sábado, 27 de fevereiro de 2016

Ilha da magia


O avião pousou no horário previsto, por volta das 19h. Foi só o tempo de pegar a mala vazia que levava e já estava no ponto esperando o ônibus. A mala era para trazer algumas coisas que não consegui desapegar e que, há mais de 3 anos entulhava o quartinho da casa da minha amiga Verônica: uma colcha de retalhos, as varinhas de Harry Potter do menino, algumas fotos, livros, cartinhas de despedida dos colegas das escolas por onde ele passou... Cerca de meia hora depois já estava no centro, mais meia hora esperando o ônibus, um congestionamento e lá pelas 21h, estava arrastando a minha mala 360º (caríssima!) pelas ruas de areia do Campeche. A (i)mobilidade de Florianópolis e suas ruas sem calçada foram suficientes para me irritar na volta à cidade. Mas foi só chegar na casa de Gabina para esquecer tudo. Davi, como sempre, fazendo suas comidinhas e nos servindo. Sem falar, na resenha sem fim, que acontece a cada vez que me encontro com Gabina. No dia seguinte já era sua defesa. Ir para a UFSC, passando pelo Rio Tavares e Lagoa da Conceição me encheu de nostalgia, trazendo recordações das inúmeras vezes que fiz esse trajeto, de ônibus, com o menino. Enquanto o cansaço não o vencia, ele ia com a cara grudada no vidro da janela, apreciando a paisagem. Até hoje, ele é assim. Eu, acostumada com o cerrado, sempre me deslumbro com os morros verdes de Floripa e embora poluída, a Lagoa da Conceição me impressiona com sua beleza. Um passeio pelo sul da Ilha no domingo foi suficiente para esquecer os maus tratos que vivi por 2 anos na cidade. Florianópolis trata diferente quem não é branco, quem não tem carro e quem ganha pouco. Ô cidade cara, viu? Mas uma cidade é muito mais que uma construção artificial de casas e prédios e seus péssimos gestores públicos. Uma cidade é acima de tudo, sua gente com seus sonhos, desejos, projetos e esperanças. Gente que com suas múltiplas redes de socialidade, estilos de vida e conflitos, dão vida ao lugar. Receber o carinho da Verônica, minha amiga-irmã-procuradora, da Bianca que acabara de me conhecer pessoalmente e foi tão gentil, de Gabina que é amiga-irmã, da Tati, agora ainda mais empoderada com sua carteira de habilitação recém-tirada e seu fusquinha. Muito mais que um carro, o fusca é um depoimento e foi a bordo dele que senti toda a segurança da Tati/2016. Ninguém segura essa mulher, gente! As conversas-divã a bordo do fusquinha-depoimento me liberaram de anos de terapia. Foi tudo lindo! Tão lindo que, dias depois, ainda fico tentando recuperar o momento belo. Como diz a poeta, me corto ao meio, me solto de mim e voo de volta para a cidade. E como as bruxas que dizem existir por lá, vagueio por sobre a Ilha, tentando recuperar toda a magia que vivi.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

De volta pra casa

Enquanto eu subia as escadas do avião no aeroporto, em Florianópolis, não consegui segurar as lágrimas. Há cerca de 5 anos, fazíamos o caminho inverso. Eu, o menino e duas malas. 5 anos, 2 países, 4 cidades e 6 casas depois, faço o caminho de volta. Em uma das mãos, a bolsa com a cópia da ata de defesa da tese, que segurava firme, como segurava os poucos euros com medo de perdê-los, quando chegamos em Lisboa, em setembro de 2013. Na outra mão, aperto junto ao peito, o último mimo recebido na Ilha: um pacote embrulhado em papel pardo, amarrado com um barbante e uma casca de canela. Esse povo é fashion até para fazer embrulhos. A recomendação era abri-lo somente no avião. Já no ar, vendo a Ilha do Campeche, pela janelinha, desfiz o laço do barbante e fui apresentada à escritora indiana, Arundhati Roy e ao, também indiano, Aravind Adiga. Junto aos livros a mais linda carta que já recebi, onde li: "Porque você, Dalva, é artesã de palavras comuns, das habituais, das de todas os dias e com elas você, artesã/autora, já abala o mundo." A comissária de bordo precisou buscar um copo d'água para eu me acalmar, porque não consegui segurar o choro. Quando digo que sou rica de amigos é disso que estou falando.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Amores possíveis

Quando do avião avistei a ilha de Florianópolis fiquei pensando nessa relação conturbada que tive com a cidade. Baldim é como se fosse o primeiro amor, é o lugar do primeiro beijo, das primeiras descobertas, tipo aquele amor que se você der mole, ainda rola alguma coisa. BH é o amor mais velho, mais experiente, que me apresentou o teatro, o cinema, a universidade, o mundo; amor intenso, mas que passou. mudamos. mudei eu, mudou a cidade. Hoje, somos quase estranhos. Viçosa foi o amor tranquilo, calmo, sem cobranças. Um gostar de estar junto e só, satisfeitos com o que cada um tinha para oferecer pro outro. Lisboa foi amor maduro, complexo, cujos defeitos da pessoa amada não impediu de enxergar as inúmeras qualidades, amor ainda vivo no peito. Florianópolis foi um amor estranho, nunca fomos íntimos, nunca consegui chamá-la de Floripa. Na segunda feira temos um encontro marcado para oficializarmos a nossa separação. Separação consensual, sem grandes crises. O final chegou.

Tiro ao alvo

a última briga foi a gota d'água. ela já estava cansada, sempre a mesma história, dinheiro para o leite não tem, mas para o beck nunca falta. catou o menino, colocou as poucas roupas dele na bolsa verde "unibaby" que ganhou da última patroa e foi pra casa da mãe. agora vazia, a única porta que tinha vidro na casa, virou alvo das brincadeiras das crianças da rua. quem quebrar mais, ganha. não tem mais nenhum vidro inteiro.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

A arte de perder

Não quero a posse de nada, não... Pelo contrário, quero aprender a arte de perder, como nos ensina Bishop. Perder um pouquinho a cada dia. Começar com as chaves de casa, depois aprender a perder mais e melhor. Lugares, nomes, viagens, amores. Não é nada sério. Depois perder mais rápido, com mais critério. E assim, as malas vão ficando mais leves. E a gente também.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Amor afrocentrado




Acordei antes do relógio despertar. Chamei o menino. Enquanto ele me contava do sonho estranho, eu preparei o café. Fomos juntos até a esquina, ele seguiu para escola, eu para a caminhada. O sol despontava por sobre as palmeiras da praça. Da nossa rua, a visão era linda, mas não levei a máquina. Paciência, amanhã tem mais. Nos despedimos. Coloquei os fones de ouvido e segui. Não adianta, a trilha sonora perfeita da caminhada é o rap. Vou ouvindo as crônicas urbanas dos Racionais e encontrando os personagens da quebrada pelo caminho. O vira lata que dorme numa gaveta feito cama. Ao lado a água numa panela de pressão amassada e sem cabo. O tiozinho que desce a rua numa bicicleta sem freios e vai reduzindo a velocidade com o pé no chão, o solado da botina já todo desgastado de um lado. Os moleques passando por debaixo da cerca para buscar gravetos no mato para o pai acender o fogão a lenha e fazer o café. O cachorro magricela que vai junto. As casinhas sem reboco, as janelas e portas que esperam uma vida inteira pelo vidro que nunca chega. Pelo cheiro espalhado no ar, hoje o café da manhã é pequi. Mano Brown canta no meu ouvido:
"Preto e dinheiro,
São palavras rivais,
hééé!!!
Então mostra pra esses Cu,
Como é que faz,
(...)
As vezes eu acho,
Que todo preto como eu,
Só qué um terreno no mato,
Só seu,
Sem luxo, descalço, nadar num riacho,
Sem fome,
Pegando as fruta no cacho"
Lembrei da foto que meu sobrinho postou no final do domingo que trazia como legenda, justamente esse trecho da música "Vida Loka parte 2". Ele e a preta dele, numa rede, puro amor afrocentrado.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Toda mãe tem créditos com o Universo

Eu tenho um filho de 13 anos. Hoje, eu olho pra ele e não acredito que chegamos até aqui. Criei o João praticamente sozinha. Digo praticamente, porque outras mulheres me ajudaram nessa tarefa. Teve a Sandra que foi babá dele por 3 anos. Dona Eliane, uma vizinha, que muitas vezes o buscou na escolinha pra mim. Teve minha irmã Enir, que durante alguns meses ficou com ele, enquanto eu dava aulas à noite. Quando fui para Viçosa fazer mestrado, em 2007, João tinha 4 anos. Lá, além da Roberta, da Penha, da Jaqueline, da Janaína, da Helcilene, teve inúmeros amigos que sempre me salvaram em horas difíceis. Mesmo assim, João me acompanhou muito nas reuniões de orientação e foi muitas vezes dar aulas comigo. Desde pequeno, sempre me acompanhou em trabalho de campo, encontros e seminários. Já juntou duas cadeiras e dormiu, enquanto eu assistia aulas no doutorado. Já portou crachá de participante em congresso e até pergunta fez para palestrante. Hoje, já é independente, sai sozinho, faz sua comida e é quem, com sua mão enorme segura a minha na hora de atravessar a rua. Retribuindo o cuidado, é ele quem adverte: "prest'atenção, mãe! olha o carro aí! Nos shows que vamos juntos, ele, que já mede 1,74 m, sempre procura um lugar melhor para que eu, do alto (ou melhor, baixo) dos meus 1,55 m, consiga ver o palco. Mas foi muita estrada para chegar até aqui. Esse final de semana recebi "visitas". Entre elas, uma mãe com seus 3 filhos. Três! Eu olhava admirada pra aquela moça, ainda tão jovem, que não tirava os olhos da maiorzinha de 9 anos que brincava na piscina e que, enquanto com uma mão segurava um bebê de 11 meses, com a outra tirava a blusa do outro, de 2 anos. Vez ou outra o pai vinha e a "rendia", mas o "batidão" era mesmo com ela, que com uma paciência de Jó, trocava fralda, preparava mamadeira, ajudava no almoço, lavava a louça, preparava o suco. Incansável! Ou melhor, cansada, muito cansada... Eu olhava pra ela e lembrava dos perrengues que passei criando "apenas um" e minha admiração e respeito por aquela mulher ia aumentando ao longo do dia. Lembrei da música "Mãe", do Emicida: "o peso do mundo nas costas de uma mulher"..." "Luta diária, fio da navalha. marcas? várias. senzalas, cesáreas, cicatrizes, estrias, varizes, crises. tipo lulu, nem sempre é so easy. Pra nós punk é quem amamenta, enquanto enfrenta as guerra, os tanque, as roupas suja, vida sem amaciante." Criar filho não é brinquedo, não! Mas eu ainda sigo sonhando com o "tempo onde as mina não tenha que ser tão forte". Toda mãe tem créditos com o Universo!

Escrever como preta

"- sinto falta de uma 'escrita preta', reclamei.
a amiga, já meio cansada do meu "chororô de sempre, em seu português 'mestiço', me respondeu meio impaciente:
"- eu também sinto falta de uma 'escrita preta', dalva! com mulheres, traficantes, bandidas, com raiva, com cachaça, com cheiro de maconha, com poesia, com coragem, com funk, com rua, muita rua, com brincadeira, com rap, com sátira, com ironia, com compaixão, com surpresa, com amizade, com drogas, com gatos e cachorros, com pulga, com amor dos usuários, com sua fraternidade e suas filosofias de vida, como nunca encontrei uma, eu quis/tive que fazer."
ela está escrevendo uma linda tese sobre as 'usuárias' do pelourinho. mulheres lindas, cheias de vida, histórias e sonhos. chego a ficar comovida com a sensibilidade através da qual ela humaniza essas mulheres. é quase que um romance, um roteiro de cinema onde intercruzam raça, gênero, classe social, política pública. tudo fica pequeno para dar conta da grandeza das 'mulheres de gabina'.
e ela prossegue em sua exortação:
"- essa é a sua tarefa, dalva! escrever como preta! nenhuma leitura vai te trazer isso, o esforço da tese é justamente esse, trazer nossos teóricos à tona. viver, refletir, amar, cantar, fumar, escrever junto com eles. nenhuma leitura vai acalmar tua sede, só ouvindo e aprendendo como é que aprendem o mundo essas pessoas que tanto admiramos, e junto aos quais vivemos pelo menos três anos de nossas vida, um ano curtindo na pele e outros dois na escrita. só assim é que vamos conseguir fechar esta porra com dignidade, que valha a pena tirar o tempo passado que investiram em nós, nos cuidando, alimentando, nos protegendo e educando."
a essa altura, de cabeça baixa, eu já estava chorando e arrependida da reclamação. ela continuou:
"- eu vejo meu trabalho como um esforço, como uma homenagem, humilde, mas feita de todo coração para meus colegas e amigos das ruas do pelô! eu sei que tu também gostas da capitã, aprendeste muito com ela, então, não fique tentando desvendar mistérios em nenhuma teoria ou autor, em nenhuma pele que não seja a tua e a dos teus interlocutores, encarnados, desencarnados, todo eles. porém, roube coisinhas de outros para que esse negocio fique com cara de tese. roube sem culpa! mas nunca se esqueça de trazer a força desse canto negro!"

que os santos, os espíritos encarnados e desencarnados, que os inquices me ajudem a terminar esse "livro preto" sobre uma etnografia preta que fala de um canto preto.
amém, que assim seja, axé!

Que horas ela volta

Ontem assisti "Que horas ela volta". Quando os créditos subiram eu chorava tanto que a amiga que me acompanhou me abraçou tentando me acalmar. Já tinha lido que era praticamente impossível não se identificar com uma das mulheres do filme. Eu me identifiquei com duas: a empregada e a filha. Me identifiquei com Val porque já fui empregada doméstica, mas não foi só desse período que lembrei. Lembrei de todos os sub-empregos que tive. Lembrei da loja de departamentos onde trabalhei como serviços gerais. Minha função era limpar o chão, repor mercadoria e lavar os banheiros, dos funcionários e dos clientes. Mas o que mais me incomodava era ter a bolsa revistada na saída. Trabalhar em um lugar onde eu, uma funcionária, era considerada "suspeita" era extremamente constrangedor.Também lembrei dos tempos de balconista de padaria e do pãozinho de sal que tínhamos direito no lanche. "Somente um pãozinho, e de sal", era a recomendação. Nada de comer iogurtes, bolos ou presunto e queijo. Minha sorte era que Seu Antônio, o confeiteiro, era meu parceiro. Quando me entregava a bandeja com os confeitos, ele me olhava cúmplice e com um movimento na cabeça me apontava os brigadeirinhos e os bolinhos que fazia especialmente pra mim e que eu comia escondido, atrás do balcão. Foi ver Jéssica se deliciando com o pote de sorvete de Fabinho, que me lembrei disso. Também me identifiquei com Jéssica pela curiosidade, por gostar de ler, pelo desejo de estudar e porque, há pouco tempo, também passei a frequentar aeroportos. Me identifiquei também por muitas vezes perceber que a minha presença em muitos lugares incomoda, principalmente na universidade. Ali não é lugar para uma jovem senhora, mãe de filho, que não sabe ler em inglês. O filme também me fez refletir sobre o privilégio que é receber para estudar. O fato de ter sido bolsista no mestrado e no doutorado me permitiu sobreviver, pagar o aluguel, comprar material escolar pro meu filho, além de poder acompanhar seu crescimento, coisa que Val e milhares de mulheres não podem ou não puderam. Graças às mudanças pelas quais passou o país nos últimos anos e que são sensivelmente retratadas no filme, muitas outras Jéssicas puderam voltar para a sala de aula e podem criar seus filhos. Recomento a quem não assistiu, que o faça. Vale muito a pena!

Cartas

Quando a escrita empaca, como empacou nos últimos dias é hora de apelar para os santos e as rezas. Acendi uma vela e peguei os livros de Clarice, santa de minha devoção. Reli "A hora da estrela". Adoro esse livro. Talvez ¨porque o narrador fala da dificuldade de contar sobre sua personagem. É o meu problema mais recente. Empaquei no meio do último capítulo da tese. É neste livro que ela diz que "escrever é como quebrar rochas", mas voam lascas e faíscas e é nelas que me agarro.
Depois, leio as correspondências de Clarice. Ela pede ajuda ao amigo Fernando Sabino. "Me escreva uma palavra amiga, Fernando". Ele aconselha: "saber somente que está escrevendo um livro sobre uma mulher é muito pouco"; Ela responde agradecida: "eu gostaria de dizer alguma coisa para você que lhe servisse como me serviu aquilo que você falou de saber que se está escrevendo uma história sobre uma mulher que ..., e não apenas uma mulher."
Eu empaquei justamente aí, quando tentava finalizar o terceiro pontinho das reticências. Escrevo uma tese sobre uma capitã de congado que...
Clarice também trocava correspondências com Andréa Azulay, uma menina de 9 anos, filha de seu psicanalista. Andrea interpretava os sonhos de Clarice: "olha a parte do sonho de que você partia era que você ficava com medo de alguém, como outra pessoa tomasse seu lugar enquanto você estava longe de todos do Brasil, se esqueciam de você." Clarice dá conselhos à pequena escritora: "não descuide da pontuação. Pontuação é a respiração da frase. Uma vírgula pode cortar o fôlego. É melhor não abusar de vírgulas."
Eu sempre abuso de vírgulas...
Quero uma menininha de 9 anos para interpretar meus sonhos, quero me corresponder com Clarice e Fernando e contar dos meus personagens...
Fernando Sabino, em outra carta, dizia que estava "mata-não-mata" uma personagem só para terminar um livro. Clarice, angustiada, não conseguia escrever: "não trabalho mais, Fernando. Passo os dias procurando enganar minha angústia e procurando não fazer horror a mim mesma. (...) Caí inteiramente e não vejo um começo sequer de alguma coisa nascendo."
Saudades dos tempos em que escrevíamos cartas...

Maria

Ontem, Maria veio me visitar. Adoro receber suas visitas. Maria é daquelas pessoas de coração puro, incapaz de fazer maldade a alguém. Já sofreu muito nessa vida. Hoje, viúva, sem filhos, vive uma vida tranquila, cuidando das suas 'criação' (cachorro, gato, galinhas) e do seu quintal. Parece uma personagem saltada dos romances de Guimarães Rosa. Nunca chega de mãos vazias. Num dia trouxe ovos caipira; noutro, um punhado de 'boas sementes' de quiabo ou de milho. Outro dia, trouxe corante, feito por ela, do urucum do seu quintal. Ontem, trouxe jabuticaba. "Você precisa ir lá, Dalva! Chupar a jabuticaba no pé. Mas, como eu sei que você não sai de casa, eu resolvi trazer." Nossas conversas giram em torno das 'criações' de Maria. Ontem, ela contou indignada que o danado do cachorro conseguiu entrar na horta e destruir tudo que ela tinha plantado, no dia anterior. Não teve jeito, ela teve que lhe dar umas 'lambadas' para ele aprender sobre o 'mal-feito'. Maria já trabalhou muito na roça, conhece a ciência das sementes e da terra. Ela sempre ri das minhas tentativas de plantio. "Não pode ser assim, Dalva", "Agora não é época","tem que capinar primeiro". Em vão, ela tenta me ensinar. Ontem, ela viu minha meia dúzia de pés de feijão. "Precisa panhar essas bajecas, Dalva". É uma delícia essas 'bagens' novas. Maria Luca me enche de esperança no mundo. Seus olhos veem o essencial da vida. Sua simplicidade deixa meu 'coração amolecido como um figo na calda'. Viva Maria!

Portugueses

ando com os portugueses na cabeça. alberto caeiro e seu poema que diz que é preciso mais do que abrir a janela para ver as coisas, que não é suficiente não ser cego para enxergar. aí lembro de outro, do velho saramago e de seu ensaio sobre a cegueira. o que realmente se vê quando se é cego? outra portuguesa, a sofhia de mello breyner, quando procurava um lugar para morar, em lisboa, ouviu da mãe que o importante numa casa é dentro e não fora. a poeta então respondeu: "não, eu preciso chegar a janela, uma casa tem que ter vista". eu aqui, tenho vista. aqui, reaprendi a olhar para o céu e para o chão. a pôr reparo no miúdo, no pequeno. o pé de abóbora que brotou do lixo orgânico, jogado displicentemente pela janela da cozinha. os velhos potes de sorvetes transformados em carrinhos e largados no monte de areia, quando a mãe chamou para o banho. a manga que foi chupada até o caroço e depois jogada no monte de entulho, brotou e cresce indiferente ao lixo à sua volta. a florzinha que nasce no barranco, mesmo sem ter sido semeada. é que para enxergar é preciso não ter filosofia nenhuma, diz o poeta. pôe reparo pr'ocê vê

Saudades

A casa está tão silenciosa que ouço o ressonar do Scooby aos meus pés. Vez ou outra ele solta um daqueles suspiros longos que sempre me impressionam. Dandara e Nala também estão aqui, enrodilhadas. Todos à minha volta, com exceção da Frida, que deve estar por aí, curtindo a sua solidão em algum canto da casa.
Do quintal do vizinho chega um som de enxada batendo na terra. Talvez alguém esteja capinando o mato que cresceu nesses dias de chuva. Do outro lado da rua alguém começou alguma pequena reforma, pois chega um som de parede sendo quebrada. Ainda é cedo para o canto das siriemas no morro, pois elas começam a cantar sempre por volta das 10h, não me pergunte por quê. Morro, que aliás, está verdinho por causa das muitas chuvas que caíram neste janeiro.
O silêncio aguça a saudade que sinto. Uma saudade estranha dos meus amigos Davi e Roberto. Davi veio do RJ me visitar. Adoro essas amizades que não medem esforços. Mal ele chegou, nem bem tirou a mochila das costas e já começamos o debate. Aquela conversa sem fim que até seca a garganta. Mal saíamos da mesa do café. Nos dias que esteve aqui, a cozinha esteve sempre perfumada com o cheiro do capim cidreira, das folhas de laranjas e de pitanga dos seus chás. Davi com suas comidinhas gostosas, seus bolos e pães, suas receitas. Davi me ensinando remédios caseiros para tratar dos carrapatos dos cachorros e das feridinhas no corpo da Frida. Davi e suas fotos durante a nossa caminhada no final da tarde. Davi, com sua barba enorme de terrorista (hahaha) chamando a atenção da cidade. Essa Dalva anda com cada tipo esquisito. Primeiro um "elemento suspeito" em cima de uma moto que rendeu até enquadro da polícia com direito a arma em punho e tudo. E agora, esse barbudão aí.
Por falar em elemento suspeito, Roberto se juntou a nós no domingo e os debates aumentaram. Já no primeiro ônibus que pegamos começaram as discussões sobre transporte público e direito à cidade. O jovem noiado que nos pediu uma moeda na porta da estação do Move rendeu um debate do centro à Pampulha sobre subalternidade, sujeitos de direitos, ética e liberdade. Não adianta, é sempre assim. "Amizade é matéria de salvação", já disse a santa Clarice. E os meus amigos me salvam, sempre!

A quebrada está em toda parte

"eu só tenho o cotidiano e meu sentimento dele" (adélia prado)
já que o scooby me tirou da cama, fui caminhar. o sol começando a despontar atrás da serra do baldim. o céu, sem uma nuvenzinha sequer, anunciando que o dia vai ser quente. um avião a caminho do aeroporto de confins deixou um rastro de fumaça, me lembrando que o preço das passagens para petrolina vai inviabilizar o próximo concurso. justo agora, que meu amigo me arrumou o dinheiro para a inscrição. com o fone de ouvido comprado na loja do indiano, em lisboa, funcionando de um lado só, fui ouvindo "mandume" do emicida e refletindo sobre a quebrada e seus personagens. no meio do caminho a bateria do celular acabou me obrigando a prestar atenção aos sons do ambiente. na minha frente, duas senhoras com foices nos ombros. nas mãos uma sacola, provavelmente com a garrafa d'água e o pano velho para a rodilha. é ela que protege a cabeça na volta pra casa com os feixes de lenha. fui ouvindo a conversa das duas. falavam do preço da conta de luz, dos filhos, da consulta no posto de saúde. na esquina feita depósito de lixo, uma delas achou um caldeirãozinho jogado fora. "olha, tá bom ainda, dá até pra plantar uma planta", e deixou ele separado num cantinho, para pegar na volta. mais à frente elas entraram no mato e eu segui sozinha. na volta pude ouvir o som da foice picando a lenha e a alegria de uma delas por ter achado um "pau bão", "só juntar mais um pouquinho e já dá pra voltar pra casa". "bom mesmo era ter uma charrete, aí dava pra ir longe, onde tem lenha boa". parafraseando o velho Guima, a quebrada está em toda parte, a quebrada está é dentro da gente. é com esse baldim que me identifico. é no cerradinho que me sinto em casa.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Calma


o ronco do scooby é sinal que tudo se acalmou novamente. se é para passar a manhã dormindo, por que ele me tira tão cedo da cama? nalinha está enrodilhada embaixo da mesa, dandara, como sempre, dorme com a cabeça apoiada nos pés da cadeira de rodinhas, onde me sento. a cidade é um silêncio só. só ouço o som dos passarinhos e do motor da velha geladeira marrom, ou será bege? se soubesse pintar, pintaria um quadro em perspectiva dessa que tem sido a minha visão desde que cheguei aqui. a velha janela azul de madeira e tramela que abre pra dentro, os fios de energia onde, durante o dia, o tirisiu dança seu balé se exibindo pra mim e ao fundo, o morro rebrotado com as chuvas de janeiro. à direita, em cima da geladeira marrom, o velho pinguim,a jarrinha de vidro com as flores artificiais da mamãe e a chama da vela de 7 dias, acesa para a abertura dos meus caminhos. mas não sei pintar, nem desenhar e como diz adélia, "aos 50 anos não posso mais aprender profissão, aprender a nadar como se deve".

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

É domingo

chove, há dias. uma chuvinha fina, daquelas que não fazem estragos, mas engrossa rio e faz o milho crescer. depois de me tirarem da cama e revirarem essa casa pelo avesso, os cachorros agora, dormem. nalinha agarrada a uma bolinha presa por um cadarço, que acho que é do meu tênis. quem será que tirou? dandara se enrodilhou aos meus pés enquanto eu lavava a louça do café e por lá ficou, junto da pia da cozinha. scooby, aos poucos, vai assumindo, novamente, o seu lugar embaixo da mesa. frida preferiu a solidão da sala. está tudo tão quieto e silencioso que só ouço o barulhinho da chuva no telhado velho, e o canto das seriemas lá no morro. se, em seguida, não chegasse as vozes do coro da igreja, na missa de domingo, eu acharia que a cidade inteira estaria no quentinho, embaixo das cobertas. mas alguns corajosos enfrentaram a chuva e o frio e foram à missa. d. geralda é uma delas. daqui, escuto sua risada, voltando pra casa para preparar o almoço. aproveito a calmaria para ler um pouco. abro o livro de virgínia woolf e leio:" a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo dela se pretende mesmo escrever ficção." eu, sempre enredada nas teias do trabalho doméstico e nas obrigações de dona de casa e mãe de filho quase dou razão à escritora, quando lembro de outra, anzaldúa: "esqueça o quarto só pra si, escreva na cozinha, no banheiro"; "enquanto lava o chão, ou as roupas, escute as palavras ecoando em seu corpo". é sempre assim, quando começo a desanimar, uma escritora vem e me salva.

Sábado

sábado era sempre um grande movimento. dia de mamãe lavar as roupas, de limpar a casa, de varrer o quintal. um quintal que naquela época, aos nossos olhos de criança, parecia enorme. emburrados com o trabalho que nos roubava as brincadeiras, dividíamos o espaço, e cada um varria uma pequena parte. mamãe era muito caprichosa. fervia e quarava as roupas brancas. "o sol faz milagres", ela dizia. "tira todas as manchas". quarar as roupas era tão importante, que tínhamos até um quarador de tela, suspenso por pés de madeira. mamãe nos mandava buscar cavacos de eucaliptos e gravetos no campo para, num tacho de cobre, ferver as roupas brancas. numa trempe improvisada no quintal,ela ficava lá, ao lado, revirando as roupas ferventes com um pedaço de pau. depois de enxaguar por quatro vezes e colocar o anil na última água, as roupas eram estendidas no varal. mas, não de qualquer jeito. mamãe tinha uma estética precisa: primeiro, as roupas brancas, que iam seguindo em tons degradês. primeiro as calças, as bermudas, até chegar nas calcinhas e nas cuecas.depois os vestidos, as saias, as camisas de manga comprida, de manga curta, até chegar nas camisetas. primeiro, as roupas dos adultos, depois as das crianças. ela odiava o estrago que a fumaça do fogão a lenha deixava nas paredes e por isso, buscava barro no córrego para passar sobre o preto da fumaça até a cozinha ficar branquinha novamente. era uma disputa inglória, mas ela incansável, não desistia. aos sábados, todas as vasilhas de alumínio da prateleira tinham que ser areadas com bucha vegetal e areia fina. o sabão era ela mesma quem fazia. os forrinhos eram todos trocados. assim como as colchas das camas, feitas de saco de algodão alvejado e bordados a mão. sempre os mesmos motivos florais. o miolo das flores de amarelo, as pétalas vermelhas e as folhas e os caules verdes. daria meu mundo para ter, hoje, novamente, uma colcha daquelas. o chão, de cimento vermelho era, semanalmente, encerado com cera inglesa pastosa, derretida no fogo, que, depois de seca tinha que ser lustrada com um pano felpudo, já que não tínhamos o esfregão, irmão mais velho da enceradeira. só depois de tudo limpo é que podíamos brincar. "primeiro a obrigação, depois a devoção", ela dizia. mamãe tinha fome de beleza. era onde residia a poesia dela, no jeito de cuidar da casa. que saudade de ter mãe...

Playlist II

Os últimos dias foram tão tensos que nem caminhar consegui. Hoje, acordei e fui bem cedinho. É tão bom. A cidade ainda mais silenciosa e o sol dando seu espetáculo. Durante muito tempo nas caminhadas, só ouvia o gravador com os dados de campo, as entrevistas, as conversas com a orientadora e com os amigos que me ajudaram a organizar as ideias da pesquisa. Hoje, com uma playlist nova, recém-baixada para o celular, senti novamente o prazer da endorfina sendo liberada, não só pelo exercício físico, como também pela boa música.
Comecei ouvindo as músicas do projeto "Mar Azul", que é uma releitura de sucessos do Clube da Esquina. Júlia Vargas, com sua voz maravilhosa, acompanhada de violão e flauta baixo. Júlia, além de linda, canta super bem. Foi comparada a Sara Vaughan, pelo Milton Nascimento. Ouvir Júlia me deixa tão arrependida de ter abandonado o projeto da banda de Seo João de Afonso. Queria tanto cantar, ser backing vocal. Quem sabe um dia ainda realizo o desejo de fazer aulas de canto?
Em seguida veio Criolo com a trilha do filme "Cidade Cinza" que fala sobre a política de "limpeza urbana" que a prefeitura de São Paulo tinha há alguns anos, apagando os grafites pela cidade. Criolo, gênio, busca Cosme e Damião e Doum para homenagear os irmãos grafiteiros "Gêmeos". Em seguida, Criolo continua com "Olhos de Safira" , uma crônica sobre um homem abandonado em um hotel da Rua Augusta. Para "fazer valer" a diária já paga, o apaixonado volta ao quarto com três cabrochas solidárias à sua condição.
Em seguida surge a voz suave de Michele Leal, que também me mata de inveja, e me faz lembrar do casario, telhados e torres da cidade de Diamantina, que acho, é onde foi composta a música "Paisagem da janela", de Lô Borges e Fernando Brant.
Paulinho Moska canta "Quem sabe isso quer dizer amor", acompanhado de seu violão. Em seguida, Pedro Luiz me lembra da realeza conga com os versos:
"Dentro das alas, nações em festa
Reis e rainhas cantar
Ninguém se cala louvando as glórias
Que a história contou
Marinheiros, capitães, negros sobas
Rei do congo, a rainha e seu povo
As mucamas e os escravos no canavial
Amadês senhor de engenho e sinhá".
É a letra de "Reis e rainhas do Maracatu", de Milton Nascimento.
Criolo volta me trazendo inspiração com a música nova do disco "Violar", projeto do estúdio "Instituto":
É, dizem que não é pra você
Essa história de vencer
E sonhar e conquistar
Eu digo que é pra você
Essa história de vencer
De sonhar e conquistar
Eles querem forjar heróis
Pra manter o povo sem voz
É o soco no queixo, lapada no beiço
O tambor de criola merece respeito
Duro é saber que o país que almejo
Já foi vendido por um baixo preço
Então façam das flores navalhas
Que farei das canções baionetas
A verdade é o todo e o todo é povo
Meu povo é sofrido e não foge da luta
Pois em casa de menino de rua
O último a dormir apaga lua
Vai, que eu quero encontrar este lugar
E possa dizer: "valeu a pena essa porra de vez!"
Vai ser assim, senhor".
Em seguida entra a voz de Johnny Hooker lembrando tudo que já sofri por amor, ao cantar "Volta" e aí não tem como não lembrar do clip lindo dele com Irandhir Santos. Ele ainda canta "Amor marginal" e me faz lembrar dessa galera que tá chegando por aí, desconstruindo tudo: Liniker, Zek Andrade, Rico Dalasam.
Na volta ouço Nina Simone com a trilha sonora da minh vida "Ain't got no" e em seguida, "Don't let me be misunderstood".
E para fechar, em homenagem ao menino, ouço a banda "Maneva", em "Daquele jeito" e lembro dele dançando reggae e penso que valeu a pena todas as vezes que o carreguei, ainda bebê, com a matulinha de fraudas e papinhas a tiracolo, para um monte de show bacana.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

TEXTÃO ou sobre doutorado, designação e alisamento de cabelo

Quando decidi fazer a graduação, sabia exatamente o curso que queria: Ciências Sociais com ênfase em Sociologia. Também escolhi licenciatura porque queria dar aulas. Professor pode até ganhar pouco, mas não fica desempregado e como já era responsável pelo meu próprio sustento, desde os 14 anos, escolhi fazer bacharelado e licenciatura. Assim que me formei, comecei a dar aulas na rede pública estadual como professora designada, que é aquela categoria que não é concursada e é contratada por um determinado período. Dei aulas em 9 escolas públicas diferentes; estaduais e municipais. Fui educadora infantil na Pedreira Prado Lopes, um favela de BH; alfabetizei no bairro Nova Contagem, onde pegava 3 ônibus e levava quase 3 horas para chegar. Cheguei a dar aulas de Ensino Religioso de 5ª a 8ª séries. Eu, uma agnóstica, fiz um curso na Arquidiocese de Belo Horizonte para assumir essas aulas. Na verdade, dava era aulas de sociologia, pois não sei fazer outra coisa. Trabalhei com alunos do ensino médio e como cada turma tinha somente uma aula semanal de sociologia, cheguei a ter em um ano letivo, 900 alunos e 36 diários de classe para preencher. Foi um experiência incrível com todas as implicações que se possa imaginar. Tive alunos maravilhosos, tive alunos que me faziam chorar de frustração por não conseguir dar aulas. Tive diretores e colegas incríveis, mas também conheci muita gente infeliz, preconceituosa, num ambiente que adoece as pessoas. Depois, fiz uma especialização, um mestrado e comecei a dar aulas na graduação. Adoro a sala de aula. Tenho ex-alunos que viraram meus amigos. Muitos estão fazendo doutorado como eu. Ontem mesmo, conversava sobre isso com uma ex-aluna que virou amiga e colega de profissão.
Março de 2015 foi o último mês que recebi bolsa. Tinha uma reserva que me possibilitou pagar as contas por mais alguns meses. Peguei umas orientações à distância e garanti algum dinheiro por mais um tempinho, e tenho uma irmã que é meu anjo da guarda e tem me salvado quando a falta de grana aperta. Isso sem falar nos amigos generosos que têm me emocionado nos últimos dias.
Ontem, resolvi participar do processo de designação, aqui em Baldim, para pegar 8 aulas de sociologia e garantir algum dinheiro para as contas. Não foi fácil tomar a decisão de participar do processo. A sensação era de que tinha fracassado, pois uma coisa é você dar aulas, contratada em condições precárias pelo Estado, quando é recém formada, não tem experiência, etc. Outra, é quando você está terminando o doutorado. E não me entendam mal, o problema não está na escola, nem nos profissionais da educação, muito menos nos alunos. Somos todos vítimas desse processo de abandono e descaso da educação básica nesse país.
Enquanto esperava o chamado para a designação de sociologia, eu lia Americanah da nigeriana Chimamanda, exatamente no momento em que a personagem Ifemelu alisava o cabelo para participar de um processo de selação para uma vaga de emprego. Ifemelu migrou da Nigéria para os Estados Unidos e durante toda a vida usou seu cabelo trançado, não só como uma questão estética, mas como uma questão política. A narrativa que Chimamanda constrói para descrever a cena é tão forte que senti um mal estar enquanto lia. Ifemelu compra um alisante na farmácia e ela mesma faz o tratamento:
"Desde que ela tinha chegado aos Estado Unidos, ela trançava o cabelo com longos apliques (...) Por isso, relaxar o cabelo seria uma nova aventura. Ifemelu tirou as tranças, tomando cuidado para não machucar o couro cabeludo, para não mexer na camada que o protegeria. Havia uma variedade imensa de relaxantes, caixas e mais caixas na seção de "cabelo étnico" da farmácia, com fotos de mulheres negras sorrindo com cabelos impossíveis de tão lisos e brilhantes ao lado de palavras como "botânico" e "aloe vera", que prometiam um processo suave. Ela comprou um numa caixa verde. No banheiro, passou com cuidado o gel protetor entre as raízes e a testa antes de começar a besuntar o cabelo com o relaxante cremoso, madeixa por madeixa, com as mãos em luvas plásticas. O cheiro a fez lembrar o laboratório de química e, por isso, Ifemelu forçou a janela do banheiro, que muitas vezes emperrava. (...) O relaxante não pegou. Essa foi a palavra - "pegou" - que a cabeleireira da zona oeste da Filadélfia usou. 'Menina, você precisa de uma profissional', disse enquanto passava outro relaxante. (...) Ifemelu sentiu apenas uma ardência no começo, mas quando a cabeleireira estava tirando o relaxante enquanto ela mantinha a cabeça apoiada em uma pia de plástico, agulhadas de dor profunda surgiram em diversas partes do seu couro cabeludo (...) 'Arde um pouco', disse a cabeleireira, 'Mas olha como ficou bonito. Uau, menina, você está com um balanço de branca!' (...) O cabelo de Ifemelu pendia em vez de se manter armado. estava liso e cintilante (...) não tinha mais cachos. Ela não se reconheceu. Saiu do salão quase de luto; enquanto a cabeleireira alisava as pontas com um ferro, o cheiro de queimado, de algo orgânico morrendo, causou nela uma sensação de perda. (...) À noite, ela demorou para encontrar uma posição confortável no travesseiro. Dois dias depois, havia pus ali. (...) Mais tarde, quando passou sem problemas pela entrevista de emprego e a mulher apertou sua mão e disse que 'se encaixaria maravilhosamente' bem na empresa, Ifemelu se perguntou se a mulher teria achado a mesma coisa se ela tivesse entrado naquele escritório com a coroa espessa e crespa que Deus lhe dera, seu afro."
Quem já alisou o cabelo sabe a violência física e simbólica que isso significa.
"- Ensino Religioso"! O diretor gritou e me trouxe de volta para a designação. Aqui e ali um burburinho de candidatos comentando do processo. Aulas que pegaram em outros municípios, agradecimentos a deus por ser apenas um candidato, decepção porque não conseguiu a vaga... Quem já passou por uma designação sabe do que eu estou falando.
"- Sociologia!"
Chegou a minha vez. Éramos 4 candidatos. A professora que apesar de não ser habilitada em sociologia possuía o CAT- certificado de avaliação de títulos que a Secretaria Estadual de Educação fornece depois de avaliar o seu histórico escolar. Eu, por exemplo, posso dar aulas de sociologia, filosofia, história e geografia, apesar de me sentir autorizada somente para sociologia. Os gestores leram a resolução que regia a designação. A prioridade era para concursados que ainda não tinham sido empossados e não havia nenhum candidato nessa condição. Depois vinha habilitados que era o meu caso. Ficou visível no rosto da professora que leciona as aulas na escola a decepção em perdê-las. E eu, me sentindo muito mal por pegar as aulas, para um período temporário, já que meus projetos são outros. Na hora da entrega dos documentos comprobatórios que a resolução pedia, eu perdi a vaga pois não tinha um atestado médico. Confesso que me senti aliviada, mas fiquei refletindo sobre esse processo cruel que é a designação. Como um governo fica mais de 20 anos no poder e não realiza um concurso? E como efetiva quase 80 mil servidores sem concurso? Um professor com 22 horas semanais deve receber aproximadamente 1500 reais. Um menor aprendiz que trabalha 30 horas chega a receber 1200. Eu, habilitada, com mestrado, terminando um doutorado não pude pegar as aulas porque não tinha um atestado médico. Conheço o processo e sei que é assim que funciona, mas tem alguma coisa muito errada nisso tudo. É muito descaso com a educação básica. E não é de hoje, isso vem há 500 anos.
E o que isso tem a ver com a excerto do livro da Chimamanda? Tem tudo a ver. Sei que estou vivendo um momento de transição, que coisas vão acontecer, que o emprego vai chegar. Tenho me dedicado a isso nos últimos anos desde que decidi fazer o mestrado e depois o doutorado. Mas estou naquele momento da falta de grana e de desconhecimento do que será o futuro.
Lembrei de outros trabalhos que tive e dos cargos que não assumi por não alisar o cabelo, nem vesti o terninho. Eu até que tentei, mas era muita violência comigo. Ainda carrego a herança pelo fato dos meus ancestrais terem chegado aqui, no porão de um navio tumbeiro. Hoje, quando vejo meu filho de 13 anos louco para completar 14 e começar a trabalhar, me dá um puta orgulho, mas também uma frustração enorme, pois, a ponto de completar 50 anos, ainda não consigo proporcionar a ele muitas coisas que ele precisa. Penso que é terrível, um adolescente de 13 anos estar mais preocupado em trabalhar do que em ingressar numa universidade. A universidade faz parte dos planos dele quase que naturalmente, pois cresceu me vendo estudar, mas ele sonha mesmo é com um salário para poder ter mais que 1 par de tênis, poder comprar seus shapes, rodas e trucks e suas camisetas de banda de rock. Venho de uma família que viveu abaixo da linha da pobreza e ainda não consegui resolver as questões básicas de sobrevivência. Tenho clareza que a nossa vida é resultado das escolhas que fazemos, mas essas escolhas são determinadas por condições objetivas de existência. Não somos tão livres como pensamos. A pobreza deixa marcas profundas na gente, marcas difíceis de resolver.
A minha sorte é que sou rica de amigos, amigos preciosos, que estão juntos comigo para o que der e vier. Agora mesmo, tem um aqui comigo, que desde que chegou estamos numa resenha sem fim. Aquelas conversas terapêuticas que valem por meses de divã. Vou inclusive, parar o texto por aqui, e continuar essa conversa com ele, enquanto tomamos o café