sábado, 3 de junho de 2017

Mulheres de palavra!

Tem um vídeo do Criolo no Sarau do Binho, disponível no youtube (https://www.youtube.com/watch?v=kYU77RYrzRQ). Nele, Criolo fala da necessidade de chancela que a sociedade nos exige. Segundo ele, você tem um pensamento e as pessoas já querem nota de rodapé. "Mas foi minha mãe que falou no almoço", ele diz. A chancela de Criolo é seu pai e sua mãe numa noite de amor. "Quer nota de rodapé mais linda do que essa"? Ele pergunta. O rapper salienta, ainda, que o exercício do pensar é natural do ser humano e que todo pessoa é capaz de criação. Ontem, num grupo de estudos que faço parte, recebemos a Capitã Pedrina e seu sobrinho, Washington. A cada vez que um dos dois abriam a boca eu me emocionava com o conhecimento, com a erudição desses dois capitães de Reinado, estudiosos e pesquisadores das religiões de matriz africana. Encerrado o encontro, já a caminho da estação do Move, eu os acompanhava e confessava que quando sou questionada sobre meu referencial teórico, sempre digo que o meu é Capitã Pedrina, é Washington, é Pai João, Pai José, Seo Sete, além de Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo. Mais do que minha chancela, do que minha nota de rodapé, elas e eles são porta-vozes da palavra que me instaura, que me transforma. Ando às voltas com Paulo Freire, revisitando "Pedagogia do Oprimido". Segundo Freire, alfabetizar não é repetir palavras, mas é aprender a dizer a sua palavra e portanto, se assumir como sujeito da sua história. Existir é pronunciar o mundo. Para Freire, os oprimidos para dizerem a sua palavra têm que tomá-la dos opressores que a querem só para si, inviabilizando-a como elemento de transformação. Daí, hoje, aparece na minha 'timeline' (via perfil da professora Regina Dalcastagnè), uma cópia de um caderninho da mãe da escritora Conceição Evaristo que está sendo distribuído na "Ocupação" do Itaú Cultural, em SP. Em entrevista, Conceição conta que a família lia junto "Quarto de Despejo", da Carolina Maria de Jesus e que isso despertou em sua mãe, apesar dos poucos anos de escolarização, o desejo da escrita. A palavra de Carolina de Jesus é, para aqueles que se reconhecem nela, uma palavra geradora: mulher negra, pobre, da favela. Foi palavra que instaurou em Dona Joana, mãe de Conceição Evaristo, o desejo de biografar-se, existenciar-se, historicizar-se, o que fez em seu caderninho. Por sua vez, a palavra de Conceição é também geradora, que instaura, em nós, mulheres negras, o desejo de também nos apossarmos da palavra para pensarmos nossa existência. O antropólogo Gilberto Velho diz que há indivíduos que captam e descrevem significativamente aspectos da sociedade de uma maneira mais rica e reveladora que muitos trabalhos científicos. A literatura, com Carolina de Jesus, com Conceição Evaristo e com a capitã Pedrina, que faz literatura pela boca e pelos gestos, só faltando colocar no papel, provocam isso em mim. São mulheres possuidoras da palavra enxuta, que não enfeita nada, mas que diz o que tem que dizer. São donas da palavra que mobiliza afetos, que persuade sem precisar de argumentos. Nas culturas orais, a palavra é elemento essencial; é força capaz de conectar o mundo dos ancestrais e o de seus descendentes; é palavra-força que cria o que diz. Carolina, Conceição, Pedrina são guardiãs de memórias, são mulheres de palavra. Palavras que conectam mundos. Salve, Carolina! Salve, Conceição! Salve, Capitã Pedrina! Salve essas mulheres de e da palavra!

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