sábado, 29 de maio de 2010

Aprendamos o rito

Põe na mesa a toalha adamascada,
Traz as rosas mais frescas do jardim,
Deita o vinho no copo, corta o pão,
Com a faca de prata e de marfim.

Alguém se veio sentar à tua mesa,
Alguém a quem não vês, mas que pressentes,
Cruza as mãos no regaço, não perguntes:
Nas perguntas que fazes é que mentes.

Prova depois o vinho, come o pão,
Rasga a palma da mão no caule agudo,
Levas as rosas à fronte, cobre os olhos,
Cumpriste o ritual e sabes tudo.

José Saramago

domingo, 21 de março de 2010

De novo, Adélia!

"Quase entendo a razão da minha falta de ar.
Ao escolher palavras com que narrar minha angústia,
eu já respiro melhor,
A uns Deus os quer doentes,
a aoutros quer escrevendo."

Adélia Prado - Ex-voto

Mater dolorosa

"Este puxa-puxa
tá com gosto de coco.
A senhora pôs coco, mãe?
- Que coco nada.
- Teve festa quando a senhora casou?
- Teve. Demais.
- O que teve então?
- Nada não menina, casou e pronto.
- Só isso?
- Só e chega.
Uma vez fizemos peqenique,
ela fez bolas de carne
pra gente comer com pão.
Lembro a volta do rio
e nós na areia.
Era domingo,
ela estava sem fadiga
e me repondia com docura.
Se for só isso o céu,
está perfeito."

Adélia Prado

sexta-feira, 19 de março de 2010

Inspiração ou a falta dela...

"De vez em quando Deus me tira a poesia.
Olho pedra, vejo pedra mesmo.
O mundo, cheio de departamentos,
não é a bola bonita caminhando solta no espaço.
Eu fico feia, olhando espelhos com provocação,
batendo a escova com força nos cabelos,
sujeita à crença em presságios,
Viro péssima cristã."

Adélia Prado - Paixão

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Obrigada, Poeta!

Então é isso!
Meu coração é pequeno
Pequeno para todas as dores,
As minhas e as do mundo.
Por isso me conto, me dispo, me grito.
Mas ele também pode crescer,
Crescer até explodir,
Pois é muita coisa para amontoar num só peito,
De mulher...

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Mundo Grande

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso,
amontoar tudo isso num só peito de homem...
sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros, tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma!
Vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo desaprendi a linguagem com que homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei países imaginários,
fáceis de habitar,
ilhas sem problemas,
não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.

Meus amigos foram às ilhas.
lhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e trouxeram a notícia de que o mundo,
o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos.


Carlos Drummond de Andrade