sexta-feira, 15 de julho de 2016

Fruição






Faltando menos de 10 páginas para terminar o livro, eu o fechei. Agora, vou ainda mais devagar, porque não quero me despedir de Balram Halwai, o protagonista e narrador de "O tigre branco", romance do indiano, Aravind Adiga, vencedor do "Man Booker Prize 2008".
"Por que será que meu pai nunca me ensinou a escovar os dentes com aquela espuma leitosa? Por que será que ele me criou para viver feito um bicho? Por que será que todos os pobres vivem desse jeito, na sujeira e na feiura?
Escovar. Escovar. Cuspir.
Escovar. Escovar. Cuspir.
Se, pelo menos, os homens pudessem cuspir assim o seu passado, com essa facilidade..."
Balram faz muitos questionamentos. Mais do que um texto de prazer, o livro nos provoca fruição. Prazer e fruição podem parecer sinônimos, mas não são. Roland Barthes já escreveu sobre isso no livro "O prazer do texto". Ele diz:
"Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise em relação com a linguagem.”
O livro de Adiga é assim. Já nas primeiras páginas, quando ele descreve a cremação do corpo da mãe, o texto vai nos desconfortando, nos colocando em estado de perda, nos obrigando a desconstruir a imagem glamorizada que temos da Índia e dos indianos.
"O corpo de minha mãe tinha sido embrulhado num pano de cetim cor de açafrão, da cabeça aos pés, e estava coberto de pétalas de rosas e de guirlandas de jasmim, Acho que, em vida, ela nunca teve nada tão bonito para vestir. (A morte de minha mãe foi tão grandiosa que tive a certeza de que a sua vida deve ter sido muito infeliz. A minha família se sentia culpada por alguma coisa.). (...)
"Quando o fogo devorou o cetim, deu para ver um pé pálido, que surgiu ali como algo vivo; os dedos, que iam derretendo com o calor, começaram a se encurvar, oferecendo resistência ao que estavam lhe fazendo. Kusum empurrou aquele pé de volta para ao meio do fogo, mas ele não queimava. meu coração disparou. Minha mãe não ia deixar que a destruíssem."
E Aravind, através de Balram, vai assim, por todo o livro causando um mal estar na gente. A cena da cremação é tão forte, que até o protagonista não dá conta:
"Perdi o fôlego.
Foi a primeira vez na vida que desmaiei."
E Aravind vai deixando a gente sem fôlego ao longo das 263 páginas do livro. O texto de fruição é assim. Ele não tem pena de você.
Ontem à noite, quando li a cena do assassinato, também perdi o fôlego, senti um mal estar. Agora, faltando menos de 10 páginas para terminar, fechei o livro. Não quero me despedir de Balram. Me identifiquei tanto com ele. Um menino criado nas margens, num país dominado por corrupção e subornos, com uma pequena parcela de ricos e uma imensa desigualdade social. Aravind revela, nos detalhes, que nenhuma riqueza é inocente.
O autor consegue assim, humanizar aquele indiano assassino. E aqui, não vai nenhum spoiler, porque Aravind conta, já nas primeiras páginas, que é disso que se trata o livro.
Me lembrei de Augusto Matraga do Guimarães Rosa. Dividir o mundo entre bons e maus é uma grande bobagem e não dá conta da complexidade que é o ser humano. Um assassino é capaz de gestos de delicadeza e o mais delicado dos seres humanos é capaz de matar. Todos somos bons e maus ao mesmo tempo.
Recomendo a leitura.

Um comentário:

  1. Me deixou morrendo de vontade de ler! Agradeço a recomendação!

    ResponderExcluir