domingo, 15 de janeiro de 2017

Patrimônio imaterial


Ontem, no final do dia, lá fui eu pra mais uma caminhada. Desta vez, com Zeca Baleiro cantando, profeticamente, pra mim:
"Ando tão à flor da pele,
Que qualquer beijo de novela me faz chorar,
Ando tão à flor da pele,
Que teu olhar, flor, na janela me faz morrer,
Ando tão à flor da pele,
Que meu desejo se confunde com a vontade de não ser,
Ando tão à flor da pele,
Que a minha pele tem o fogo do juízo final.
Um barco sem porto,
Sem rumo,
Sem vela,
Cavalo sem sela,
Um bicho solto,
Um cão sem dono,
Um menino,
Um bandido,
Às vezes me preservo noutras suicido."
Na ida, apesar da paisagem conhecida quase de cor (de coração), fui me espantando com as florzinhas, o cachorro no meio do mato, as roupas secando na cerca feito varal. 

Lembrei de Gilberto Gil:
"Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato
Da caatinga do roçado
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigos
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado"...
Lembrei também de Manoel de Barros:
"Fui criado no mato e aprendi a gostar das
coisinhas do chão –
Antes que das coisas celestiais."
Na volta, a pergunta de costume:
"Cadê a foto?"
E eu já envergonhada
"Vou imprimir, vou imprimir! Até o natal elas chegam."
Na varandinha, recém-inaugurada, as máscaras da folia de reis são adorno. Não resisto e peço para tirar uma foto. A meninada junta e pede:
"Tira uma foto nossa?"
"Tira uma minha com meu pai?"
"Tira minha?"
'Tiro, tiro."
"Pai, vem cá! Vem tirar uma foto comigo."


O pai, capitão de congado e mestre da folia de reis, surge na porta, senta no sofá e juntos fazem pose. A menina corre até sua casa para buscar o arquinho de laço para se enfeitar e toma das minhas mãos as flores que apanhei passando embaixo de cerca, correndo de vaca, com medo de cobra, enquanto me embrenhava no mato. Emprestei o buquê e o quadro se formou, dos mais belos que já vi.
Amigos veem as fotos que posto e às vezes se decepcionam quando chegam em Baldim. "Nas fotos é mais bucólico", já ouvi. Ou: "Você faz propaganda enganosa." Ou ainda, "Não gostei de Baldim quando estive lá, não tem nada." Como assim, não tem nada? Vocês não veem? Para além da rua pedregosa e poeirenta, para além do lixo espalhado, das casinhas sem acabamento, tem beleza, muita beleza. Mas é como diz o poeta:
"Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela."

No último dia 6, a Folia de Reis foi declarada patrimônio imaterial de Minas Gerais. O patrimônio cultural de um país representa o conjunto de bens que preservam histórias e tradições. A Constituição Federal de 1988, a mesma que está sendo rasgada todos os dias pela quadrilha que tomou de assalto o país, ampliou o conceito de bens culturais incluindo o patrimônio imaterial, que são histórias e tradições que ajudam a construir a identidade de um povo.
Em Minas Gerais, também são considerados patrimônios imateriais, o modo de fazer queijo na região do Serro e da Serra da Canastra, o toque dos sinos e o ofício de sineiro e a Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Dois desses patrimônios estão presentes em Baldim. Isso, graças à perseverança e a resistência dessa gente simples, que mora nas bordas da cidade. Os irmãos que pediram para tirar a foto são filhos de um dos mestres da folia, que também é capitão da Guarda de Congo. Um deles, inclusive, é capitão mirim.

Eu penso que isso tinha que ser publicizado nas escolas do município, essas crianças tinham que ser homenageadas, os mestres deveriam receber uma ajuda financeira.
Uma das vantagens do reconhecimento como patrimônio imaterial é justamente a possibilidade de obter benefício de políticas públicas, mas cadê o reconhecimento? Essas crianças tinham que dar aulas para seus colegas, esses mestres tinham que ser recebidos pelo poder público.
Minha amiga, Norma, contou que recebeu em sua casa a Folia Mirim. A caixa era um balde e a bandeira uma camiseta com estampa de Nossa Senhora do Carmo. Esses meninos não tinham que ser incentivados? Isso não é matéria que deveria ser discutida na escola? Fazer parte das aulas de história? Esses mestres da cultura popular não tinham que ser homenageados, valorizados? Não mereciam bolsas da prefeitura municipal, da secretaria de cultura?
Mas esse saber, considerado patrimônio imaterial, é desprezado. Os mestres não são valorizados. Mestres que constroem teorias que explicam o mundo. Esse povo que consegue viver com pouco e que ainda assim, faz arte, compõe música, toca instrumentos.

Você já escutou uma folia de reis? São sete vozes. Aquilo é de uma sofisticação... Já presenciou um encontro de guardas de congado, cada uma tocando sua marcha e cantando seus cantos, sem desafinar ou se confundir com da outra? Isso é cultura, como diz a capitã Pedrina, cultura de muita profundidade. Cultura desses fazedores que vivem nas bordas das cidades, abandonado pelo poder público, mas cheios de potência.
Por isso, entendo o escritor Raduan Nassar (que nos últimos tempos não me sai da cabeça), que no auge de sua carreira literária abandonou tudo e foi criar galinha, plantar milho. Ele, que não deu conta da afetação do mundo da cultura e preferiu a autenticidade do povo simples. Esse mesmo povo que encantou Guimarães Rosa, Que encantou Euclides da Cunha. Euclides, que quando chegou em Canudos, chamou o povo de sub-raça, mas que na hora de voltar pra casa, voltou convencido de que "o sertanejo é antes de tudo, um forte!"

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