domingo, 14 de fevereiro de 2016

Escrever como preta

"- sinto falta de uma 'escrita preta', reclamei.
a amiga, já meio cansada do meu "chororô de sempre, em seu português 'mestiço', me respondeu meio impaciente:
"- eu também sinto falta de uma 'escrita preta', dalva! com mulheres, traficantes, bandidas, com raiva, com cachaça, com cheiro de maconha, com poesia, com coragem, com funk, com rua, muita rua, com brincadeira, com rap, com sátira, com ironia, com compaixão, com surpresa, com amizade, com drogas, com gatos e cachorros, com pulga, com amor dos usuários, com sua fraternidade e suas filosofias de vida, como nunca encontrei uma, eu quis/tive que fazer."
ela está escrevendo uma linda tese sobre as 'usuárias' do pelourinho. mulheres lindas, cheias de vida, histórias e sonhos. chego a ficar comovida com a sensibilidade através da qual ela humaniza essas mulheres. é quase que um romance, um roteiro de cinema onde intercruzam raça, gênero, classe social, política pública. tudo fica pequeno para dar conta da grandeza das 'mulheres de gabina'.
e ela prossegue em sua exortação:
"- essa é a sua tarefa, dalva! escrever como preta! nenhuma leitura vai te trazer isso, o esforço da tese é justamente esse, trazer nossos teóricos à tona. viver, refletir, amar, cantar, fumar, escrever junto com eles. nenhuma leitura vai acalmar tua sede, só ouvindo e aprendendo como é que aprendem o mundo essas pessoas que tanto admiramos, e junto aos quais vivemos pelo menos três anos de nossas vida, um ano curtindo na pele e outros dois na escrita. só assim é que vamos conseguir fechar esta porra com dignidade, que valha a pena tirar o tempo passado que investiram em nós, nos cuidando, alimentando, nos protegendo e educando."
a essa altura, de cabeça baixa, eu já estava chorando e arrependida da reclamação. ela continuou:
"- eu vejo meu trabalho como um esforço, como uma homenagem, humilde, mas feita de todo coração para meus colegas e amigos das ruas do pelô! eu sei que tu também gostas da capitã, aprendeste muito com ela, então, não fique tentando desvendar mistérios em nenhuma teoria ou autor, em nenhuma pele que não seja a tua e a dos teus interlocutores, encarnados, desencarnados, todo eles. porém, roube coisinhas de outros para que esse negocio fique com cara de tese. roube sem culpa! mas nunca se esqueça de trazer a força desse canto negro!"

que os santos, os espíritos encarnados e desencarnados, que os inquices me ajudem a terminar esse "livro preto" sobre uma etnografia preta que fala de um canto preto.
amém, que assim seja, axé!

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