quinta-feira, 25 de junho de 2015

Viver é muito perigoso

"Mas, então, de repente, Miguilim parou em frente do doutor. Todo tremia, quase sem coragem de dizer o que tinha vontade. Por fim, disse. Pediu. O doutor entendeu e achou graça. Tirou os óculos, pôs na cara de Miguilim. E Miguilim olhou para todos, com tanta força. Saiu lá fora. Olhou os matos escuros de cima do morro, aqui a casa, a cerca de feijão-bravo e são-caetano; o céu, o curral, o quintal; os olhos redondos e os vidros altos da manhã. Olhou, mais longe, o gado pastando perto do brejo, florido de são-josés, como um  algodão. O verde dos buritis, na primeira vereda. O Mutúm era bonito! Agora ele sabia." (JGR, Campo Geral, p. 151)

Miguilim foi a primeira obra que li de Guimarães Rosa. Quem me apresentou foi minha irmã Luia, que, no final dos anos 80, lia o livro para o vestibular. Já perdi a conta de quantas vezes li, reli e tresli. E sempre me emociono. Este livro fez uma revolução em mim. As lentes que o doutor emprestou para Miguilim foram as mesmas, que também, pelas mãos do doutor, eu coloquei na cara. E este gesto provocou em mim um turbilhão que ainda hoje me desarruma.

Os personagens de Guimarães Rosa me fizeram olhar para meus pais de forma diferente. Também me fizeram reconciliar com Baldim, que durante muito tempo significava pra mim, ignorância e atraso. Quando percebi a grandeza da obra de Rosa e vi que o universo Baldinense era muito próximo do universo de seus personagens, foi uma revolução. Foi ali, que pela primeira vez, usando as lentes que o doutor me emprestava, enxerguei minha aldeia. E foi ali, que vi que Baldim também era bonito, como o Mutúm de Miguilim. Passei a admirar os caminhos poeirentos e pedregosos, as árvores baixinhas e enfezadas do cerrado, que como o próprio Rosa explicou, em carta ao seu tradutor italiano, possuem raízes longuíssimas. Foi com essas lentes que também passei a admirar as gentes, a me comover com a sua devoção, apesar da minha fé ser pequenininha, pra não dizer nenhuma.

São estas mesmas lentes que recebi das mãos do doutor, que hoje empresto ao menino. As lentes da curiosidade. Sempre procurei despertar nele um olhar curioso a respeito do mundo. E modéstia à parte, penso que não faço feio não. A indignação que o menino já revela diante das injustiças sociais, é na mesma proporção da ternura  que enchem seus olhos ao ouvir um senhor de noventa anos. A forma amorosa como que trata os irmãos, o respeito que revela pelos mais velhos, me deixa sempre muito orgulhosa.

Tem sido através dessas lentes que o menino tem aprendido a admirar a cultura popular e a respeitar a fé e a devoção do outro. Lembro que, há cerca de 1 ano, quando morávamos em Lisboa, ele estudava para uma prova de história e geografia de Portugal. Era a primeira vez que ele lia sobre a inquisição e ficou extremamente chocado. "Como assim, mãe? Era ali, onde hoje é o Terreiro do Paço, aquele lugar lindo que você gosta tanto, que uma fogueira enorme queimava as pessoas? Só porque elas pensavam diferente? Como assim?" Ele questionava indignado.  Lembro que, neste dia, na hora de dormir, ele me abraçou e disse: "obrigado mãe, por não me impor uma religião e por me educar sempre para questionar". Na hora, eu engoli o choro e retribui o abraço.

Desde então, temos conversado muito e ele, hoje, se define como agnóstico. Já deixei claro que ele pode mudar de ideia. Só tem 13 anos e um mundo inteiro por descobrir. As lentes do doutor continuam na minha e na cara do menino, e é assim que temos seguido, olhando o mundo.

Ele está descobrindo o rock e comprou várias camisetas de bandas com o dinheiro que juntou. O rap também fornece mil respostas pra ele. Aliás, eu comecei a escutar rap quando, aos 8 anos de idade, ele chegou em casa cantando "Negro Drama" dos Racionais. Foi ali, que eu quis  entender o que tinha naquela letra para seduzir uma criança tão pequena e me "converti" também. Hoje, vamos juntos aos shows.

Tenho observado que todos os dias, na hora de ir pra escola o assunto "religião" é tema na mesa do café. Percebi, conversando com ele, que muitos colegas não aceitam o fato dele se definir como agnóstico. Acham um absurdo ele vestir preto e tem alguns, até, que acham que todo roqueiro é satanista. Ele chega a achar graça, mas às vezes, a opressão é grande.

Eu fico assustada porque o mundo parece que encaretou, está mais intolerante, reacionário. E o mais impressionante é que esta intolerância que me parecia ser específica do mundo dos adultos, já chegou na meninada. Esses dias ele teve uma discussão interminável no whatsapp, com uma colega,  que não aceitava o fato dele não ser cristão. Ele dizia pra ela: "olha, eu não quero que você mude de opinião, você pode acreditar no que quiser, mas não aceito que você queira me obrigar a pensar como você". Foram tantos os argumentos dele e todos tão consistentes que eu fiquei orgulhosa.

Mas, sigo preocupada. Afinal, que lentes temos oferecido aos jovens para enxergar a vida? Será que estamos todos míopes? Que São João Guimarães Rosa tenha piedade de nós e nos forneça as lentes pra olharmos pra esse mundo louco. Porque, mais do que nunca, viver tem sido muito perigoso.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Um dia "não-qualquer"

o dia ontem amanheceu como um dia qualquer. o galo da vizinha me avisou a hora de levantar. abri o portão para o scooby sair e o cazumbá e a frida aproveitaram para entrar. despachei o menino para a escola e lembrei que tinha que cozinhar feijão para o almoço. 23 de junho. mais um aniversário. 49 anos. não é pouca coisa não. o poema "espelho", de silvia plath, não me saía da cabeça. espelho, em cuja superfície afogou-se a menina que um dia eu fui, e que, dia após dia, ergue uma senhora em minha direção. ainda estou aprendendo a conviver com ela, a aceitar os sinais que ela me traz, mas temos convivido bem. liguei o computador  e a partir daí, os afazeres de dona de casa, mãe de filho e de escrevedora de tese foram cerzidos com o carinho que recebi dos amigos. os de longa e os de recente data, os de perto e os de longe. obrigada a cada um que cerziu um pontinho sobre a minha rotina doméstica, deixando o meu dia tinindo de bonito e fazendo dele um dia "não-qualquer". agradecida. de coração.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Pré-texto/Pré-tese




mãe, depois daqui, a gente vai pra onde? não sei te responder, filho. é que eu queria me preparar, avisar meus amigos. ainda não tenho essa resposta. no meio do caminho tem uma tese, tem uma tese no meio do caminho. primeiro, preciso terminar a tese e defender; depois arrumar um emprego, de preferência passar num concurso. mãe, você me promete que a próxima cidade que a gente for morar vai ter pista de skate? não posso prometer isso, filho. sabe onde eu gostaria de estar neste domingo, mãe? não, filho. onde? no skateboarding day, em sp. eu também gostaria de estar em sp, neste domingo, na virada cultural, assistindo ao show do emicida, em frente ao museu da língua portuguesa. mas há 8 anos nossa vida tem sido assim: viver o presente. esse desconhecimento do futuro também me angustia, filho. o pior mãe, é que nem é o futuro daqui a 5 anos, é o futuro daqui a 5 meses. vamos dar a volta ao morro, mãe? espairecer a cabeça, tirar umas fotos? vamos, filho!

terça-feira, 16 de junho de 2015

A volta


Há quase um mês sem notícias, angustiada, ela já pensava no pior, imaginando como criaria os cinco filhos sozinhas.  Afinal, o marido nunca havia ficado tanto tempo longe de casa. Como o sol já ia se pondo atrás do morro, ela juntou as crianças e foram até o lago, à procura de algum peixe para a janta. Vendo a farra dos meninos brincando na água, por alguns instantes, ela até esqueceu as preocupações e riu junto com eles. O mais velho exibia orgulhoso a traíra que conseguira pegar, os menores se divertiam pescando piabas com as peneiras. Subiram de volta para a casa, ela foi limpar e preparar os peixes e os meninos ficaram no quintal brincando. Se esforçando para espantar a tristeza e o desânimo, ela soprou as brasas quase apagadas no fogão a lenha, com a mesma força que desejava que a esperança voltasse a habitar o seu coração. Quebrou os gravetos que os meninos trouxeram do mato e soprou as cinzas, fazendo com que uma centelha se espalhasse, acendendo o fogo novamente. No mesmo instante em que o fogo começou a trepidar ela ouviu um alvoroço no quintal. Em coro os meninos gritavam:
- Papai voltou! Papai voltou! Papai voltou!
Ela chegou na porta da sala, esticou o pescoço e reconheceu, ao longe, o chapéu do marido. Sim, era ele! Enquanto as crianças desciam o morro correndo para encontrar com o pai, ela lembrou da panela no fogo e voltou para a cozinha. Soltou um suspiro comprido de alívio, enquanto colocava mais um prato na mesa pra janta.

sábado, 6 de junho de 2015

Propaganda enganosa


já me disseram que eu faço "propaganda enganosa" de baldim; que aqui não tem nada, mas que por causa das fotos e do que escrevo meus amigos ficam querendo conhecer a cidade. ontem, recebi a visita de um amigo querido que não via há muito tempo. ele chegou querendo conhecer os pontos turísticos da cidade. fiz com ele, o que sempre faço com as minhas visitas. comecei pela minha casa. ele viu a hortinha, os pés de quiabo já no final de  produção; viu onde plantei o milho, a hortelã pimenta, o manjericão, o pé de boldo, a moita de capim cidreira. ele observou o quintal, os "resíduos" que meu irmão pendura pela varanda, brincou com o scooby, conheceu o cazumbá e a frida. ajudou no almoço, comeu a salada de alface com rúcula que comprei na carroça do seu domingos. a sobremesa foi a bananinha cremosa feita na fábrica de doces daqui. depois saímos para caminhar pelo cerrado.
mostrei a rua e a casa onde nasci; fizemos a volta ao morro. encontramos jatobá pelo caminho e ele aproveitou para comer um, apesar daquele cheiro horroroso de chulé que a fruta tem. ele também conheceu o córrego onde lavávamos roupas e tomávamos banho na infância, mas que hoje está morto, depois de receber todo o esgoto da cidade. mostrei a ele os pés de gabiroba onde fui na infância e onde hoje, levo meu filho e sobrinhos. mostrei a capelinha de santo antônio onde frequentei as rezas e assisti muitos leilões. mostrei as ruínas do que foi o clube da cidade, mostrei o grupo escolar onde fiz o ensino primário. também apresentei algumas personagens da cidade que passaram por nós, enquanto tomávamos uma cerveja na praça. ah, e ele até conheceu uma amiga minha de infância que eu não via há muitos anos e que encontrei, por acaso. penso que ele gostou e que ficou com vontade de voltar pra ver muitas outras coisas que não deu tempo de mostrar. mas só ele poderá dizer se a minha propaganda é enganosa.

Saber com sabor

eu não entendo de escrivaninha, já dizia minha amiga gabina sanavaga. é daqui, da mesa da cozinha, olhando para o morro que, por enquanto, tapa as minhas vistas para o que há do outro lado e me obriga a ficar presa às minhas memórias e aos meus dados de campo que vou juntando os ingredientes da minha escrita. é desse lugar que, devagarinho, as letras vão se formando sobre o teclado e vão marcando, pouco a pouco, as páginas em branco. lentamente os capítulos vão tomando forma. computador, livros e cadernos dividem o espaço com o pote de pimenta, a lata de pão, o vidro de azeite. é mexendo uma panela e outra, experimentando uma receita e outra, parando um instantinho para testar um novo suco com as frutas do quintal, que vou dando sentido ao vivido e experimentado com os sujeitos da minha pesquisa. as anotações de campo estão todas marcadas: uma gota de gordura que caiu do prato, a marca da pata do cachorro, que de tanto esperar, já ficou entendiado, pingos do café entornado que apagou o escrito e da sopa que coloriu de urucum, justamente a passagem onde escrevi sobre o caboclo. é daqui, do espaço da cozinha, que vou colocando os temperos e arrumando lentamente as ideias na cabeça, na expectativa que o resultado dessa escrita fique gostoso. afinal, saber tem que ter sabor.