sábado, 30 de julho de 2016

Fora Temer

Amanhã tem "Fora Temer". Tô com vontade de ir. Se for, terei que pegar o ônibus das 6 da manhã e enfrentar 3 horas de viagem, porque o ônibus desse horário é daqueles pinga-pinga que vai parando de dois em dois minutos. Um trecho do percuso é em estrada de chão e com o tempo seco do jeito que está, a estrada está que é poeira, só.
Tô achando tudo tão calmo. Na minha TL só dois ou três chamaram para a manifestação. Os movimentos sociais e os partidos estão silenciosos demais ou é impressão minha? Enquanto isso, o desmonte não para. Em momentos assim é preciso um esforço sobrenatural para não perder a esperança. A concreta, que é tão frágil quanto a abstrata, o bichinho verde.
Em tempos assim, Saramago ensina que precisamos embalar a esperança no colo. Nessas horas lembro sempre do conto da Clarice: "Precisamos facilitar o caminho da esperança", ela nos diz. A casa precisa estar limpa, precisamos arrastar os móveis, limpar a parede atrás dos quadros. Nada pode ameaçar a esperança, esse bichinho magrelo e frágil. Vai que surge uma aranha e a devore.
E as notícias ruins seguem, uma atrás da outra. Eu nem leio mais, pois como a mulher do conto da Adélia, "tou com medo de apanhar tristeza, encardir de melancolia. Sei que sofrimento neste mundo é fazenda de todos. Mas tendo Justiça, meu Deus, ao menos miséria some, ao menos ninguém vai ter susto de ser preso à toa, de apanhar sem poder dizer essa boca é minha, explicar, de pé feito um homem, se tem culpa ou não." Mas cadê justiça?
Como a narradora do conto, eu não sei o que fazer, nem como ajudar. A impotência toma conta de mim. Tô me sentido como a galinha na chuva. Já viu que dó? Aquele passo bobo, aquele pescoço esticado pra frente, olha aqui, olha acolá, encharcada na friagem e na lama, sem resolver nada e, pior que tudo, sem saber de nada.
Por isso, hoje, eu passei o dia na faxina. Limpei toda a casa, arrastei os móveis para deixar tudo limpo, para que nada atrapalhe o caminho da esperança, para que ela não seja ameaçada por nenhuma aranha. Porque desesperança e descrença é um troço ruim demais de sentir

quinta-feira, 28 de julho de 2016

"Amizade dada é amor"

Esta semana visitei amigos. Fomos recebidos com abraços, toalha na mesa, petiscos, cerveja gelada.
Lembrei de Saramago:
"Põe na mesa a toalha adamascada,
Traz as rosas mais frescas do jardim,
Deita o vinho ao copo, corta o pão
Com a faca de prata e de marfim.
Alguém se veio sentar a sua mesa,
Alguém a quem não vês, mas que presentes
Cruza as mãos no regaço, não perguntes:
Nas perguntas que fazes é que mentes."

Vida da gente leva cada um pr'um lado. Estes reencontros são mais do que necessários. Sentamos na mesa e a conversa foi retomada do ponto onde havia parado, há tempos atrás.
Resenhas intermináveis, reforço das afinidades. Milianos de amizade e uma essência ali, que não muda: o sonho com um mundo melhor, o orgulho com os filhos crescendo, muitos projetos ainda por realizar.
Marido da amiga foi preparar comida, prato especial, enquanto a resenha prosseguia. Ficamos por ali, na mesa da cozinha, cachorro por perto, esperando resto do prato.
Dia seguinte, passeio, caminhada, cachoeira. Na volta corpo cansado, alma leve. Ainda teve cinema nos colchões espalhados pelo chão da sala.
Amizade boa é assim, acontecida no simples, no comum, na conversa desarmada.
Nos despedimos com uma vontade enorme de continuarmos juntos, prolongar a prosa, inventar outros pratos, fazer mais passeios, ver mais filmes, fazer novas caminhadas e a certeza de que "amizade dada é amor".

Mérito ou privilégio?

A semana que passou foi intensa. Começou com visitas chegando. Minha sobrinha, que lembro pequeninha, veio com os filhos. É sempre uma emoção recebê-la. Fico sempre muito comovida com a forma como ela conduz a própria vida. Começou a trabalhar aos 9 anos, ajudando os pais a cuidar de casas de campo na região metropolitana de BH.
- "Aos 9, já dá para rastelar umas folhas, tia"
Depois quis receber seu próprio dinheiro, foi ser doméstica. Trabalhou sem carteira assinada até os 22 anos.
Agora, aos 31, casada, mãe de 2 filhos conseguiu voltar a estudar. Está no 7º período do curso de Direito. A mãe a ajuda com os filhos. Marido também. Fez concurso em escola pública para trabalhar meio período para conseguir conciliar a jornada tripla. Trabalha pela manhã, cumpre as obrigações de mãe, esposa e dona de casa à tarde e estuda à noite. Enquanto esteve aqui, não parou um minuto:
"Quer leite ou café? Já escovou os dentes? Vem almoçar! Larga esse celular! GTA, não! Já falei que não pode. Pede desculpas para a sua irmã. Vou ter que ir aí, buscar pela orelha?"
Mãe mais zelosa e amorosa nunca vi. Até no ralhar com os filhos, no colocar os limites, no dizer "não".
Ela me contou que dia desses, um professor, desses novinhos que só estudou a vida toda, já com mestrado e doutorado, chegou em sala, olhou para xs alunxs e disse:
"vocês são burros. Pela cara já dá para perceber que demoraram a entrar na faculdade. Se pensam que terão sucesso numa carreira jurídica, esqueçam! Isso é para quem começa cedo"
Fiquei pensando até onde é mérito, e até onde é privilégio.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Bendito

Ontem, procurei no youtube a folia de Jequitibá cantando o "Bendito". Queria enviar para um amigo que aniversariava. É das coisas mais lindas que já ouvi, Não achei. Comecei a entoar, sozinha, o canto. Meu irmão me acompanhou na segunda voz. Até que não fizemos feio, não. A família toda é bem entoadinha. De vez em quando nos pegamos a cantar. Tenho vídeo gravado com ele e minha irmã cantando autos das pastorinhas. Teve uma vez que cantamos juntos, o Canto da Verônica. Éramos pelo menos umas cinco vozes e foi lindo! Uma pena não ter feito o registro. É óbvio que não era em latim o que cantávamos, mas o que o nossa memória afetiva absorveu em anos de procissão, na semana santa. Ontem, meu irmão entoou cantos que aprendeu com mamãe. Eu tomei um susto! Como assim? Quer dizer que teve um tempo que mamãe cantava? Ele disse que aprendeu muitos cantos com ela. Coincidência ou não, foi na época de mais fartura. Tempos do Guará, onde não se passou fome. Eu vi mamãe cantar uma única vez em toda a minha vida e tomei um susto. Como Diego, do Galeano, quando viu o mar pela primeira vez, eu fiquei muda de beleza. E quando finalmente consegui falar, eu disse: "mae, a senhora está cantando!" Quando, ontem, eu contei esse episódio para o meu irmao, ele deu aquele soluço, parecendo criança quando vai chorar. Depois ele deve ter se lembrado que é um jovem senhor, e engoliu o choro, Mas não conseguiu segurar as lágrimas que escorreram pelo canto do olho, que eu vi!

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Fruição






Faltando menos de 10 páginas para terminar o livro, eu o fechei. Agora, vou ainda mais devagar, porque não quero me despedir de Balram Halwai, o protagonista e narrador de "O tigre branco", romance do indiano, Aravind Adiga, vencedor do "Man Booker Prize 2008".
"Por que será que meu pai nunca me ensinou a escovar os dentes com aquela espuma leitosa? Por que será que ele me criou para viver feito um bicho? Por que será que todos os pobres vivem desse jeito, na sujeira e na feiura?
Escovar. Escovar. Cuspir.
Escovar. Escovar. Cuspir.
Se, pelo menos, os homens pudessem cuspir assim o seu passado, com essa facilidade..."
Balram faz muitos questionamentos. Mais do que um texto de prazer, o livro nos provoca fruição. Prazer e fruição podem parecer sinônimos, mas não são. Roland Barthes já escreveu sobre isso no livro "O prazer do texto". Ele diz:
"Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise em relação com a linguagem.”
O livro de Adiga é assim. Já nas primeiras páginas, quando ele descreve a cremação do corpo da mãe, o texto vai nos desconfortando, nos colocando em estado de perda, nos obrigando a desconstruir a imagem glamorizada que temos da Índia e dos indianos.
"O corpo de minha mãe tinha sido embrulhado num pano de cetim cor de açafrão, da cabeça aos pés, e estava coberto de pétalas de rosas e de guirlandas de jasmim, Acho que, em vida, ela nunca teve nada tão bonito para vestir. (A morte de minha mãe foi tão grandiosa que tive a certeza de que a sua vida deve ter sido muito infeliz. A minha família se sentia culpada por alguma coisa.). (...)
"Quando o fogo devorou o cetim, deu para ver um pé pálido, que surgiu ali como algo vivo; os dedos, que iam derretendo com o calor, começaram a se encurvar, oferecendo resistência ao que estavam lhe fazendo. Kusum empurrou aquele pé de volta para ao meio do fogo, mas ele não queimava. meu coração disparou. Minha mãe não ia deixar que a destruíssem."
E Aravind, através de Balram, vai assim, por todo o livro causando um mal estar na gente. A cena da cremação é tão forte, que até o protagonista não dá conta:
"Perdi o fôlego.
Foi a primeira vez na vida que desmaiei."
E Aravind vai deixando a gente sem fôlego ao longo das 263 páginas do livro. O texto de fruição é assim. Ele não tem pena de você.
Ontem à noite, quando li a cena do assassinato, também perdi o fôlego, senti um mal estar. Agora, faltando menos de 10 páginas para terminar, fechei o livro. Não quero me despedir de Balram. Me identifiquei tanto com ele. Um menino criado nas margens, num país dominado por corrupção e subornos, com uma pequena parcela de ricos e uma imensa desigualdade social. Aravind revela, nos detalhes, que nenhuma riqueza é inocente.
O autor consegue assim, humanizar aquele indiano assassino. E aqui, não vai nenhum spoiler, porque Aravind conta, já nas primeiras páginas, que é disso que se trata o livro.
Me lembrei de Augusto Matraga do Guimarães Rosa. Dividir o mundo entre bons e maus é uma grande bobagem e não dá conta da complexidade que é o ser humano. Um assassino é capaz de gestos de delicadeza e o mais delicado dos seres humanos é capaz de matar. Todos somos bons e maus ao mesmo tempo.
Recomendo a leitura.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Uma experiência ética, estética e política

Foto: Jornal O Tempo no Facebook

Criolo subiu ao palco vestido de bermuda e moletom do "Laboratório Fantasma", marca do amigo e rapper, Emicida. Suas roupas são sempre um depoimento. Apesar de, geralmente, vestir-se de maneira despojada, as camisetas parecem ser escolhidas "à dedo" para cada ocasião. Seja a retrô do Corinthians-Democracia, exibida durante o show da "Virada" em SP, seja a camiseta "convoque seu buda" com o pixo em homenagem ao Goma, que apareceu, algumas músicas depois, quando ele retirou o casaco.

 Foto: capturada no perfil "Pixo Livre" no Facebook

Goma é um pixador belo horizontino que está preso por crime ambiental e formação de quadrilha. "Prender pixador é fácil, quero ver prender o presidente da Samarco", dizem os pixos pela cidade. "+Goma - Cunha", diz outro. DJ DanDan também colou, em sua blusa amarrada na cintura, uma cartazinho "Temer Jamais" que foi exibido durante todo o show. Criolo e DanDan também abriram uma faixa do "Movimento de Mulheres Olga Benário" dizendo não à cultura do estupro. Nesse momento, uma menina que estava ao nosso lado, caiu no choro. Show do Criolo é assim: é sempre uma experiência política.

Foto: capturada no perfil "Movimento de mulheres Olga Benário" no Facebook.

Durante todo o show, Criolo também "pregou" o amor, a paz, a tolerância. Seu discurso é sempre articulado, dando a impressão que ele nunca fala sem pensar. Ele sabe que é formador de opinião e que tem uma geração de adolescentes, em formação, que curte o seu som, se identificam com suas letras. Ele, inclusive, brincou que está ficando velho, virando um "tiozinho". Em sua fala está sempre presente referências à mãe, Dona Vilani e ao pai, Seo Cleon. O rapper sempre "prega o respeito aos pais, a família como um valor. Show do Criolo é assim: é sempre uma experiência ética.

O show foi uma grande celebração. É impressionante a diversidade de público que Criolo alcança. Já fui em outros shows dele, mas esse tinha uma característica especial, tinha negros, muitos negros. A quebrada colou, em peso, na Praça da Estação.

Criolo no palco parecia o "cavalo" de algum deus da música. E quando a voz de Juçara Marcal cantou "Fio de Prumo (Padê Onã)":
"Laroyê bará
Abra o caminho dos passos
Abra o caminho do olhar
Abra caminho tranquilo pra eu passar
Laroyê eleguá
Tomba o mal de joelhos
Só levantando o ogó
Dobra a força dos braços que eu vou só
Laroyê legbá
Guarda ilê, onã, orum
Coba xirê deste funfum
Cuida de mim que eu vou pra te saudar
Que eu vou pra te saudar." Criolo dançava como se estivesse numa gira para os Orixás.
 

Quando ele cantou "Grajauex", a multidão enlouqueceu. A quebrada é como o sertão de Guimarães Rosa, está em toda parte, está dentro da gente. E, quando ele canta, é como se estivesse falando da Pedreira Prado Lopes, do Aglomerado da Serra ou de qualquer outra favela do mundo. "Toda rua é principal, toda avenida é principal", ele disse para delírio da plateia.

Em certo momento, ele saiu do palco e o DJ Marco sampleou trechos dos MC's das antigas, referências de Criolo. Racionais foi um deles. O sample "o colarinho branco dá o golpe no estado" de Duck Jam e Nação Hip Hop foi repetido várias vezes, levando a multidão a levantar seus cartazes e gritar "Fora Temer".

 Foto: Jornal O Tempo no Facebook

Criolo se divertiu, brincou, falou sério, se indignou, se emocionou. Show de Criolo é assim: é sempre uma experiência estética.

O show terminou, fomos embora pra casa, mas durante dias, ainda ficamos assim, fruindo a beleza. O escritor Bartolomeu Campos de Queiroz diz que a beleza sozinha pesa, que por isso precisamos dividir com alguém. Ainda bem que existem os shows para os artistas dividirem beleza com a gente.

 Foto: Jornal O Tempo no Facebook

Show do Criolo é assim: é sempre uma experiência ética, estética e política.

Gratidão, Criolo!

sábado, 2 de julho de 2016

Flores

O moço passou vendendo as flores.
O menino se compadeceu.
Tirou a carteira do bolso.
 O dinheiro era para gastar na quermesse a noite.
 Eu me compadeci.
 O dinheiro era para a carne do almoço de domingo.
Amanhã  comeremos omelete.

Sinto muito!

Dia desses, li na página "Mulheres que escrevem", um texto de Helena Zelic, uma moça de 20 anos de idade, uma menina ainda, mas que me colocou para pensar. Ela falava sobre grandes livros e filmes, onde:
"Os personagens amam ferozmente, correm, cavalgam, inventam mentiras, planos, raciocinam e matam, que seja. Nunca, porém, eles interrompem suas grandes sagas para comer ou lavar a louça. É como se não fosse preciso. Como se essas funções vitais da humanidade não coubessem a eles, mas sim a outras pessoas, aquelas devidamente escanteadas, humanas demais no sentido prático e, portanto, – por que não dar nome aos bois? – exploradas. As vidas invisíveis existem nas narrativas da ficção e do mundo real. Muitas vezes, inclusive, se interseccionam. Quem é capaz de imaginar William Faulkner cozinhando seu próprio arroz? Pouco provável."
Por isso gosto de ler mulheres.
Clarice traz um universo mais próximo de mim, mas ainda assim, é aquele da mulher de classe média, que tem empregada, babá. As mãos que limpam e lavam estão lá, em suas histórias. A empregada que não limpou o quartinho como deveria. Em suas cartas, a escritora, sempre menciona a dificuldade em escrever e cuidar dos filhos. Por várias vezes ficou sem babá e escrevia com os filhos e a máquina no colo. Amo Clarice, mas ainda não é o meu mundo. Carolina Maria de Jesus traz um outro universo para perto de mim. A mulher que quer escrever, mas, antes, precisa cuidar da sobrevivência. Fazer o mingau dos filhos, lavar a roupa e buscar o sustento no lixo. Por isso, Carolina levantava de madrugada para escrever:
"Deixei o leito as quatro horas para escrever. Abri a porta e contemplei o céu estrelado. Quando o astro-rei começou despontar eu fui buscar água."
A literatura era o que salvava Carolina:
"Todos os dias escrevo. Sento no quintal e escrevo."
Em "Um teto todo seu", Wirgínia Woolf também fala das dificuldades da mulher escritora:
"Dê-lhe um teto todo seu e quinhentas libras por ano, deixe-a abrir sua mente e liberar metade do que agora ocupa-a, e ela escreverá um livro melhor em algum dia desses."
Dia desses, vi um vídeo da escritora Conceição Evaristo dizendo que a luta diária do cotidiano lhe rouba um tempo precioso que poderia ser dedicado à escrita. Por isso gosto de ler mulheres e mulheres negras. Me entedia um pouco a literatura dos grandes feitos, dos grandes personagens salvando o mundo. Sinto falta de uma escritura com cheiro de alho, de sabão em pó, de água sanitária, de amaciante. A caneta com cheiro de cebola, porque a ideia surgiu enquanto se preparava o almoço. O caderno sujo de óleo, porque passa os dias todos na mesa da cozinha. Sinto falta de personagens que lavam sua roupa, que cozinham sua comida, que levam os filhos para a escola.
Luiz Ruffato diz que começou a escrever porque não se via representado na literatura que lia. Sentia falta do operário. Onde estava o trabalhador da fábrica de tecido de Cataguases?
Outro dia, li João Paulo Cuenca dizendo que : "O meio literário, entre os círculos de cultura, me parece o mais aristocrata, machista, mantenedor de privilégios, branco, classicista. Acredito que no livro eu descrevo com muita minúcia esse cara branco, escritor, publicado, traduzido, resenhado, miserável, deprimido, escroto, machista. Esse personagem está em crise, ele não tem mais espaço neste mundo; esse personagem precisa morrer, não dá mais para ser assim. É um sujeito patético."
A Flip do ano passado foi criticada pela ausência de escritorxs negrxs. Em uma das mesas em Paraty, o biógrafo de Clarice, Benjamin Moser, ironizou dizendo que não via negrxs na plateia.
Hoje, acordei rebelde, que nem a poeta Cristiane Sobral e decidi:
"Não vou mais lavar os pratos
Nem vou limpar a poeira dos móveis
Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal
Sinto muito
Depois de ler percebi a estética dos pratos
a estética dos traços, a ética
A estática
Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros
mãos bem mais macias que antes
e sinto que posso começar a ser a todo instante
Sinto
Qualquer coisa
Não vou mais lavar
Nem levar
Seus tapetes para lavar a seco
Tenho os olhos rasos d’água
Sinto muito
Agora que comecei a ler, quero entender
O porquê, por quê? E o porquê
Existem coisas
Eu li, e li, e li
Eu até sorri
E deixei o feijão queimar
Olha que o feijão sempre demora a ficar pronto
Considere que os tempos agora são outros."

Rebelde, há dias passo o tempo todo lendo e escrevendo.
Sinto muito!

"Deem-me o céu azul e o sol visível"

Dia cinzento. Não gosto. Fico sem ânimo até para caminhar.
Como Adélia, eu também "procuro sol porque sou bicho de corpo. Sombra terei depois, a mais fria". Fernando Pessoa também era assim. Como os cariocas, não gostava de dias nublados: "Deem-me o céu azul e o sol visível. Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim", dizia ele. Também pudera, a maior beleza de Lisboa é o céu azul. Em dias nublados, a cidade perde muito do seu charme. Quando chegamos em Portugal ficamos intrigados. Durante semanas o céu esplendorosamente azul, de um azul que só vi lá. O menino questionava: "mãe, será que em Lisboa não tem nuvens?" Dias assim, me lembram Carlos da Maia passeado pelo Chiado, encontrando com seus amigos no café "A Brasileira". Dá vontade de ler Eça de Queiroz debaixo do cobertor. Mas minha consciência pesada não deixa. Preciso cozinhar feijão, estudar para o concurso. Mas cadê o sol que não veio iluminar minha janela? As moças varrem a rua. Escuto daqui a conversa. São minhas contemporâneas. Lembro delas na infância, brincando por aí. Hoje, já são avós. Eu, fui mãe tardia. Demorei a ter coragem. Agora, tenho aí, um menino transformando-se em rapaz, importante interlocutor. Ontem, me plugou em Rihanna: "love on the brain". Que boniteza! "Mãe, Rihanna é uma das mulheres mais bonitas do mundo." Vou ouvir Rihanna para ver se meu dia se ilumina.