sábado, 2 de julho de 2016

Sinto muito!

Dia desses, li na página "Mulheres que escrevem", um texto de Helena Zelic, uma moça de 20 anos de idade, uma menina ainda, mas que me colocou para pensar. Ela falava sobre grandes livros e filmes, onde:
"Os personagens amam ferozmente, correm, cavalgam, inventam mentiras, planos, raciocinam e matam, que seja. Nunca, porém, eles interrompem suas grandes sagas para comer ou lavar a louça. É como se não fosse preciso. Como se essas funções vitais da humanidade não coubessem a eles, mas sim a outras pessoas, aquelas devidamente escanteadas, humanas demais no sentido prático e, portanto, – por que não dar nome aos bois? – exploradas. As vidas invisíveis existem nas narrativas da ficção e do mundo real. Muitas vezes, inclusive, se interseccionam. Quem é capaz de imaginar William Faulkner cozinhando seu próprio arroz? Pouco provável."
Por isso gosto de ler mulheres.
Clarice traz um universo mais próximo de mim, mas ainda assim, é aquele da mulher de classe média, que tem empregada, babá. As mãos que limpam e lavam estão lá, em suas histórias. A empregada que não limpou o quartinho como deveria. Em suas cartas, a escritora, sempre menciona a dificuldade em escrever e cuidar dos filhos. Por várias vezes ficou sem babá e escrevia com os filhos e a máquina no colo. Amo Clarice, mas ainda não é o meu mundo. Carolina Maria de Jesus traz um outro universo para perto de mim. A mulher que quer escrever, mas, antes, precisa cuidar da sobrevivência. Fazer o mingau dos filhos, lavar a roupa e buscar o sustento no lixo. Por isso, Carolina levantava de madrugada para escrever:
"Deixei o leito as quatro horas para escrever. Abri a porta e contemplei o céu estrelado. Quando o astro-rei começou despontar eu fui buscar água."
A literatura era o que salvava Carolina:
"Todos os dias escrevo. Sento no quintal e escrevo."
Em "Um teto todo seu", Wirgínia Woolf também fala das dificuldades da mulher escritora:
"Dê-lhe um teto todo seu e quinhentas libras por ano, deixe-a abrir sua mente e liberar metade do que agora ocupa-a, e ela escreverá um livro melhor em algum dia desses."
Dia desses, vi um vídeo da escritora Conceição Evaristo dizendo que a luta diária do cotidiano lhe rouba um tempo precioso que poderia ser dedicado à escrita. Por isso gosto de ler mulheres e mulheres negras. Me entedia um pouco a literatura dos grandes feitos, dos grandes personagens salvando o mundo. Sinto falta de uma escritura com cheiro de alho, de sabão em pó, de água sanitária, de amaciante. A caneta com cheiro de cebola, porque a ideia surgiu enquanto se preparava o almoço. O caderno sujo de óleo, porque passa os dias todos na mesa da cozinha. Sinto falta de personagens que lavam sua roupa, que cozinham sua comida, que levam os filhos para a escola.
Luiz Ruffato diz que começou a escrever porque não se via representado na literatura que lia. Sentia falta do operário. Onde estava o trabalhador da fábrica de tecido de Cataguases?
Outro dia, li João Paulo Cuenca dizendo que : "O meio literário, entre os círculos de cultura, me parece o mais aristocrata, machista, mantenedor de privilégios, branco, classicista. Acredito que no livro eu descrevo com muita minúcia esse cara branco, escritor, publicado, traduzido, resenhado, miserável, deprimido, escroto, machista. Esse personagem está em crise, ele não tem mais espaço neste mundo; esse personagem precisa morrer, não dá mais para ser assim. É um sujeito patético."
A Flip do ano passado foi criticada pela ausência de escritorxs negrxs. Em uma das mesas em Paraty, o biógrafo de Clarice, Benjamin Moser, ironizou dizendo que não via negrxs na plateia.
Hoje, acordei rebelde, que nem a poeta Cristiane Sobral e decidi:
"Não vou mais lavar os pratos
Nem vou limpar a poeira dos móveis
Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal
Sinto muito
Depois de ler percebi a estética dos pratos
a estética dos traços, a ética
A estática
Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros
mãos bem mais macias que antes
e sinto que posso começar a ser a todo instante
Sinto
Qualquer coisa
Não vou mais lavar
Nem levar
Seus tapetes para lavar a seco
Tenho os olhos rasos d’água
Sinto muito
Agora que comecei a ler, quero entender
O porquê, por quê? E o porquê
Existem coisas
Eu li, e li, e li
Eu até sorri
E deixei o feijão queimar
Olha que o feijão sempre demora a ficar pronto
Considere que os tempos agora são outros."

Rebelde, há dias passo o tempo todo lendo e escrevendo.
Sinto muito!

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