domingo, 22 de janeiro de 2017

O que tem que nascer caça jeito

"Vivemos um mundo infame. Não incentiva muito. Um mundo mal nascido. Mas existe outro mundo na barriga deste. Esperando..."
Quem disse isso, foi Eduardo Galeano, em 2011, durante a ocupação da praça Catalunya, em Barcelona.
Em tempos sombrios é preciso acreditar que algo melhor vai acontecer.
Clarice, no belo conto "Uma esperança", fala da fragilidade da esperança concreta, o inseto verde. Mas que também serve para a outra, a abstrata: "ela quase não tem corpo, só tem alma", "é meio burrinha, hesitante"; "não tem olhos, é guiada pelas antenas", "mais pousa que vive", "é ilusória, mas é ela que nos sustenta sempre".
Hoje foi um dia bom, dia de aula. E a sala de aula sempre renova minhas esperanças.
Recebemos para uma conversa a Carol e o Danilo, dois estudantes que ficaram 59 dias na Ocupação FaE/UFMG. Os dois jovens falaram sobre a experiência política e pedagógica da ocupação e as aprendizagens delas decorrentes. Apesar de não ter conseguido barrar a Pec 241/55, nem a reforma do ensino médio, formam muitos os ganhos, mas de outra ordem.
Danilo disse que aprendeu mais nos dias de ocupação do que em todos os períodos já cursados. Carol falou da experiência das comissões, das relações horizontais, das assembleias e das discussões sobre o papel da universidade.
Miguel Arroyo diz que quando a teoria pedagógica se encontra com os sujeitos da ação educativa, ela se revitaliza. As ocupações possibilitaram aos estudantes vivências existenciais como sujeitos políticos, cognitivos, sociais, culturais, emocionais, de memória coletiva, etc, é o que nos afirma Camila Gimenes. Uma experiência que possibilitou aos ocupantes tomarem para si os processos educativos e de construção de si mesmos.
Hoje, na conversa com a Carol e o Danilo, eu lembrei da fala do Galeano, citada acima. Vivemos um mundo de merda, como ele diz, mas a experiência das ocupações nos mostrou que um outro mundo é possível. Um outro mundo que nos espera. Este mundo horrível que aí está, está grávido de outro. "Que é um mundo diferente. Diferente e de parto complicado. Não é fácil o nascimento. Mas com certeza pulsa no mundo que estamos. Um mundo que 'pode ser', pulsando no mundo 'que é'."
Daí, lembrei de um poema de Adélia Prado:
"O que precisa nascer
tem sua raiz em chão de casa velha.
À sua necessidade o piso cede,
estalam rachaduras nas paredes
os caixões de janela se desprendem.
o que precisa nascer aparece no sonho buscando frinchas no teto,
réstias de luz e ar.
Sei muito bem do que este sonho fala
e a quem pode me dar
peço coragem."
(Alvará de demolição)
O que tem que nascer, caça jeito.
Hoje, uma esperança pousou em mim, e como Clarice, nesses momentos, é melhor ficar quietinha para não espantá-la:

Dona Geralda

Da cozinha ouço alguém me chamar na rua. Corro ao portão. É Dona Geralda, no meio do caminho entre a sua e a minha casa.
- "Ô Dalva, ocê tá muito ocupada?"
- "Tô não, Dona Geralda."
- "Corre aqui em casa, fazendo favor."
Vou até ela e ofereço o meu braço para ela se apoiar. Seu passo, agora mais lento, nem parece daquela mulher que, na minha infância, buscava feixes e mais feixes de lenha no cerrado.
-" Meu joelho está cada dia mais duro, Dalva. Num sei o que faço mais não."
- " É falta de forró, Dona Geralda!"
Brinco com ela, que já ganhou vários troféus ao lado do marido, nas competições de forró na época do Varanda's Bar.
Sua casa está impecável. Vamos até a cozinha. Ela tira um prato do armário, destampa as panelas e me manda servir.
- "Enche esse prato direito, viu?. Seu menino num chegou de viagem?"
Esse mundo ainda tem jeito, não tem?

"Aprendamos o rito"



Uma das coisas que aprendi com meus irmãos e irmãs congadeiros foi a necessidade do rito. Não se come sem rezar, não sai da mesa sem agradecer, principalmente a quem preparou o alimento. Nos banquetes coletivos nas festas de congado, as cozinheiras são sempre reverenciadas. Cada guarda, depois de alimentada, chama todo o pessoal da cozinha e canta pra eles:
"Obrigada, Cozinheira
Que fez a comida com alegria
Essa comida é igual
A que São Benedito fazia."
São Benedito é o padroeiro da cozinha, o santinho preto dos congadeiros.
Hoje, acordei cedo, fui à padaria nova e comprei gostosuras. Na volta, colhi um raminho de flores na porta do vizinho. Já em casa, tirei a toalha com motivos inspirados nos bordados portugueses, comprada na Feira da Ladra, em Lisboa e preparei a mesa do café.
É que o menino voltou pra casa (até parece a parábola do filho pródigo hahaha). Foram apenas 10 dias longe, mas meu coração está amolecido como um figo na calda. Com ele em casa novamente, a bagunça voltou, é certo. O skate está na cozinha, os tênis no meio do quarto. Mas voltaram também, as conversas intermináveis:
"Mãe, preciso te mostrar essa banda nova que conheci"; "Senta aqui para eu te contar dos rolês."
E disputamos quem conta primeiro as novidades.
"Foi interessante você andar pela zona sul para desconstruirmos um pouco o nosso preconceito com o povo da "ponte pra lá", eu disse.
E ele: "Sim, e também para eles saberem que nós existimos."
Com a mesa posta, lembrei de um poema do Saramago:
"Põe na mesa a toalha adamascada,
Traz as rosas mais frescas do jardim,
Deita o vinho no copo, corta o pão,
Com a faca de prata e de marfim.
Alguém se veio sentar à tua mesa,
Alguém a quem não vês, mas que pressentes.
Cruza as mãos no regaço, não perguntes:
Nas perguntas que fazes é que mentes.
Prova depois o vinho, come o pão,
Rasga a palma da mão no caule agudo,
Leva as rosas à fronte, cobre os olhos,
Cumpriste o ritual e sabes tudo."
Eu, mulher de pouca fé, tenho aprendido sobre a necessidade de ritualizarmos mais as nossas vidas.
Bom domingo pr'ocês!

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Cidades visíveis, amores possíveis

Comecei o dia lendo Calvino, tentando entender minha relação com algumas cidades. É que, no final de semana, assisti a série "Quatro Estações em Havana". Quatro episódios inspirados em quatro novelas do cubano, Leonardo Padura, e ainda estou bastante impactada. Assistir à série, despertou em mim, emoções vividas há cerca de dois meses, quando estive em Havana. Cuba era amor antigo, alimentado durante anos, desde a adolescência e que enfim, tive a oportunidade de viver. Um lance rápido, mas intenso, com gostinho de quero mais.
Lisboa, por quem alimento um desejo enorme de reencontro, foi amor maduro, complexo, cujos defeitos não me impediram de enxergar suas inúmeras qualidades. Amor ainda vivo no peito.
Florianópolis foi um amor estranho, nunca fomos íntimas, nunca consegui chamá-la de Floripa. Há cerca de um ano, oficializamos nossa separação. Separação consensual, sem grandes crises, mas que deixou um rebento, minha tese, que como um filho, vai nos manter atadas pra sempre.
Viçosa foi amor tranquilo, calmo, sem cobranças. Um gostar de estar junto e só, satisfeitas com o que cada uma tinha para oferecer.
BH foi amor intenso. Me apresentou o teatro, o cinema, a universidade, o mundo; um amor enorme, mas que passou. Mudamos. Mudei eu, mudou a cidade. Hoje, somos quase estranhas.
Baldim foi primeiro amor. Lugar do meu afeto, do primeiro beijo, das primeiras descobertas. É, tipo aquele amor que se você der mole, ainda rola alguma coisa...

O viajante volta já!

Quando fui morar em Lisboa comprei 2 livros que me acompanharam durante toda a viagem. O primeiro foi "Lisboa: o que o turista deve ver", de Fernando Pessoa, uma espécie de guia, escrito em 1925. Por causa desse guia, fiz com o Menino, o passeio de barco no Tejo, só para ver a cidade a partir do rio:
"Para o viajante que chega por mar, Lisboa, vista assim de longe, ergue-se como uma bela visão de sonho, sobressaindo contra o azul vivo do céu, que o sol anima", escreveu Pessoa, nas primeiras páginas do guia. E eu, quis conferir.
O outro livro é "Viagem a Portugal", do Saramago. O escritor percorreu todo o pais para escrevê-lo. A cada cantinho de Lisboa ou dos arredores que conhecia, eu ia até o livro ver se minhas impressões batiam com as do escritor.
Eu não tenho perfil, nem dinheiro para turista. Gosto mesmo é de ser viajante, de gastar sola de sapato, de ficar um tempo no lugar, conhecer seus moradores, viver como eles vivem, de comer o que comem. Para Saramago, viajar é coisa tão séria, que viajante deveria ser profissão.
Pra mim, a palavra é como Paulo Freire ensina, praxis. Por isso gosto de dizê-la. A poeta Emily Dickinson diz que uma palavra não morre quando dita, pelo contrário, ela nasce. Por isso gosto de dizer, de palavrar, como diz, Pessoa.
Freire diz que, aprender a dizer a sua palavra é assumir-se sujeito da sua história. Por isso, penso que um projeto de sonho seria escrever um livro, nos mesmos moldes de "Viagem a Portugal", sobre Cuba. Como tudo começa com um desejo, quem sabe um dia?

domingo, 15 de janeiro de 2017

Patrimônio imaterial


Ontem, no final do dia, lá fui eu pra mais uma caminhada. Desta vez, com Zeca Baleiro cantando, profeticamente, pra mim:
"Ando tão à flor da pele,
Que qualquer beijo de novela me faz chorar,
Ando tão à flor da pele,
Que teu olhar, flor, na janela me faz morrer,
Ando tão à flor da pele,
Que meu desejo se confunde com a vontade de não ser,
Ando tão à flor da pele,
Que a minha pele tem o fogo do juízo final.
Um barco sem porto,
Sem rumo,
Sem vela,
Cavalo sem sela,
Um bicho solto,
Um cão sem dono,
Um menino,
Um bandido,
Às vezes me preservo noutras suicido."
Na ida, apesar da paisagem conhecida quase de cor (de coração), fui me espantando com as florzinhas, o cachorro no meio do mato, as roupas secando na cerca feito varal. 

Lembrei de Gilberto Gil:
"Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato
Da caatinga do roçado
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigos
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado"...
Lembrei também de Manoel de Barros:
"Fui criado no mato e aprendi a gostar das
coisinhas do chão –
Antes que das coisas celestiais."
Na volta, a pergunta de costume:
"Cadê a foto?"
E eu já envergonhada
"Vou imprimir, vou imprimir! Até o natal elas chegam."
Na varandinha, recém-inaugurada, as máscaras da folia de reis são adorno. Não resisto e peço para tirar uma foto. A meninada junta e pede:
"Tira uma foto nossa?"
"Tira uma minha com meu pai?"
"Tira minha?"
'Tiro, tiro."
"Pai, vem cá! Vem tirar uma foto comigo."


O pai, capitão de congado e mestre da folia de reis, surge na porta, senta no sofá e juntos fazem pose. A menina corre até sua casa para buscar o arquinho de laço para se enfeitar e toma das minhas mãos as flores que apanhei passando embaixo de cerca, correndo de vaca, com medo de cobra, enquanto me embrenhava no mato. Emprestei o buquê e o quadro se formou, dos mais belos que já vi.
Amigos veem as fotos que posto e às vezes se decepcionam quando chegam em Baldim. "Nas fotos é mais bucólico", já ouvi. Ou: "Você faz propaganda enganosa." Ou ainda, "Não gostei de Baldim quando estive lá, não tem nada." Como assim, não tem nada? Vocês não veem? Para além da rua pedregosa e poeirenta, para além do lixo espalhado, das casinhas sem acabamento, tem beleza, muita beleza. Mas é como diz o poeta:
"Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela."

No último dia 6, a Folia de Reis foi declarada patrimônio imaterial de Minas Gerais. O patrimônio cultural de um país representa o conjunto de bens que preservam histórias e tradições. A Constituição Federal de 1988, a mesma que está sendo rasgada todos os dias pela quadrilha que tomou de assalto o país, ampliou o conceito de bens culturais incluindo o patrimônio imaterial, que são histórias e tradições que ajudam a construir a identidade de um povo.
Em Minas Gerais, também são considerados patrimônios imateriais, o modo de fazer queijo na região do Serro e da Serra da Canastra, o toque dos sinos e o ofício de sineiro e a Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Dois desses patrimônios estão presentes em Baldim. Isso, graças à perseverança e a resistência dessa gente simples, que mora nas bordas da cidade. Os irmãos que pediram para tirar a foto são filhos de um dos mestres da folia, que também é capitão da Guarda de Congo. Um deles, inclusive, é capitão mirim.

Eu penso que isso tinha que ser publicizado nas escolas do município, essas crianças tinham que ser homenageadas, os mestres deveriam receber uma ajuda financeira.
Uma das vantagens do reconhecimento como patrimônio imaterial é justamente a possibilidade de obter benefício de políticas públicas, mas cadê o reconhecimento? Essas crianças tinham que dar aulas para seus colegas, esses mestres tinham que ser recebidos pelo poder público.
Minha amiga, Norma, contou que recebeu em sua casa a Folia Mirim. A caixa era um balde e a bandeira uma camiseta com estampa de Nossa Senhora do Carmo. Esses meninos não tinham que ser incentivados? Isso não é matéria que deveria ser discutida na escola? Fazer parte das aulas de história? Esses mestres da cultura popular não tinham que ser homenageados, valorizados? Não mereciam bolsas da prefeitura municipal, da secretaria de cultura?
Mas esse saber, considerado patrimônio imaterial, é desprezado. Os mestres não são valorizados. Mestres que constroem teorias que explicam o mundo. Esse povo que consegue viver com pouco e que ainda assim, faz arte, compõe música, toca instrumentos.

Você já escutou uma folia de reis? São sete vozes. Aquilo é de uma sofisticação... Já presenciou um encontro de guardas de congado, cada uma tocando sua marcha e cantando seus cantos, sem desafinar ou se confundir com da outra? Isso é cultura, como diz a capitã Pedrina, cultura de muita profundidade. Cultura desses fazedores que vivem nas bordas das cidades, abandonado pelo poder público, mas cheios de potência.
Por isso, entendo o escritor Raduan Nassar (que nos últimos tempos não me sai da cabeça), que no auge de sua carreira literária abandonou tudo e foi criar galinha, plantar milho. Ele, que não deu conta da afetação do mundo da cultura e preferiu a autenticidade do povo simples. Esse mesmo povo que encantou Guimarães Rosa, Que encantou Euclides da Cunha. Euclides, que quando chegou em Canudos, chamou o povo de sub-raça, mas que na hora de voltar pra casa, voltou convencido de que "o sertanejo é antes de tudo, um forte!"

sábado, 14 de janeiro de 2017

"Solidão? Que nada!"

Voltei para Baldim e o menino ficou em BH. Meu irmão saiu pra rua. Mas quem disse que eu tô sozinha? Zeca Baleiro e Ceumar já cantaram pra mim. Mariana Botelho leu seu poema no sound clound. Já conversei com Vânia e Ariele por mensagem. Estou desde cedo às voltas com Raduan Nassar - que tem me habitado há vários dias - e Micheliny Verunschk que acabei de conhecer e já amo de paixão. Fora Scooby e Fridinha que não me abandonam por nada desse mundo. Quer dizer, quase nada... Se tiver comida no meio (um ossinho, uma sobra de prato, uma muxiba) eles me deixam no vácuo.

"É preciso não ter filosofia nenhuma"


Há mais de um mês que não fazia a minha caminhada. Hoje, consegui vencer aquela vozinha interior que me convenceu durante tanto tempo a não ir. Coloquei os fones de ouvido e Ceumar foi me embalando:
"Divinha o que primeiro
vem amor ou vem dindim
dindinha, dê dinheiro
carinho e calor pra mim"...
Algumas semanas e o trajeto está todo diferente. Alberto Caeiro tem razão:
"Não é o bastante não ser cego
para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma."...
As mangas praticamente acabaram. A horta da Dona Maria continua bem cuidada. Os pés de mamão, ao contrário do que nasceu aqui, junto da janela azul, estão carregadinhos e o pés de quiabo já produzem. A casa abandonada onde os meninos faziam as janelas de alvo, agora tem moradores novos e está toda cercada com uma cerca linda, de bambu. Os filhotinhos da cadela preta nasceram..Já estão todos serelepes pela rua. Os tamarindos da casa da Maria Geralda também acabaram. A trave do campinho foi refeita e a casa dos meninos que moram em frente, agora tem uma varanda. Um deles me cobrou as fotos que tirei e nunca entreguei. "Cadê as fotos"? O menorzinho me perguntou, pela milésima vez, assim que me viu. E eu dei a mesma resposta de sempre: "Vou imprimir e trazer pra vocês. Ficaram lindas!" Ele sorriu, resignado.
O caminho é o mesmo, mas eu sempre me espanto, como se fosse a primeira vez. Sempre tem uma florzinha nova, hoje tinha umas brancas, lindas. Perdi o auge da floração dos bem-me-queres do lote vago. Mas ainda tem uma florzinha aqui e acolá. "Na volta eu colho", pensei.
O caminho está todo margeado com aquelas florzinhas amarelas, de carrapicho. "Isso não é flor, é mato!" meu irmão, sempre diz. Eu retruco: 'Como que é mato? É flor! Tem caule, folhas, pétalas!" Ele abandona a discussão, mas não sai convencido.
Os pés de jamelão estão carregadinhos e cheio de crianças com as roupas todas manchadas de roxo do caldo da fruta. Quando chego no trevo, Ceumar canta em meus ouvidos:
"O amor me veste com o terno da beleza
E o saloon da natureza
Abre as portas preu dançar
Diz o que tu quer que eu dou
Se tu quer que eu vá eu vou"...
Na volta enfrento o mato alto para colher os bem-me-queres. Piso com cuidado, com medo de cobra. Aqui, meus medos são outros. Tão diferentes dos medos da metrópole. O cheiro da fumaça dos fogões a lenha e da gordura de porco anunciam que já é hora da janta.
Quando chego no portão, Fridinha me recebe como se eu estivesse, há tempos, longe de casa. É sempre assim, não importa quando tempo demoro, se 1 hora ou 1 mês. E eu, que até pouco tempo não conhecia o afeto dos bichos. Hoje, completamente convertida aos cães, me comovo com essa cadelinha que, até um tempo atrás, quando a encontrava pela rua, evitava olhar nos olhos, certa de que, se isso acontecesse, eu cairia de amores. Dito e feito. Foi olhar pra ela e trocamos o segredo que liga os humanos aos animais.

domingo, 8 de janeiro de 2017

Viva Santos Reis

Desta vez não deu para encontrar com tia Mariinha, que por conta de um compromisso, não ficou para o remate. Uma pena! É sempre muito bom compartilhar das histórias e do bom humor da irmã mais velha de papai. Hoje, com 94 anos e uma lucidez e energia de fazer inveja a muito jovem.
Como passamos pelo Guará para cobiçarmos a casa sede da fazenda onde papai trabalhou como meeiro, nos atrasamos. Mas ainda deu tempo de encontrarmos com tio João e vários primos e primas.
O povoado de Santo Antônio do Baú, município de Jequitibá, começou a partir da partilha de terras entre as irmãs Maria Rosa (minha bisavó), Madalena e Teresa, filhas da minha tataravó, Filomena, "negra cativa", que ganhou cerca de 30 hectares de seu proprietário. A folia de reis do povoado foi fundada há 67 anos, entre outras pessoas, por meu pai e meu tio.
Nos distraímos com o café, bolo e biscoitos servidos na varanda da casa do primo Dico, e desta vez, perdemos o "backstage" do ritual. É sempre bom, ver os foliões se reunindo, afinando os instrumentos no QG, sediado na casa do Seo Zé Gomes.
Pegamos a folia a caminho da capela. Antes de iniciar o ritual, a reverência à bandeira. Em volta da capela uma multidão aguardava. Gente de toda a região. O espaço demarcado estava enfeitado com bambus e bandeirinhas. Na cozinha, anexa ao salão onde acontecem as danças, homens e mulheres já estavam a postos para servir a comida. Por várias vezes vi meu tio João, 81 anos, com os olhos marejados. Meu irmão também suspirava fundo engolindo o choro. Eu, mulher de pouquíssima fé, fico comovida até as lágrimas com a devoção desse Brasil profundo.
Depois do ritual das rosas, onde os três reis magos reverenciaram a Sagrada Família, ainda teve adoração ao presépio dentro da capela. Depois, já fora da igrejinha, fomos todos para o salão, construído ao lado da capela para um dos momentos mais esperados: o lundu. Um momento de muita emoção foi quando a caravana cantou para os falecidos. Seo Zé Gomes, de joelhos, reverenciando a memória dos que já se foram.
Depois foi servido o banquete coletivo. Isso é das coisas mais interessantes das festas populares: sem área vip, sem seguranças, sem PM's, onde todo mundo que chega come, e bem! Feijão tropeiro, arroz, carne cozida com batata, refrigerante e sobremesa, porque na cozinha mineira não pode faltar doce. Há 67 anos, cumpre-se o mesmo ritual. Eu fico muito orgulhosa em saber que tudo isso teve início com meus ancestrais, principalmente minha tataravó Filomena, minha bisa, Maria Rosa, meu pai, Seo Zezinho e que, de alguma forma continua no sentimento que nutrimos (eu, minha irmã, Luia e meu irmão, Zezé) pelos peregrinos dessa Caravana de Santos Reis!
Em tempos de barbárie eu me comovo ainda mais com a fé, a devoção e a solidariedade desse Brasil profundo.
Viva Santos Reis!
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