quarta-feira, 28 de junho de 2017

Envelhecer

Envelhecer é um troço doido. Você se sente a mesma jovenzinha que paquerava na pracinha, mas o corpo te lembra o tempo todo que não é mais o mesmo. O metabolismo mudou. A cada ano um quilo a mais. As roupas de tamanho "p" ficaram no passado. Agora, para atender ao celular é necessário afastá-lo, esticando o braço e cerrando os olhos. Ler sem os óculos ficou impossível. A imagem que aparece no espelho vai mudando gradativamente. A menina que você foi um dia não aparece mais, e em sua direção vem uma jovem senhora, ainda meio desconhecida, mas com quem você vai aprendendo a conviver. A boca tem uma leve inclinação para baixo, uma espécie de "u" invertido que lhe confere um certo ar de tristeza. Soa estranho ser chamada de senhora, lhe cederem o lugar no ônibus, perguntarem no supermercado se você é "preferencial". Uma ou outra pessoa lhe indica uma marca de tinta para os cabelos brancos, para as manchas no rosto, as verruguinhas nas mãos. Mas você aprendeu a respeitá-las. As bolsas embaixo dos olhos são realçadas a cada vez que você chora. Mas é preciso aceitá-las porque o choro nem sempre é de tristeza. Os ombros estão meio curvos. São ombros de quem aprendeu a cerzir, a si mesma e ao tecido de um vida que foi sendo gasta. Envelhecer é privilégio. A outra alternativa não é nada boa.

terça-feira, 20 de junho de 2017

Felicidade clandestina

Uma felicidade clandestina foi tomando conta de mim à medida que me aproximava de casa. Vim com a cara colada no vidro do carro, apreciado a paisagem que já sei de cor. Os pés doíam como se eu estivesse fazendo o percusso à pé. Foi chegar aqui e tirar os sapatos para a dor cessar. Daí, lembrei de "Davenir", personagem do conto, "Os pés do dançarino", de Conceição Evaristo e dos conselhos de sua bisa: "nossos pés não podem ficar esquecidos no tempo. É preciso fazer o caminho de volta, para chegar ao princípio de tudo".

Se for isso o céu...



Enquanto o menino preparava a limonada, eu lia pra ele "A morte dos girassóis", de Caio Fernando de Abreu. 
"Que da hora, mãe! Bonito isso que o girassol leva tempo para se preparar, que enfrenta mil inimigos, caracóis, formigas, ventos..." Ele sentou na mesa para lanchar e eu coloquei Nelson Cavaquinho e em seguida, Cartola. Ele fazendo cara de aprovação, comentou: "Cartola é foda!". Fridinha embaixo da mesa e Scooby deitado no meio da cozinha com olhares piedosos cobiçavam o pão com linguiça e ovo que ele comia. Os beija-flores atravessavam a cozinha. Eu lembrei de Adélia: "se for só isso o céu, está perfeito."

Janela azul de tramela

Fico tentando compreender o fascínio que essa janela azul de tramela exerce sobre mim. O que será? É uma janela velha com sua madeira gasta pelo tempo. As marcas do facão onde mamãe partia a costelinha de porco para o mingau de couve ainda estão lá. Será por isso? Era lá também, que depois de cumprida as obrigações com a casa, mamãe se debruçava com as mãos no queixo a pensar na vida e nos seus projetos. Porque mamãe sempre foi uma mulher de projetos. Não só de planejar, mas de executar. Terminava um, ela criava outro. Será por isso? Vejo uma parte do muro, sonho antigo da mamãe, que substituiu a cerca que por muitos anos esteve ali. Nem lembro mais como era antes dele. Mamãe nunca quis um muro alto, pois gostava de ver o movimento da rua. Vejo também parte do telhado da casa da Dona Maria do Heitor, que não é mais dela, mas que será pra sempre dela. Parte da copa de um pé de laranja e de jabuticaba. Parte da carroceria do caminhão do meu irmão já incorporado à paisagem. E o morro... O mesmo morro que me encantava na infância, quando deitada no chão frio de cimento vermelho, no alpendre da casa do vovô eu me recuperava da tensão ao ler "O médico e o monstro". O vento no capim meloso provocava um balé que parecia centenas de bichinhos felpudos descendo correndo morro abaixo. Vejo ainda algumas folhas do pé de mamão que já alcança o telhado, mas segue em produção, cobiçando quem passa pela rua. Há ainda, os fios da energia elétrica onde no final de tarde os pardais dançam pra mim. E o bebedouro dos beija-flores disputado com muita briga entre eles. Ah, e tem o céu, que hoje está cheio de nuvens brancas. É só isso! Nada demais. Tudo tão banal, mas que me fascina tanto... Por que será?

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Espiral da ilusão

Saramago dizia que quando confrontados com a ideia de transcendente, de vez em quando, vivemos momentos de céu. E sem dúvida nenhuma, ontem, foi um desses momentos. Busco no caderninho da memória recuperar as sensações vividas no show do Criolo. Tento reviver o momento belo. Me divido em duas, como diz a poeta, e a que voa busca recuperar o sentido, e o experenciado. As pernas já doíam muito quando Criolo entrou no palco, pois o medo de perder alguma coisa me fez ir mais cedo. Tão cedo, que tive que assistir a uma banda "teen" que abriu o show. Dpois, a equipe de Criolo assumiu o palco cuidando de cada detalhe, especialmente da luz. Um de seus "roadie" sentou em cada cantinho onde depois, sentaria Criolo, para que a luz fosse testada. E que luz, viu? Pouco depois da meia noite, os músicos assumiram seus postos e a gira foi aberta. Porque foi uma gira! Saí dali com a certeza que Criolo estava cercado no palco por seres deste e de outros mundos. 
"Nas águas do mar eu vou, vou  me benzer, vou me banhar
Nas águas do mar eu vou, pedir perdão para abençoar
Criolo entrou no palco repetindo gestos de limpeza espiritual de quem já frequentou ou frequenta terreiro. 
"E essa canção que vem é só pra limpar", ele cantou com o coro da multidão que já sabe de cor as letras de um álbum recém-lançado. Com os gestos alegres e saltitantes como os Congos no Reinado de Nossa Senhora do Rosário, ele pediu a abertura dos caminhos para o que viria a seguir. A noite prometia!

Depois veio "Boca fofa":
"Boca fofo quando é pega não sabe falar
Você pergunta a verdade, questiona e só faz bafafá".

Na minha leitura, essa música reflete bem o momento político das delações premiadas, dos grampos divulgados. Uma palavra, como nos diz Roland Barthes, que enfara, vazia, que não diz nada. Pura retórica. Depois veio uma das minhas preferidas, "Dilúvio de ilusão", que eu já conhecia há cerca de uns 5 anos, da internet. É visível a gratidão que Criolo sente pelos músicos que o acompanham: Gian Correia num maravilhoso violão de 7 cordas. O que é aquilo? Fernando Bastos no sax e na flauta; Ricardo Rabelo, amigo e parceiro de composição do Pagode da 27, roda de samba que existe há mais de 10 anos no Grajaú, bairro onde Criolo viveu e onde ainda vivem, seu pai, Seo Cleon, e sua mãe, Dona Maria Vilani. A percussão conta com Maurício Badé, ex-Mestre Ambrósio, Alemão e Guto Bocão, da escola de samba Vai Vai. Nos trombones, Ed Trombone, que ninguém me tira da cabeça que é ogan, porque assumiu várias vezes os atabaques, e de uma forma de quem reconhece que seus passos vem de longe. Aliás, Maurício Badé, pela forma como toca, me dá a impressão que foi criado em terreiro. Tudo isso regido pela batuta do maestro, Daniel Ganjaman, que ficou nos bastidores. O que assisti não foi um show, foi uma celebração! Um energia muito forte tomou conta de todo mundo que estava no Parque Municipal. A crítica social está presente em todas as letras. O universo da quebrada em toda a sua potência e mazelas, a situação do país pós-golpe, está tudo lá: "meninos mimados não podem reger a nação"... Criolo ainda cantou sambas de outros discos como "Linha de frente", do "Nó na orelha", "Fermento pra massa", do "Convoque seu Buda" e "Casa de mãe", que não está em nenhum disco, mas é um samba bastante acessado na internet. Com um arranjo belíssimo, Criolo dedicou a música à sua mãe, musa inspiradora da canção, num dia em que ele acordou às 4 da manhã para marcar uma consulta pra ela. A canção que dá nome ao disco é de uma desilusão de amor, primeira vez que vejo Criolo cantando esse tema em shows. 
No bis, ele trouxe Nelson Cavaquinho para nos encher de esperança nesses tempos brutos:
"O sol há de brilhar mais uma vez
A luz há de chegar aos corações 
Do mal será queimada a semente
O amor será eterno novamente."
Confesso que nesse momento não consegui segurar o choro. E no finalzinho, antes do apagar das luzes, ele repetiu "Nas águas do mar" e fechou a gira.

domingo, 4 de junho de 2017

Quando a coisa fica preta, a coisa fica boa!

O menino veio passar o final de semana na capital. Trouxe um amigo com ele. Vieram para a reinauguração de uma pista de skate, no Parque Lagoa do Nado. Hoje, assim que acordou pulou para a minha cama. Agora que ele não cabe mais no meu colo, sou eu quem me aninho nos braços dele. O cabelo black, macio e cheiroso acariciava meu rosto, enquanto conversamos. Ontem, à noite, lembrávamos quando ele, por volta dos 5, 6 anos ia dormir na casa dos coleguinhas e depois chorava, querendo voltar. E agora, aos 15, já dá seus rolês, sozinho. Enquanto eu preparava o café, ele chegou na cozinha com Bob Dylan cantando "One more cup of coffe" no celular (https://www.youtube.com/watchtime_continue=1&v=CB1Yq4zVC70). "Este é o álbum dele que eu mais gosto, mãe. Dos que eu conheço, claro!" E me mostrou a lista imensa dos discos de Dylan no spotify. Ontem, da sala, eu ouvia ele e o amigo no quarto ouvindo rap e conversando. De vez em quando, eu não resistia e dava uns pitacos na conversa. A certa altura, ouvindo uma música do "Djonga" escutei ele dizendo: "Não dá, mano! Que rima que a gente pode escrever? Esses caras já escreveram tudo!" Já tem um tempo que nasceu nele o desejo de escrever. Quando pequenininho, ele me pediu que comprasse um caderno, pois queria escrever suas memórias. Penso que, em algum momento, isso tudo vai desaguar. Deve estar tudo amadurecendo no caderninho mental dele. Li pra ele o texto que escrevi ontem, sobre a palavra que instaura. Disse que, o que as letras de rap provocam nele é exatamente isso. São palavras geradoras que mobilizam afeto, que nos deixam com vontade de nos existenciar e escrever, também. Aproveitei e mostrei pra ele o caderninho de Dona Joana, mãe da Conceição Evaristo (https://issuu.com/itaucultural/docs/dona_joana_issuu). Expliquei que ela começou a escrever depois da família ler junto "Quarto de despejo", da Carolina Maria de Jesus. Depois, mostrei para ele um vídeo da Conceição Evaristo com a mãe, para ele ver a carinha dela (https://www.youtube.com/watch?v=60SnkIJrBl0). Assistimos juntos, emocionados. Até porque o que Dona Joana e Conceição Evaristo dizem ali, não é muito diferente do que o menino ouve nas letras de rap. A quebrada está toda lá, inteira, em toda a sua potência. Depois ele me mostrou "Little Walter" cantando "Blue and Lomesone (https://www.youtube.com/watch?v=bhm_R6NrAhI)." E eu querendo saber: "Onde você conheceu isso, menino?" "Vi o Ed Mota cantando num programa do Jô. Daí, fui atrás do original". Palavras geradoras, palavras potentes, palavras que instauram. Terminamos a conversa chegando à conclusão que Dona Joana, Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Little Walter, Djonga são todos pretos. Um bom domingo pr'ocês tudo! De preferência lendo ou ouvindo algum pretx, porque quando a coisa fica preta, a coisa fica boa!

sábado, 3 de junho de 2017

Mulheres de palavra!

Tem um vídeo do Criolo no Sarau do Binho, disponível no youtube (https://www.youtube.com/watch?v=kYU77RYrzRQ). Nele, Criolo fala da necessidade de chancela que a sociedade nos exige. Segundo ele, você tem um pensamento e as pessoas já querem nota de rodapé. "Mas foi minha mãe que falou no almoço", ele diz. A chancela de Criolo é seu pai e sua mãe numa noite de amor. "Quer nota de rodapé mais linda do que essa"? Ele pergunta. O rapper salienta, ainda, que o exercício do pensar é natural do ser humano e que todo pessoa é capaz de criação. Ontem, num grupo de estudos que faço parte, recebemos a Capitã Pedrina e seu sobrinho, Washington. A cada vez que um dos dois abriam a boca eu me emocionava com o conhecimento, com a erudição desses dois capitães de Reinado, estudiosos e pesquisadores das religiões de matriz africana. Encerrado o encontro, já a caminho da estação do Move, eu os acompanhava e confessava que quando sou questionada sobre meu referencial teórico, sempre digo que o meu é Capitã Pedrina, é Washington, é Pai João, Pai José, Seo Sete, além de Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo. Mais do que minha chancela, do que minha nota de rodapé, elas e eles são porta-vozes da palavra que me instaura, que me transforma. Ando às voltas com Paulo Freire, revisitando "Pedagogia do Oprimido". Segundo Freire, alfabetizar não é repetir palavras, mas é aprender a dizer a sua palavra e portanto, se assumir como sujeito da sua história. Existir é pronunciar o mundo. Para Freire, os oprimidos para dizerem a sua palavra têm que tomá-la dos opressores que a querem só para si, inviabilizando-a como elemento de transformação. Daí, hoje, aparece na minha 'timeline' (via perfil da professora Regina Dalcastagnè), uma cópia de um caderninho da mãe da escritora Conceição Evaristo que está sendo distribuído na "Ocupação" do Itaú Cultural, em SP. Em entrevista, Conceição conta que a família lia junto "Quarto de Despejo", da Carolina Maria de Jesus e que isso despertou em sua mãe, apesar dos poucos anos de escolarização, o desejo da escrita. A palavra de Carolina de Jesus é, para aqueles que se reconhecem nela, uma palavra geradora: mulher negra, pobre, da favela. Foi palavra que instaurou em Dona Joana, mãe de Conceição Evaristo, o desejo de biografar-se, existenciar-se, historicizar-se, o que fez em seu caderninho. Por sua vez, a palavra de Conceição é também geradora, que instaura, em nós, mulheres negras, o desejo de também nos apossarmos da palavra para pensarmos nossa existência. O antropólogo Gilberto Velho diz que há indivíduos que captam e descrevem significativamente aspectos da sociedade de uma maneira mais rica e reveladora que muitos trabalhos científicos. A literatura, com Carolina de Jesus, com Conceição Evaristo e com a capitã Pedrina, que faz literatura pela boca e pelos gestos, só faltando colocar no papel, provocam isso em mim. São mulheres possuidoras da palavra enxuta, que não enfeita nada, mas que diz o que tem que dizer. São donas da palavra que mobiliza afetos, que persuade sem precisar de argumentos. Nas culturas orais, a palavra é elemento essencial; é força capaz de conectar o mundo dos ancestrais e o de seus descendentes; é palavra-força que cria o que diz. Carolina, Conceição, Pedrina são guardiãs de memórias, são mulheres de palavra. Palavras que conectam mundos. Salve, Carolina! Salve, Conceição! Salve, Capitã Pedrina! Salve essas mulheres de e da palavra!

Do afeto que nos salva nas horas brutas

O doido e doído no golpe é que a vida da gente segue, quase como se nada tivesse acontecendo. Você tem que se levantar todos os dias e ir trabalhar, e estudar, cuidar dxs filhxs. As crianças continuam nascendo e as pessoas morrendo. Ontem, a Dona Helena, avó da irmãzinha do menino, se foi. No domingo, ele já estava chateado e preocupado porque as notícias não eram boas. Nos últimos tempos, ele desenvolveu um grande afeto pela avó materna da irmã. Ele a tinha como amiga. Sempre chegava da casa do pai contando sobre ela. No domingo, entre lágrimas, ele confessou que sofreria muito com sua partida. Me disse que não podia chorar porque tinha que ficar forte para consolar a irmã. Eu expliquei que choro não tem nada a ver com fraqueza, que ele podia e devia chorar, sim, e que nessas horas o importante é ficar perto um do outro e sofrer junto. Estive com Dona Helena uma única vez. Viemos juntas de Baldim, num táxi coletivo. No carro, antes de cair no sono, ela elogiou muito o menino e falou do carinho que sentia por ele. Ontem, depois que fiquei sabendo da sua .partida, liguei pra ele. Expliquei que nessas horas eu gosto de cumprir o ritual. De chorar e prantear o morto, de enterrá-lo, para depois liberar a sua alma para outra dimensão, como fazem os indígenas do Xingu no ritual do Quarup. Se não cumprimos o ritual, corremos o risco de carregar o morto por uma vida inteira. É preciso viver o luto. Ele então, disse: "Eu quero me despedir dela, mãe. Eu quero ir ao velório e ao enterro." Hoje, ele matou aula e às 6 horas da manhã saiu de Baldim em direção a BH para se despedir da amiga. A esposa do pai dele, outro dia, me disse: "Dalva, obrigada por me deixar amar o João Pedro." Eu engoli o choro. Nós, que quase fomos inimigas nos aproximamos porque somos mães de irmxs e xs meninxs se amam tanto que enchem os nossos corações de uma quentura gostosa." Quem beija o meu filho, minha boca adoça", dizia a minha mãe. Estou triste pela partida da Dona Helena e agradecida pelo afeto que ela demonstrou pelo menino e pela relação amorosa que os dois desenvolveram. Isso tudo só pra dizer que é o afeto que nos salva nessas horas brutas

Os caẽs

Tão ruim ficar longe de casa, do menino, do Scooby, de Fridinha. Há 2 anos adotei Fridinha, ou ela me adotou. Nem sei... Aquela cachorrinha minúscula vivia pela rua, sendo escurraçada por todos, mas atenta a algum sinal de afeto onde pudesse se arranchar. Meu coração cortava de dó. Nos dias de chuva, então... Lembrava dela. Comecei colocando água e ração do lado de fora do portão, mas não deixava ela entrar. Mas, era fatal! Quando sentia algum cheiro estranho, era só procurar que ela estava por perto. Encontrei Fridinha muitas vezes escondida no banheiro, embaixo da cama, dentro da minha caixa de livros. Às vezes, fingia que não a via só para não ter que expulsá-la. Até que um dia criei coragem, chamei o menino e demos um banho nela. Era tanta pulga que tive que enfrentar o meu nojinho. Tensa, ela ficou quietinha enquanto cuidávamos dela retirando os parasitas. Precisou de muitos banhos para retirar toda a crosta de sujeira que havia em seu pelo. Nunca mais foi embora. Depois compreendi que pulgas, carrapatos, o cocô pelo quintal, são de menos. Foda é quando eles se machucam, adoecem, brigam na rua. Dias desses, Scooby voltou sem um pedaço da orelha. Que ódio que fiquei dele por caçar confusão, brigar com cachorro maior e mais safo do que ele. Enquanto tratava do ferimento, brava, xingava, como se resolver, fosse. Scooby é determinado, quando quer uma coisa não dá sossego até conseguir. Aprendeu a abrir o portão e vai e volta da rua quando quer. Fridinha, não. A pequena é obediente, não sai de casa, sempre perto de mim. Não sei sua idade e ela demorou um pouco a atender pelo novo nome. Imagino que seja velhinha, pois não tem todos os dentes e fica sempre, muito quietinha. Mas, tem um característica em Fridinha que me chama a atenção. Ela é resignada. Fica sempre por ali, com aquele olhar piedoso, próprio dos cães, à espera de um ossinho ou de uma sobra do prato. Que, se não vem, ela vai logo caçar o cantinho dela, conformada. Scooby, não! Se o portão está trancado e ele não consegue abrir, é cada voadora que dá em mim. Enquanto não faço a sua vontade, ele não desiste e eu não tenho sossego.
Com a consolidação do golpe, meus sentimentos têm se alternado entre a determinação do Scooby e a resignação de Fridinha. Resignar é um troço ruim demais. Lembro dessa resignação nas décadas de 80 e 90 com o país vivendo a fome, a inflação e o desemprego. Não era inflação de 10% ao mês, não! Era de 100%. Lembro da manchete do jornal "O Estado de SP", em dezembro de 1989: "inflação do ano atinge 1.764, 86%. Isso mesmo! 1.764, 86%. Pensem no que foi isso! Pensem nisso para quem recebia salário mínimo. Hoje, o problema não é Temer, nem Cunha, eles são instrumentos de uma classe dominante, como dizia Darcy Ribeiro (que saudades...) "ruim, ranzinza, azeda, medíocre, cobiçosa, que não deixa o país ir pra frente." Descendentes dos senhores de escravos essa elite traz na alma o chicote, "condicionado a usar o povo como carvão que se queima para a produção, para ter mais lucro".
Eu fico entre a determinação do Scooby, com um desejo de ainda lutar e a resignação de Fridinha, como uma defesa, uma couraça para não sofrer diante da impotência dos destinos do país. Nossos cartazinhos "Fora Temer" não adiantaram de nada. Nem nossos memes criativos. Sinceramente, eu não sei o que fazer. Tô como diz Adélia, com medo de apanhar tristeza, de encardir de melancolia. Não há líderes nem estadistas que nos deem a resposta, alguém que nos diga o que fazer. Como diz o poeta: "o anzol da direita fez a esquerda virar peixe". Que os orixás e as almas benditas tenham piedade de nós. Vou ali, ler um poema e reforçar minha couraça para não cair em melancolia. Se decidirem invadir o congresso, explodir Brasília ou fugir para as montanhas, me chamem. Por favor!

O que fazer para não apanhar tristeza?

Ontem, o dia foi de rolê com o menino. Logo de manhãzinha, dentista. Depois fomos almoçar. Fomos ao Edifício Maleta. Fui contando pra ele a história do lugar e ele atento, prestando atenção. Na varanda do prédio ficou tirando fotos do Museu da Moda em meio aqueles prédios modernos da Rua da Bahia com Avenida Amazonas. Enquanto eu procurava uma gráfica que me indicaram, ele ficou por ali, zanzando entre as lojas, pirando nas muitas de discos de vinil, desejando um do Bob Dylan e sonhando com o dia em que começará a trabalhar e poderá comprar um toca discos e começar a sua coleção. Depois, fomos comprar uma camiseta numa dessas lojas de rock: "Arctic Monkeys" era o que ele queria. Saindo da loja, ele dividiu o fone de ouvido comigo e me mostrou "Mazzaropi" cantando. É eclético demais esse menino, viu? Tá, eu reconheço que o gosto musical dele tem muito da influência do pai, que é músico. Mas, ontem mesmo, eu apresentei pra ele a Nina Oliveira e ele adorou. Cês já ouviram? Escutem aqui, pra vocês voltarem a acreditar na humanidade (https://www.facebook.com/cantanina/videos/1386824381396594/). Depois, fomos comprar um casaco porque começou a esfriar e os que ele tem são todos de segunda mão, enfim... Compramos um jaco "da hora" e ele ficou tão agradecido que, quando já em casa, eu pedi para ele ir a padaria ele foi correndo, sem nem reclamar. Eu pensei que era porque eu tinha sido legal, e tals, mas depois percebi que era para usar a roupa nova. Ainda retruquei: "Cê usa as roupas novas dentro de casa, depois, quando tem que ir encontrar com as mina, já tá tudo surrado!" [Alguém tem que fazer o papel chato de mãe, né?] "Ah mãe, me deixa ser feliz!" Ele retrucou, e lá se foi pra rua, alegre e serelepe, exibindo "os pano" novo. Segundo a ONU, no Brasil, a corrupção desvia, por ano, cerca de R$200 bilhões. Para o Banco Mundial, o custo para o mundo, anualmente, é de cerca de USD 1 trilhão. Gente, não precisava de ninguém passar fome nesse mundão, não. Não precisava de ninguém sem dente, amarelo. Todos os adolescentes, eu digo, TODOS, inclusive os da quebrada, poderiam estar por aí, exibindo os seu Gente, não precisava de ninguém passar fome nesse mundão, não. Não precisava de ninguém sem dente, amarelo. Todos os adolescentes, eu digo, TODOS, inclusive os da quebrada, poderiam estar por aí, exibindo os seu jacos novos. Corrupção tinha que ser crime hediondo, com prisão perpétua e trabalho forçado. O que a gente faz pra não apanhar tristeza, nem encardir de melancolia?

O inferno precisa existir

Acordei às 5:30h e não consegui mais dormir. É muito dinheiro, gente! Este país não precisava ter nenhuma criança sem escola, nenhum pai ou mãe de família sem emprego, nenhum homem ou mulher sem dente, sem alegria. Aqui, ninguém precisava passar fome, não. Porque fome não é coisa nem pra bicho, muito mais pra gente. Um país deste tamanho! Não precisava nenhum agricultor sem terra, nenhum indígena sem chão, sem rio, sem mata. Eu, que aprendi com meu pai, Seo Zezinho, que você tem que honrar seus compromissos. Se você não tiver dinheiro para saldar uma dívida na data combinada, que pegue emprestado com outra pessoa, mas precisa zelar por seu nome, o bem mais precioso do pobre, e assim terá sempre crédito. Com minha mãe, Dona Dulce, aprendi que não se pode gastar mais do que se ganha. Que é possível viver com pouco. Ela que tinha 3 ou 4 vestidinhos de chita, um par de chinelos, uma, veja bem, UMA sapatilha moleca, uma blusa de frio e só! Gostava mesmo era da dispensa sempre cheia, com medo de passar fome novamente. Dona Dulce que nos ensinou que não se pega o que não é seu, nem um lápis ou borracha, nada! Meu deus do céu, eu não consigo compreender. Transcende o meu entendimento. Não tenho capital cultural para dar conta de tanta ganância. O inferno precisa existir, porque o nosso a gente já vive aqui. Amém!

Dia das mães


 Que dia bonito o de hoje. Acordei com vontade de me esconder num abraço de mãe. Busquei uma foto antiga abraçando a minha, o menino no colo. Mas não foi suficiente. O desejo era tanto, que o Universo conspirou e Dona Geralda me chamou no portão. Veio com seu passo lento, joelho inchado, me cumprimentar pelo dia das mães. Contei pra ela que tudo que queria era um abraço como aquele, e que ela tinha adivinhado. Emocionada, ela falou: " Sei que não é igual ao da Dona Dulce, mas estou aqui." E me abriu os braços. Eu me escondi ali, naquele cadinho de afeto, e chorei. O perfume dela ficou em mim. Ela havia acabado de chegar da missa e durante o sermão, o padre disse que um abraço sincero é muito mais valioso do que um carro zero. Fiquei feliz por receber aquele presente. Depois, enquanto preparava o almoço, conversando com o menino, fui lembrando a herança que mamãe me deixou. Além da tira, que é um décimo da casa velha, com janela azul de tramela, herdei muitas outras coisas, mais valiosas, até. 
Com Dona Dulce aprendi a pôr reparo no miúdo, no pequeno, nas coisas desimportantes. Foi com ela que aprendi a viver dentro do orçamento, a gastar menos do que se ganha; e que, independente se pouco ou muito, fazer uma reserva é essencial; Com ela também aprendi que as coisas podem ser recicladas e que é possível viver com pouco, muito pouco. Ela me ensinou também que, se você deseja uma coisa, o seu querer tem que ser gigante, para não desistir diante das dificuldades que certamente virão. Dona Dulce também me ensinou que quando colocamos 'bistaques" [ela não conseguia falar obstáculo] nas coisas, é preciso avaliar bem, se no fundo, no fundo, não são desculpas simplesmente para uma falta de desejo. Foi ela - antes até do que as teorias feministas - quem me ensinou que o amor romântico é uma bobagem, que é preciso ser independente emocional e financeiramente, e que é possível viver bem e em paz, mesmo sozinha. Gratidão, Dona Dulce!