uma vez que eu comi que não lembrei da senhora. Isso sem falar nas azeitonas. Tem uma preta, descaroçada, dos deuses, mãe. Eu não gostei foi dos doces, prefiro os nossos. Tem um pastel aqui, super famoso, que é na verdade um doce. Como pode? Chamar doce de pastel. Pastel bom mesmo é das filhas da Bilinha né, mãe? De carne, de queijo e com pimenta, então… Que saudade!


Mãe, a senhora ia fazer tantos amigos por aqui. Se bem que, moderna e antenada como a senhora é, ia gostar mesmo é dos meus amigos. Fiz vários! A senhora precisa ver: tem uma chinesa que morou no brasil, em nova iorque, pelo mundo à fora. É sabida toda vida! Tem outra mãe, que mora no rio de janeiro e fala inglês fluentemente, morri de inveja dela. Os textos em inglês que eu tive que ler, ela sentou comigo e leu todos, na maior paciência. E uma outra, me deu mil dicas legais de lisboa, me levou em cada canto bacana, a senhora precisa ver. Tem ainda outra, também do rio de janeiro, linda de viver! Ah, e agora no finalzinho conheci uma professora da queza. Mãe, que mulher interessante! Foduça, sabe? Humana e sensível.Tem um filho, bonito! Ele chegou a dar um rolê de skate com o João. Quase morremos do coração com as manobras dos dois. Também ganhei uma irmã, mãe. Temos tantas afinidades! Sabe aquela cumplicidade que eu e a senhora temos? Aquelas coisas que só a senhora me entende? Com ela é assim, mãe. Juntas nos emocionamos, nos indignamos, nos embrabecemos. Já vi o olho dela se encher de água ao ouvir minhas histórias e o meu já encheu de água ao ouvir as dela. Ela tentou disfarçar, mas eu percebi. Eu falei da senhora pra ela. Ah, a senhora sabe que eu sempre falo da senhora pra todo mundo, fazer o quê, né? Ah, tem também um menino do espírito santo. Eu fiquei impressionada, como é possível caber tanta simpatia numa pessoa só? Ah, também conheci uma outra professora, bonita toda vida. Veio com a filha, quase da idade do João. A menina dela nos salvou em vários momentos tensos, sempre com uma boa ideia pra acalmar os ânimos. A senhora precisa ver que gracinha!

Mãe, a cidade é tão linda! Não teve um dia que não me encantei com o rio. Azul como o mar. Ele abraça a cidade, sabe? E os parques? A senhora ia adorar fazer piquenique, como a gente fazia no cerrado, lembra? Aqui, eles fazem muito. É o céu estar azul e o sol visível que vai todo mundo pra rua. Alguma s pessoas ficam até, de soutien. Assim,  de boa! A Senhora precisa ver, só não sei se ia gostar.

Mãe, se a senhora gostou do aquário do zoológico de BH, fico imaginando a senhora no oceanário. Tem de tudo, de peixinho pequetitinho, até tubarão. Uma coisa! A gente senta em frente e fica vendo eles passarem pra lá e pra cá e se esquece da vida.

Acho que a senhora também ia gostar de passear de barco, de andar de trem (aqui eles chamam de comboio), são super confortáveis, uma beleza! Não sei como pode uma cidade ter tanta opção de transporte: ônibus, trem, metrô. E tem ainda, o bonde, que é um charme, só! Mas não pode pegar quando se tem pressa não, mãe. Porque ele vai numa vagareza! Nessas horas a gente aproveita para ir apreciando a paisagem que é linda demais!


Deu tudo certo viu, mãe? O meu professor/orientador foi um amor e me recebeu super bem, uma gentileza, só! É sabido toda vida. A senhora precisa ver, ele escreve em inglês, francês, uma coisa! Uma sabidice que até irrita. Adorei trabalhar com ele. Parece que ele gostou de trabalhar comigo, também. Ele comentou com uma amiga que me contou, escondido. Bobagem, né? Elogio tem que ser público, a senhora não acha?

A minha senhoria (aqui, é assim que eles chamam o proprietário da casa que a gente aluga) também foi um amor. A senhora precisa ver. Um carinho comigo e com o João. Todo dia uma prenda, sempre passava pra saber se estava tudo bem.

Mãe, vou parando por aqui, porque senão não sobra nada para contar pessoalmente. Daqui a pouquinho tô chegando aí. Fica com deus, viu?

Bença.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

"Eta vida besta, meu deus"








à beira da estrada, o verde das árvores sumiu debaixo da poeira vermelha da falta de chuva. de um lado a serra de baldim, do outro, o sol, sem nenhum impedimento, vai descendo no horizonte. um cidade sem prédios. os cachorros convivem sem problemas com as galinhas soltas, ciscando no meio do caminho. dois pés de bouganvile floridas conferem ainda mais beleza à simplicidade da casinha. ainda é cedo, mas seu zé janta, sentado na porta de casa, com a panela na mão. a cerca em frente funciona como varal para o terno, à espera do dono. na parede a informação sobre o horário do culto: 19:30h.




no pasto os meninos e suas pipas disputam espaço com as vacas. vão voltar cheio de carrapatos. o sol vai descendo por entre as traves improvisadas do campinho. no meio da rua dois cacos de tijolos marcam o gol. um menininho tenta segurar a coleguinha na bicicleta sem rodinhas.







o presépio ainda está montado aos pés do cruzeiro. seu joaquim molha as plantas ao redor da casa. o pé de tamarindo está carregadinho e o de mamão, também. um cheiro de feijão novo cozido se espalha no ar.
"êta vida besta meu deus"...

Cardápio







"Olha, antigamente, quando chovia encarreirado igual tá chovendo agora, eu gostava de pedir à mãe para fazer mingau de fubá. A gente bebia e se enfiava debaixo das colchas para escutar chuva e ser feliz"

Adélia Prado definindo meu cardápio.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Levanta e anda!

o exame estava marcado e eu pegando no pé para ele estudar todo dia um pouquinho e não deixar acumular. o menino pega o livro de história e geografia de portugal e se enfia debaixo das cobertas. o termômetro marca 15º. não demora e começam os questionamentos:

- olha isso mãe, da forma como está aqui, parece que os bandeirantes eram caras legais. como assim? eles matavam e escravizavam os índios!

quando chega na parte da escravização dos negros a indignação aumenta ainda mais. o menino se reconhece, se solidariza. já foi chamado de negro na escola, já foi zoado por conta do cabelo.

- mãe, mas do jeito que está escrito aqui parece que a escravização de negros era a coisa mais natural do mundo; tipo assim, sem violência, sabe? como assim?

eu já ficando perturbada.

- mãe, se eu tivesse nascido naquela época eu teria morrido na fogueira também!

o que fazer com tanta indignação? soma-se a isso a experiência do (ex)colonizado, agora, diante do (ex)colonizador. “zuca”, de brazuca é o apelido que ganhou na escola, ou melhor “sobrenome”, senão é acusado de não falar português, mas brasileiro.

- mãe, não dou conta de estudar isso, não! me dá muita raiva!

chamo então, o menino para a frente da tela do computador. ops! para frente do 'ecrã do portátil' e coloco um rap para ele ouvir: “quem costuma vir de onde eu sou, às vezes não tem motivos pra seguir, então levanta e anda, vai! levanta vai! levanta e anda!"

é isso que você precisa fazer com a sua raiva, filho: "levanta e anda!"

“então, cerra os punho, sorria! e jamais volte pra sua quebrada de mão e mente vazias”! entendeu, filho? nós não temos saída. é seguir em frente!

e o menino foi se acalmando. os olhos presos na tela. ouviu todas as músicas do novo cd do emicida, "o retorno de quem nunca este aqui". nem piscava enquanto elisa lucinda recitava junto com o rapper, o poema "sou milionário do sonho". a trilha sonora escolhida por ele ainda teve “ a carne”, “zumbi” e todas de paulo césar pinheiro, no musical besouro.

o livro de história ficou lá, jogado em cima da cama. quando a adrenalina baixar, ele retoma o estudo…

(lisboa, 8 de maio de 2014)