sábado, 29 de abril de 2017

A cidade e o morro

Quando eu tinha 13 anos mamãe mudou para BH. Lembro que cheguei da escola e ela estava embalando as coisas. Dona Angelina, nossa vizinha, ajudava enrolando a louça em jornal. Eu não acreditei no que via. Depois de muita ameaça mamãe cumpria o prometido e saía de casa, separando de vez do papai. Me deu um aperto no peito, um nó na garganta, uma vontade de chorar.
- Você decide se vem ou se fica. Ela disse.
Como ir? Na época eu vivia dividida entre nossa casa e a casa do vovô.Vovó Chica já tinha morrido, mas antes de morrer chorou muitas vezes. Quando eu perguntava por que, ela dizia entre lágrimas:
-Tenho medo de morrer e você largar o Izé sozinho.
Não tinha como acompanhar mamãe. Fiquei com o vovô. Foi uma das decisões mais difíceis da minha vida. Durante anos sofri com essa situação. Meu desejo era a capital onde mamãe e meus irmãos e irmãs estavam. Mas não tinha como deixar o vovô "Izé" sozinho.
Mas a vida dá voltas. Passados quase 40 anos, hoje é o contrário. Eu sofro para ir para a capital. Nunca pensei que fosse gostar tanto dessa janela azul de tramela, de olhar o morro através dela, de ficar observando os beija-flores e os passarinhos, de me deslumbrar com cada brotinho que nasce neste quintal. E ainda tem o afeto do Scooby, da Fridinha, as histórias do meu irmão. Sem contar ficar longe do menino.
É, o mundo dá mesmo muitas voltas...

O hip hop é foda!

Enquanto o menino fazia a tarefa da escola, ouvia rap. A tarefa era copiar uma prova sobre geografia da Ásia. Geografia. da. Ásia. Tipo, clima. da. Ásia. Setentrional. Na TV, rolava o vídeo do "Poetas no topo 3", uma cypher que juntou 8 rapper, 2 deles mulheres. Uma delas é a Clara Lima, a Clarinha, aqui de BH. Não deve ter 18 anos, mas rima desde a adolescência, enfrentando o racismo nas batalhas de MC's embaixo do Viaduto Santa Teresa. O verso da outra rapper, Drik Barbosa, [pesado, como diria o menino] é recheado de referências feministas. Drik fala da invisibilidade da mulher negra e cita o filme "Estrelas além do tempo", fala do extermínio da juventude negra e da morte do garoto João Vitor em frente ao Habib's, fala de feminicídio, da solidão da mulher negra, fala das suas referências que vão de Lauryn Hill, passando por Dina Di, à filósofa Djamila Ribeiro. Drik fala de machismo em suas rimas. Isso só no verso da Drik. A cypher tem 8 versos. Eu devolvi para o menino uma provocação que ouvi na semana passada do professor Carlos Rodrigues Brandão: "onde está a educação?". Segundo o professor, às vezes ela está onde nem imaginamos, e não onde deveria. Eu, enquanto mãe e professora, agradeço todos os dias o menino ouvir rap. Não sei nem mensurar o tanto que ele já aprendeu. Bendito o dia em que o tio aplicou Racionais MC's naquele garotinho de 8 anos.

Aula

Cerca de 24 horas depois, eu ainda estou tomada pelo dia de ontem. Deu o início da aula e a pessoa responsável pelas chaves da nossa sala havia se atrasado. Alguém sugeriu irmos para o "Jardim das Mandalas", um cantinho aconchegante de flores e ervas construído pela educação indígena e quilombola na Faculdade de Educação da UFMG. Com a autorização do moço que aguava o jardim, nos acomodamos em cadeiras e esteiras. Ajeitamos nosso café em cima do fogãozinho a lenha construído no local e iniciamos a aula. Thamires e Alice assumiram a condução do primeiro texto sobre juventudes. A segunda parte foi de responsabilidade da Hanna e da Paula. Thamires, intuitiva do jeito que é, percebeu logo meu olhar diferente e indagou porque eu a olhava daquele jeito. Expliquei que era admiração por tanta sabidice em menina tão nova. Gabriel sentia o chão de terra batida, recém-aguado, sob os pés; os tênis ficaram abandonados num canto. Além da música suave, que rolava ao fundo vindo não sei bem de onde, tivemos a companhia de pardais, bem-te-vis e até um sanhaço azul. Tinha uma energia diferente ali, com a potência daquela natureza toda à nossa volta. Penso que também estava naquele chão batido, por tantos pés pisado e nas paredes de barro que carregam a energia de todos e todas que ajudaram a erguê-las. Aquele jardim carrega história. Como nos ensina Bertolt Brecht, são as marcas que conferem nobreza aos objetos. E os daquele local são objetos felizes porque foram colhidos por muitas mãos, o chão foi pisado por muitos pés. Cada pezinho de erva e cada flor naquele local carrega história e energia e pudemos sentir tudo isso, ontem. Paramos para o café que tem sido um dos momentos mais legais das nossas aulas. Aprendi com capitã Pedrina e com os reinadeiros de Nossa Senhora do Rosário que o encontro fica melhor quando tem comida. Um cafezinho quentinho, uma broa de fubá. Eu levo o café e as canequinhas [preciso comprar mais, pois estão poucas] e sempre aparecem biscoitos, bolos, pães. Nem precisamos combinar, alguém sempre leva. O segundo tempo da aula não foi suficiente. Com alguns alunxs continuamos a conversa no almoço e depois do almoço. Tem sido assim, toda semana. Outro dia ficamos de 11:30 até às duas, falando de tudo, dos textos lidos, de astrologia, de filhos... A aula de ontem foi potente, teve emoção, teve choro. Até Bourdieu e sua sociologia da educação ficou didático. Como diz minha amiga Gloria Diogenes, "no vácuo, nas brechas e nos vazios é possível levantar um novo chão". E assim sigo, nesse trabalho de formiguinha, fazendo minhas micro revoluções. A sala de aula é um espaço onde me reinvento todos os dias. É lugar de encontro, de diálogo, de afeto, de conflito. É na sala de aula que exerço a minha humanidade, é onde sou chamada a rever minha prática, com os meninos e meninas me colocando pra pensar, me instigando, me ensinando coisas novas, com aquela energia própria da juventude. É local onde se assenta a tríade: pensar/sentir/fazer. Este exercício do qual nos fala o professor José Jorge de Carvalho e que é deveras bonito: "Pensar e sentir o que faz; fazer o que pensa e o que sente; sentir o que faz e o que pensa." A condição docente é relacional, já dizia Inês Teixeira, minha professora e musa inspiradora, mas a comunicação às vezes não é fácil de acontecer. É trabalho de estiva, diz a cineasta Ana Carolina. Às vezes demoramos uma vida inteira pra aprender a falar a nosso própria língua, nos fazer entender, conseguirmos nos expressar. A não expressão é o hospício, ela diz. Mas construir o próprio dialeto não é tarefa fácil. A cineasta usa a metáfora de uma caixa de concreto onde se está preso. A ruptura dessa caixa é resultado de trabalho árduo, que às vezes pode levar anos, é "estiva" como ela mesma diz, não tem nada de glamour. Mas não há outra saída: ou conseguimos nos expressar ou é a loucura! Ontem, foi um daqueles dias que a comunicação rolou! Segundo o ator João Miguel, quando alguém fala e o outro é tocado é porque se estabeleceu ali, um canal, que na minha opinião, é da ordem do divino, do sagrado. Por isso, sou devedora aos meus alunos e alunas e, parafraseando mais um grande mestre - Levi-Strauss, de vocês quero ser discípula e testemunha ... Sempre! Gratidão

Niver do menino

21 de abril de 2002. Há 15 anos meus olhos encontraram os seus pela primeira vez e eu só sabia repetir: ele é lindo, ele é lindo! Repetimos esse gesto enquanto você coube no meu colo, lembra? "Mãe, vamos representar o dia em que eu nasci?" "Mãe, conta a história quando você decidiu que me queria ter?" E, quantas vezes, eu, segurando o riso, colocava você no colo e repetíamos, o gesto e a frase. Você, sério, brigava: "Sem rir, mãe. Isso é uma representação, se concentra!" 15 anos! Passamos tanta coisa juntos, né? 5 cidades, 2 países, 2 continentes, 9 escolas, 10 casas! E você sempre de bom humor, segurando a minha mão. Lembra daquele dia em Florianópolis que fui encontrar com você, depois da aula, aos prantos, depois de ter sido humilhada em sala porque eu não conseguia ler a bibliografia em inglês do doutorado? O professor disse que eu não podia me vitimizar. Hoje, eu teria todos os argumentos para debater com ele e explicar que não era "mimimi", mas naquele dia só consegui chorar. E subindo a ladeira no bairro Carvoeira, você, aos 8 anos de idade, segurou minha mão e disse: "Calma, mãe! Olha onde você chegou!" E me contou a história do rei que distribuiu sementes aos seus súditos. Do alto de sua sabedoria infantil você me confortava: "Mãe, você plantou sua semente. Eu vi! Ela vai germinar!" Naquela hora eu me senti ridícula sendo consolada por uma criança, apertei sua mão com força e subimos a ladeira, a caminho da quitinet, apoiando um no outro. E tem sido assim nesses anos todos. Como ontem a noite, quando você chegou da casa do seu pai e fez a resenha da semana que passamos longe. "Mãe, você pode não acreditar, mas eu sinto sua falta!" Deitado ao meu lado, você confessou. É claro que eu acredito, pois eu sinto a sua falta também! Muito! Pergunte para xs meus/minhas alunxs como eu falo de você. Esta semana mesmo comentei do rap que você me apresentou [Poetas no topo 3.1] e do montão de referência bacana que tem em cada verso. Ontem, me deu um orgulho danado ao ouvir seus conselhos: "Mãe, foca neste concurso do Coltec e na vaga do Juarez [Dayrell] que vai abrir. É a sua cara, mãe! É o seu lugar!" E explicou que não gostaria de mudar mais uma vez de estado. Que prefere morar em BH e ficar pertinho de Baldim. Quando você ainda estava na minha barriga, eu me preocupava se você teria uma cabeça legal, se gostaria de música boa. Hoje, tenho a certeza que você superou todas as minhas expectativas. E tenho um orgulho enorme do homem que você vai, aos poucos, se tornando. Sua indignação com a injustiça social, o carinho e cuidado que você tem com as crianças e com os animais, o respeito pelos mais velhos, o fato de ter aprendido a viver com pouco. Quase morro de orgulho, quando hoje, preocupado com a minha lerdeza, você é quem segura com a sua mão enorme, a minha na hora de atravessar a rua. Ou, quando no supermercado, você leva as sacolas mais pesadas, ou ainda nos shows, quando você procura o melhor lugar para eu poder ver tudo direitinho. “Tá de boa aí, mãe”? E ouço no meu ouvido você gritando junto comigo o nome do ídolo comum. Mês que vem tem show do Racionais, e tenho certeza que vou chorar ao cantar junto com você, "Negro Drama":
"Daria um filme,
Uma negra,
E uma criança nos braços,
Solitária na floresta,
De concreto e aço"...
E juntos, vamos pra fila do camarim para abraçar e tirar foto com os 4 pretos mais perigosos do Brasil, que há anos me ajudam na tarefa de criar um ser humano melhor pra esse mundo, que, não tá fácil, não!
Te amo, João Pedro! Feliz dia seu!

Dor de saúde

Hoje, buscando palavras para consolar uma amiga querida que vive um momento de dor, lembrei do dia do nascimento do menino. Lembro que quando vinham as dores do parto, meu obstetra segurava a minha mão e dizia:
- Dalva, essa é uma dor de saúde. É para colocar alguém no mundo. Não é dor de doença. Força!
Depois, quando vieram o tempo das cólicas do bebê, eu me convenci que, de novo, era uma dor de saúde, e não de doença. Era o organismo dele amadurecendo. Na época do nascimento dos dentinhos também foi a mesma coisa. Dor de dente nascendo é muito diferente da dor de perder dente. E assim, me convenci que existe uma dor que é necessária e que precisamos passar por ela. É uma dor de saúde. Nos fortalece, nos amadurece, nos torna melhores.

Pedagogia do Oprimido

Ontem, pela manhã, discutimos "Pedagogia do Oprimido" na aula. À tarde fomos ouvir Boaventura de Souza Santos falar sobre a descolonização da Universidade. O sociólogo foi recebido pelos estudantes indígenas da UFMG. Foi lindo! Depois, a professora Nilma Lino Gomes apresentou o intelectual, ativista e amigo. Durante a palestra Boaventura falou de Paulo Freire e de como a pedagogia do oprimido o inspira. Troquei olhares como meus alunxs que estavam comigo. O português falou da necessidade da Universidade acolher outros saberes, falou de como a UFMG já faz isso e do quanto ainda precisa ser feito. O sociólogo falou dos rapper's do Rio Grande do Sul e de como eles estão recontando a história da Revolução Farroupilha através dos seus versos. Eu cutuquei meus alunxs, novamente. Lembrei do perigo da história única que a Chimamanda fala. Reli Paulo Freire. Agora a pouco, vi um vídeo onde Caetano Veloso elogia o encontro dos rapper's, Emicida e Rael com os rapper's portugueses, Capicua e Valete, no single "Língua Franca", lançado dia desses. Caetano fala da necessidade de consertarmos o mundo, juntos. Daí, lembrei do verso do Emicida: "as pessoas são como as palavras, só têm sentido se juntas das outras (...) Eu e você juntos somos noiz, noiz que ninguém desata."
A rua é noiz!

Sigamos em luta!

Nestes tempos escuros mesmo com sol quente [a fala é de Dona Jacira] minha esperança tem andado como a menininha do poema do Quintana. Todos os dias ela se atira do décimo segundo andar e apesar de se estatelar no chão, miraculosamente incólume, quando indagada:
"Como é seu nome, meninazinha de olhos verdes?" 
Devagarinho, ela responde: 
"O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA..." 
Tem sido assim nesses dias brutos. Como nos ensina Clarice, é preciso facilitar o caminho da esperança. E Hoje foi assim. Em plena Praça Sete, embaixo de chuva, em meio a muitos rostos conhecidos, enquanto ouvia sindicalistas e militantes do alto do carro de som. Enquanto ouvia Jô Moraes, de quem fui tantas vezes eleitora, Rogério Correia em quem já votei tantas vezes, Marília Campos que também já votei, Áurea Carolina, minha vereadora, em minha frente passou um filme... No meio de tantos rostos já marcados pelo tempo, de homens e mulheres que deveriam estar curtindo a aposentadoria porque já trabalharam tanto, mas que não, estavam na rua, lutando por direitos que essa quadrilha que assaltou o governo tem nos roubado. Eu, que comecei no meu primeiro [sub]emprego aos 14 anos, que fui doméstica, balconista, servente, serviços gerais, educadora infantil. Eu, que limpei bunda de meninx, dei banho, coloquei no colo, ninei, cantei pra elxs dormirem. Eu, que já alfabetizei, que pegava 3 ônibus para dar aulas para uma primeira série em Nova Contagem, levando cerca de 3 horas para chegar na escola, onde meus/minhas alunxs moravam embaixo de barracos de lona, numa ocupação. Eu, que dei ensino religioso [na verdade era sociologia, pois não sei dar aulas de outra coisa] para alunos de quinta a oitava série. Que cheguei a ter 900 alunxs, distribuídos em 18 turmas, em 4 escolas diferentes para formar 1 cargo completo como professora designada da rede pública estadual. Eu, que enquanto fazia mestrado vi inúmerxs amigxs passando em concurso e assumindo nos Institutos Federais e nas Universidades criadas durante o governo Lula. Eu, enquanto abraçava conhecidxs de anos e conhecidxs que chegaram agora, me emocionei. Eu, que vibrei com a promulgação da Constituição de 1988, com a conquista do vale-transporte [uma economia e tanto quando se ganha pouco] e com o tíquete refeição e não precisar mais levar marmita. Eu, que já fui tantas vezes trabalhadora terceirizada sem direito a férias e invejando xs colegas efetivxs. Eu, que estou professora substituta e ainda sonho em passar num concurso e ser efetiva, e ter um salário digno e poder proporcionar ao menino um armário das Casas Bahia [que seja] para que ele possa tirar as coisinhas dele da caixa de madeira e de sapatos improvisada em guarda-roupas. Eu, que ainda sonho em ter o meu cantinho, em tirar os meus santos e minha jarrinha do Jequitinhonha da caixeta. Eu, a ponto de completar 51 anos, e que ainda sou uma sem-teto com minhas coisas e meus livros acomodados em casa de amigxs. Enquanto ouvia as falas emocionadas de gente, há tanto tempo na luta, chorei. Chorei junto da minha amiga de 'milianos', que conheci quando éramos telefonistas terceirizadas na antiga Telemig. Chorei porque é muita luta. Chorei porque como disse o funcionário do condomínio, assim que cheguei da manifestação, nos últimos anos conquistamos direitos, de viajar, de ter um carro, de reformar a casinha e relaxamos. Achamos que estava tudo garantido. E direitos não são permanentes, não são concedidos de boa vontade, são resultado de luta. Enquanto ouvia as falas do carro de som e me emocionava com a beleza que estava aquela praça, lotada, apesar da chuva. Eu, que estava estatelada no chão, quando indagada novamente, consegui enfim, murmurar, devagarinho, como a menina do poema do Quintana: Sim! Há ES-PE-RAN-ÇA! Como diz o Emicida: "As pessoas são como as palavras, só tem sentido se junto das outras. (...) Eu e você juntos somos nóiz, "nóiz" que ninguém desata. A rua é nóiz!" 
Sigamos em luta!

domingo, 16 de abril de 2017

Cadê a janela azul?

Hoje não acordei boa não. O coração apertado... Tive um pesadelo à noite, horrível. Levantei assustada e o menino ainda acordado, ao celular. Briguei! "Mas amanhã não tem aula, mãe! Esqueceu? Os professores estão em greve!" Não quis nem saber. Xinguei! "Onde já se viu? Não larga esse celular! Os fones o tempo todo nos ouvidos. Não me ouve chamar, eu fico falando sozinha o dia todo! blá, blá, blá..." Tá certo, mãe! Já vou dormir!" Como sempre, ele evitou o conflito. Eu xinguei mais. Para não deixar dúvidas que exerço bem o meu papel de mãe. Ele apagou a luz e foi deitar. Tentei dormir, mas a adrenalina do pesadelo me atrapalhou. Ainda fiquei acordada, virando na cama pra lé e pra cá, o que me irritou ainda mais, pois detesto perder o sono. De manhã, o café me fez bem. Lembrei que é aquele comprado da agricultura familiar, de um casal da zona rural de Simonésia. Preciso comprar mais desse pó. Não é igual ao de Cuba, mas é bem melhor do que os do supermercado. Evito as notícias sobre os golpes diários. É uma maneira de me preservar, não quero adoecer, nem pegar melancolia. Fico na dúvida se estudo para o concurso ou se preparo aula. Resolvo lendo um conto do João Gilberto Noll que apareceu na minha TL. Morreu, o moço. 18 livros publicados, 5 prêmios Jabuti e eu nunca havia lido nada dele. Que mundo eu vivo, meu deus? Como diz a minha irmã, as nossas bolhas, às vezes, funcionam como uma espécie de coma. O mundo lá fora, girando, girando... E a gente sem saber direito o que acontece. O conto do Noll me deixou ainda mais perturbada. Nem sempre a literatura me aquieta, às vezes me perturba mais. Não gosto de me sentir assim. Cadê minha janela azul? Cadê o morro, o beija flor vigiando o bebedouro? Cadê Fridinha e Scooby enrodilhados perto de mim? Só ouço o barulho que não cessa, vindo da avenida Antônio Carlos.

Janela de ônibus

"Janela de ônibus é danado pra botar a gente para pensar, ainda mais quando a viagem é longa". Quem diz é o poeta Miró da Muribeca.
Toda semana é isso. Colo a cara no vidro da janela e vou pensando na vida. A paisagem já sabida de cor me deslumbra como se fosse a primeira vez. O trajeto de estrada de chão entre Vila Amanda e Vargem Grande, embora acrescente quase 1 hora ao percurso, é o meu predileto.
Os sujeitos que sobem e descem do ônibus parecem personagens saídos dos contos de Guimarães Rosa. Quase me intrometo nas conversas, mas me contenho. As casinhas abandonadas na beira da estrada me lembram Bertolt Brecht:
"As construções quase em ruína parecem todavia projetos sem acabar, grandiosos; suas belas medidas podem já imaginar-se, mas ainda necessitam de nossa compreensão. E além do mais já serviram, inclusive já foram superadas."
Da rocinha o tiozinho acena para o ônibus. O milho já foi colhido, o quiabeiro está em flor. Não tem como não lembrar do papai que fez tantas vezes esse percurso levando as verduras que plantava como meeiro em terras dos outros. Tinha que fretar um caminhão, pois o máximo que conseguiu de meio de transporte foi um jeep velho, que depois vendeu para o meu irmão. Morreu sonhando com a reforma agrária e com um pedacinho de chão que fosse seu.
Nesse momento sempre coloco Vander Lee para cantar pra mim:
"Falar do Brasil sem ouvir o sertão
É como estar cego em pleno clarão
Olhar o Brasil e não ver o sertão
É como negar o queijo com a faca na mão
Esse gigante em movimento
Movido a tijolo e cimento
Precisa de arroz e feijão
Quem tem a comida na mesa
Que agradeça sempre a grandeza
De cada pedaço de pão
Agradeça
Clemente que leva a semente em seu embornal
Zezé e o penoso balé de pisar no cacau
Maria que amanhece o dia lá no milharal
Joana que ama na cama do canavial
João que carrega a esperança
Em seu caminhão pra capital.
Lembrar do Brasil sem pensar no sertão
É como negar o alicerce de uma construção
Amar o Brasil sem louvar o sertão
É dar um tiro no escuro
Errar no futuro da nossa nação."
Certa vez, em Sete Lagoas, quando acompanhava a folia de reis de Baldim numa caravana, conheci um senhor, um folião, que caiu em prantos quando descobriu que eu era filha do Seu Zezinho Soares. Entre soluços, aquele 'tiozinho' já alterado pela cachaça que ia bebendo durante a peregrinação, me disse que o primeiro sapato que ele calçou na vida tinha sido presente do papai. Que ele, ainda menino, ajudou papai a colher quiabo e que descalço, um dia furou o pé num prego. Naquela mesma semana quando papai voltou da Ceasa levou um par de botinas para ele. Choramos juntos, ele por estar diante da filha do Séo Zezinho, eu por ser apresentada a um lado sensível e solidário do meu pai que eu não conhecia.
"Janela de ônibus é danado pra botar a gente pra pensar, ainda mais quando a viagem é longa".

Eles crescem...

Este mês o menino completa 15 anos. 15. Anos. E eu ainda me surpreendo todos os dias. Hoje, foi ao cinema [sozinho] assistir Power Ranger. Sozinho é modo de dizer. Foi sem mim, mas descobri depois, que tinha "treta" no rolê. Voltou querendo conversar, cheio de críticas de quem, apesar da pouca idade, já é um cinéfilo. Falou de cenas, associou tomadas com o filme Kill Bill, disse da preferência por legendas mais do que por dublagem. Eu, que até outro dia, tinha que ler as legendas pra ele, quando o filme não era dublado. Fez mil críticas. Eu disse que está na hora dele ver filmes de artes, pois já é crítico demais para os comerciais. Logo depois, não sei porque motivo, ele resolver rever "Gonzaga: de pai pra filho." Assistimos juntos quando ele tinha 10 anos. Lembro que ele pirou na música "Comportamento Geral" e que durante muito tempo ficava cantando ela pela casa. Quando cheguei da aula, agora à pouco, ele ficou horas conversando comigo sobres os filmes. Me mostrou a música "Fogo no Rancho" do Mazzaropi, trilha do filme "Tapete Vermelho" com Matheus Nachtergaele. Disse que já assistiu esse filme duas vezes com o pai. Falou de como Nachtergaele é um ator foda. Eu fico pensando que ainda não consegui proporcionar um monte de coisa material pra esse menino; mas olha, o repertório cultural dele é foda! Um adolescente de 15 anos que assiste Power Ranger, gosta de Tarantino e curte Mazzaropi.

Decisão

"Todo sonho precisa decisão." A frase é da Genifer Gerhardt, em post aqui, no facebook, há cerca de três semanas. Genifer é artista, escritora e mãe do Tim Tim. Fez um vídeo sobre a caminhada do menino há alguns anos que viralizou na rede. Eu sigo a Genifer há algum tempo e gosto muito dos seus escritos. Ano passado ela viajou pelo nordeste com o pequeno num motorhome. Aliás, foi uma foto dela com Tim Tim no colo em frente à casa sobre rodas que gerou o post de semanas atrás. É que alguém compartilhou a foto dela com a legenda "vida tranquila, só na boa". Genifer, então, fez um belo post falando sobre isso. Ela dizia que se você tem um sonho, ele pede decisão. Inclusive com hora marcada. Segundo ela, é preciso definir data, pois as decisões atraem caminhos. Genifer contou sobre o preço que paga por ter decidido morar em 9 metros quadrados. Se uma casa dá trabalho, imagina uma casa de 9 metros que é também um carro. Genifer ensina que "tudo no mundo é prazer, mas é também escarro". O motorhome tem um reservatório de água de 150 litros que é preciso encher de 2 a 3 dias. Um banho de 15 minutos consome de 135 a 243 litros de água. Ou seja, será que a vida a bordo de um motorhome é boa mesmo? Depende. Tem também o cocô e o xixi que não pode ser esvaziado de qualquer maneira, nem em qualquer lugar. Além do pneu que fura, dos vazamentos que acontecem. Enfim... Como ela mesmo diz, "quando você abraça uma coisa, você libera outra." Fiquei pensando na minha irmã que há 15 dias mudou para Paris onde foi morar por alguns meses. Sonho antigo, ela trabalhou anos para poder concretizá-lo. Hoje, ela me falou da alegria que está sendo viver o cotidiano parisiense. Um sonho de anos que lhe exigiu decisão. Fiquei pensando nos meus sonhos. Preciso datar alguns. Como diz a Genifer, precisamos olhar para nossos quereres de cabeça erguida, encarando tudo que envolve a sua realização. Não dá para ter tudo no mundo, mas alguma coisa é possível. Bora definir o que pode ser realizado e colocar prazo para a sua realização.

Ocupação

Hoje foi dia de ocupação. Explico. "Ocupamos" um estúdio da Escola de Música da UFMG para gravação de algumas toadas do Reinado de Nossa Senhora do Rosário. Enquanto do auditório chegava o som da orquestra ensaiando música clássica; no estúdio, a capitã Pedrina cantava as toadas aprendidas com o pai, capitão Leonídio. Foi muito, muito emocionante. Quem esteve presente não conseguiu segurar o choro. Entre uma toada e outra, Pedrina rememorava a travessia dos negros da África às Américas. Falou de Chico Rei, de tolerância, de combate ao racismo, de resistência. Quando saímos para almoçar ela disse: "Um lugar tão bonito. Por que não pode ser de todo mundo?". Hoje foi. Um pouquinho, mas foi. Enquanto ouvíamos ao longe, trompetes e trombones, Pedrina cantava à capela, emocionando a todos nós. Foi lindo!

Patriazinha

De volta à minha patriazinha, matando a saudade da janela azul, do morro, de Fridinha, do Scooby, das histórias do meu irmão e dos debates com o menino. De madrugada ouvi cantos, não sei se foi sonho ou se era alguma atividade da sexta-feira santa. Agora o silêncio é tão bom que dá para ouvir o bater agitado das asas do beija-flor no bebedouro. Já andei pelo quintal. Minhas perpétuas pegaram. Também pegaram a cebolinha e o manjericão que o meu irmão plantou para a hortinha de apartamento que estou montando em BH. O menino precisa cada vez menos de mim; e eu, embora muito orgulhosa do homem que ele vai se tornando, sinto uma certa orfandade. Ele já lava a própria roupa, arruma a casa, dá banho nos cachorros, se vira com a própria comida. Eu sei que é um processo importante, mas no fundo, no fundo, fico com um sentimentozinho de culpa nos dias que ficamos longe um do outro. Ontem, ele bravo, observou que eu sujei o fogão que ele tinha deixado limpinho. Sugeriu que eu comprasse aqueles protetores de papel alumínio, "porque agora sabe como é chato limpar o fogão todo dia". Também chamou a atenção do tio que chegou com o pé sujo do trabalho e ele estava limpando a casa. No supermercado nem ligou para os ovos de páscoa, mas lembrou que precisávamos comprar detergente. Daqui a uma semana ele completa 15 anos. 15 anos. Parece pouco, mas é um tempo considerável. E eu sigo vivendo cada dificuldade e cada delícia dessa viagem que é colocar uma criatura no mundo. Queria um mundo melhor pra ele, mas penso que tô contribuindo com uma pessoa melhor pra esse mundo horrível do jeito que tá.

João Antônio

Ontem, durante a caminhada, achei num monte de lixo, um livro. Abaixei para ver quem era o autor e para minha surpresa era um que está na lista daquelxs que preciso ler: João Antônio. Li João Antônio pela primeira vez, dia desses, quando achei entre os livros da minha irmã, uma dessas coleções didático-juvenis "Para Gostar de Ler" só de contos de amor. O livro começava com um conto maravilhoso da Lygia Fagundes Telles, além de autores incríveis como Machado de Assis, William Shakespeare, entre outros. Um dos contos era do João Antônio. Pirei na escrita do moço, pesquisei sobre ele e decidi que precisava lê-lo com urgência. Seu nome foi, então, para a lista dos livros que preciso adquirir. Qual não foi a minha surpresa, quando ao virar o livro, vi lá o nome: João Antônio. Fiquei como a menina do conto "Felicidade Clandestina" da Clarice. Recolhi aquele tesouro do lixo, limpei e terminei a caminhada agarrada a ele. O exemplar é da biblioteca estadual aqui de Baldim. Depois de ler vou devolvê-lo porque ele é muito bom para não circular por outras mãos. Morto há 20 anos, João Antônio é um autor premiadíssimo que fez muito sucesso nos anos de 1960 e 1970, elogiado por críticos como Antônio Cândido, Paulo Ronái e Alfredo Bosi. Seus protagonistas são sempre as figuras marginalizadas das periferias das grandes metrópoles. Como eu pude passar uma vida inteira sem ler João Antônio? Bendita seja as confluências, [como diria o mestre Nego Bispo]. Um sábado de boas leituras pr'ocês. Vou terminar, aqui, a leitura de "Sete vezes rua"...