segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

TEXTÃO ou sobre doutorado, designação e alisamento de cabelo

Quando decidi fazer a graduação, sabia exatamente o curso que queria: Ciências Sociais com ênfase em Sociologia. Também escolhi licenciatura porque queria dar aulas. Professor pode até ganhar pouco, mas não fica desempregado e como já era responsável pelo meu próprio sustento, desde os 14 anos, escolhi fazer bacharelado e licenciatura. Assim que me formei, comecei a dar aulas na rede pública estadual como professora designada, que é aquela categoria que não é concursada e é contratada por um determinado período. Dei aulas em 9 escolas públicas diferentes; estaduais e municipais. Fui educadora infantil na Pedreira Prado Lopes, um favela de BH; alfabetizei no bairro Nova Contagem, onde pegava 3 ônibus e levava quase 3 horas para chegar. Cheguei a dar aulas de Ensino Religioso de 5ª a 8ª séries. Eu, uma agnóstica, fiz um curso na Arquidiocese de Belo Horizonte para assumir essas aulas. Na verdade, dava era aulas de sociologia, pois não sei fazer outra coisa. Trabalhei com alunos do ensino médio e como cada turma tinha somente uma aula semanal de sociologia, cheguei a ter em um ano letivo, 900 alunos e 36 diários de classe para preencher. Foi um experiência incrível com todas as implicações que se possa imaginar. Tive alunos maravilhosos, tive alunos que me faziam chorar de frustração por não conseguir dar aulas. Tive diretores e colegas incríveis, mas também conheci muita gente infeliz, preconceituosa, num ambiente que adoece as pessoas. Depois, fiz uma especialização, um mestrado e comecei a dar aulas na graduação. Adoro a sala de aula. Tenho ex-alunos que viraram meus amigos. Muitos estão fazendo doutorado como eu. Ontem mesmo, conversava sobre isso com uma ex-aluna que virou amiga e colega de profissão.
Março de 2015 foi o último mês que recebi bolsa. Tinha uma reserva que me possibilitou pagar as contas por mais alguns meses. Peguei umas orientações à distância e garanti algum dinheiro por mais um tempinho, e tenho uma irmã que é meu anjo da guarda e tem me salvado quando a falta de grana aperta. Isso sem falar nos amigos generosos que têm me emocionado nos últimos dias.
Ontem, resolvi participar do processo de designação, aqui em Baldim, para pegar 8 aulas de sociologia e garantir algum dinheiro para as contas. Não foi fácil tomar a decisão de participar do processo. A sensação era de que tinha fracassado, pois uma coisa é você dar aulas, contratada em condições precárias pelo Estado, quando é recém formada, não tem experiência, etc. Outra, é quando você está terminando o doutorado. E não me entendam mal, o problema não está na escola, nem nos profissionais da educação, muito menos nos alunos. Somos todos vítimas desse processo de abandono e descaso da educação básica nesse país.
Enquanto esperava o chamado para a designação de sociologia, eu lia Americanah da nigeriana Chimamanda, exatamente no momento em que a personagem Ifemelu alisava o cabelo para participar de um processo de selação para uma vaga de emprego. Ifemelu migrou da Nigéria para os Estados Unidos e durante toda a vida usou seu cabelo trançado, não só como uma questão estética, mas como uma questão política. A narrativa que Chimamanda constrói para descrever a cena é tão forte que senti um mal estar enquanto lia. Ifemelu compra um alisante na farmácia e ela mesma faz o tratamento:
"Desde que ela tinha chegado aos Estado Unidos, ela trançava o cabelo com longos apliques (...) Por isso, relaxar o cabelo seria uma nova aventura. Ifemelu tirou as tranças, tomando cuidado para não machucar o couro cabeludo, para não mexer na camada que o protegeria. Havia uma variedade imensa de relaxantes, caixas e mais caixas na seção de "cabelo étnico" da farmácia, com fotos de mulheres negras sorrindo com cabelos impossíveis de tão lisos e brilhantes ao lado de palavras como "botânico" e "aloe vera", que prometiam um processo suave. Ela comprou um numa caixa verde. No banheiro, passou com cuidado o gel protetor entre as raízes e a testa antes de começar a besuntar o cabelo com o relaxante cremoso, madeixa por madeixa, com as mãos em luvas plásticas. O cheiro a fez lembrar o laboratório de química e, por isso, Ifemelu forçou a janela do banheiro, que muitas vezes emperrava. (...) O relaxante não pegou. Essa foi a palavra - "pegou" - que a cabeleireira da zona oeste da Filadélfia usou. 'Menina, você precisa de uma profissional', disse enquanto passava outro relaxante. (...) Ifemelu sentiu apenas uma ardência no começo, mas quando a cabeleireira estava tirando o relaxante enquanto ela mantinha a cabeça apoiada em uma pia de plástico, agulhadas de dor profunda surgiram em diversas partes do seu couro cabeludo (...) 'Arde um pouco', disse a cabeleireira, 'Mas olha como ficou bonito. Uau, menina, você está com um balanço de branca!' (...) O cabelo de Ifemelu pendia em vez de se manter armado. estava liso e cintilante (...) não tinha mais cachos. Ela não se reconheceu. Saiu do salão quase de luto; enquanto a cabeleireira alisava as pontas com um ferro, o cheiro de queimado, de algo orgânico morrendo, causou nela uma sensação de perda. (...) À noite, ela demorou para encontrar uma posição confortável no travesseiro. Dois dias depois, havia pus ali. (...) Mais tarde, quando passou sem problemas pela entrevista de emprego e a mulher apertou sua mão e disse que 'se encaixaria maravilhosamente' bem na empresa, Ifemelu se perguntou se a mulher teria achado a mesma coisa se ela tivesse entrado naquele escritório com a coroa espessa e crespa que Deus lhe dera, seu afro."
Quem já alisou o cabelo sabe a violência física e simbólica que isso significa.
"- Ensino Religioso"! O diretor gritou e me trouxe de volta para a designação. Aqui e ali um burburinho de candidatos comentando do processo. Aulas que pegaram em outros municípios, agradecimentos a deus por ser apenas um candidato, decepção porque não conseguiu a vaga... Quem já passou por uma designação sabe do que eu estou falando.
"- Sociologia!"
Chegou a minha vez. Éramos 4 candidatos. A professora que apesar de não ser habilitada em sociologia possuía o CAT- certificado de avaliação de títulos que a Secretaria Estadual de Educação fornece depois de avaliar o seu histórico escolar. Eu, por exemplo, posso dar aulas de sociologia, filosofia, história e geografia, apesar de me sentir autorizada somente para sociologia. Os gestores leram a resolução que regia a designação. A prioridade era para concursados que ainda não tinham sido empossados e não havia nenhum candidato nessa condição. Depois vinha habilitados que era o meu caso. Ficou visível no rosto da professora que leciona as aulas na escola a decepção em perdê-las. E eu, me sentindo muito mal por pegar as aulas, para um período temporário, já que meus projetos são outros. Na hora da entrega dos documentos comprobatórios que a resolução pedia, eu perdi a vaga pois não tinha um atestado médico. Confesso que me senti aliviada, mas fiquei refletindo sobre esse processo cruel que é a designação. Como um governo fica mais de 20 anos no poder e não realiza um concurso? E como efetiva quase 80 mil servidores sem concurso? Um professor com 22 horas semanais deve receber aproximadamente 1500 reais. Um menor aprendiz que trabalha 30 horas chega a receber 1200. Eu, habilitada, com mestrado, terminando um doutorado não pude pegar as aulas porque não tinha um atestado médico. Conheço o processo e sei que é assim que funciona, mas tem alguma coisa muito errada nisso tudo. É muito descaso com a educação básica. E não é de hoje, isso vem há 500 anos.
E o que isso tem a ver com a excerto do livro da Chimamanda? Tem tudo a ver. Sei que estou vivendo um momento de transição, que coisas vão acontecer, que o emprego vai chegar. Tenho me dedicado a isso nos últimos anos desde que decidi fazer o mestrado e depois o doutorado. Mas estou naquele momento da falta de grana e de desconhecimento do que será o futuro.
Lembrei de outros trabalhos que tive e dos cargos que não assumi por não alisar o cabelo, nem vesti o terninho. Eu até que tentei, mas era muita violência comigo. Ainda carrego a herança pelo fato dos meus ancestrais terem chegado aqui, no porão de um navio tumbeiro. Hoje, quando vejo meu filho de 13 anos louco para completar 14 e começar a trabalhar, me dá um puta orgulho, mas também uma frustração enorme, pois, a ponto de completar 50 anos, ainda não consigo proporcionar a ele muitas coisas que ele precisa. Penso que é terrível, um adolescente de 13 anos estar mais preocupado em trabalhar do que em ingressar numa universidade. A universidade faz parte dos planos dele quase que naturalmente, pois cresceu me vendo estudar, mas ele sonha mesmo é com um salário para poder ter mais que 1 par de tênis, poder comprar seus shapes, rodas e trucks e suas camisetas de banda de rock. Venho de uma família que viveu abaixo da linha da pobreza e ainda não consegui resolver as questões básicas de sobrevivência. Tenho clareza que a nossa vida é resultado das escolhas que fazemos, mas essas escolhas são determinadas por condições objetivas de existência. Não somos tão livres como pensamos. A pobreza deixa marcas profundas na gente, marcas difíceis de resolver.
A minha sorte é que sou rica de amigos, amigos preciosos, que estão juntos comigo para o que der e vier. Agora mesmo, tem um aqui comigo, que desde que chegou estamos numa resenha sem fim. Aquelas conversas terapêuticas que valem por meses de divã. Vou inclusive, parar o texto por aqui, e continuar essa conversa com ele, enquanto tomamos o café

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