quarta-feira, 29 de junho de 2016

A arte de perder

Nestes dois anos morando aqui, entre outras coisas, descobri o afeto pelos bichos. Quando cheguei, há dois anos, o primeiro a me receber no portão foi o Scooby. Estranhei. "Ué, a casa agora tem cachorro!" No começo nossa história foi conturbada. O pelo espalhado pela casa me irritava. Scooby roubou muita comida: bife, batata frita, pão, um bolo inteiro, além de comer todos os quibes que deram tanto trabalho pra fazer. Numa distração minha num dia de domingo e restou somente a travessa vazia e o cachorro lambendo os beiços.
Quando meu irmão resolveu devolvê-lo para o dono, depois dele arranhar o portão que acabara de ser pintado, confesso que, no fundo, senti uma alegriazinha. Meus trabalhos diminuiriam, a casa ficaria mais limpa, nenhum som de pata na porta ou na janela me acordando de manhãzinha. Mas não é que o danadinho voltou? Chegou num dia à noite, a varanda cheia de gente, e ele fazendo festa. Ficou! Aos poucos fomos nos conhecendo. Eu, vivendo a solidão da escrita da tese, e ele sempre por ali, aos meus pés. Fez muita caminhada comigo, no campo de futebol, nos fundos do quintal. Tive certeza do meu afeto por ele, quando, numa manhã, enquanto o menino se preparava para ir para escola, ouvimos sons de uma freada brusca e latidos. "O Scooby foi atropelado!", gritei, já com o coração disparado. O menino jogou a mochila com o material escolar no chão e saiu em disparada. Do jeito que ele saiu eu pensei, "ele mata quem fez isso". Graças a São Francisco (sim, virei devota), não teve atropelamento nenhum e Scooby estava bem.
Depois, foi a vez de Fridinha. Fridinha era cachorra de rua, sem dono. Vivia sendo maltratada, cheia de feridas, o rabo sem um pelo sequer. Comecei colocando água e ração para ela, lá fora. Depois ela começou a entrar. Só percebíamos que ela estava por perto quando sentíamos o mau cheiro. Se escondia no banheiro, embaixo da cama, na minha caixa de livros. Com o coração partido eu sempre a colocava pra fora. Até que desisti. Fingia que não a via, só para não ter que expulsá-la. Aí, num belo dia, resolvi enfrentar o meu "nojinho" e dar um banho nela. Ela tensa, coitada, ficou quietinha. Tinha muitas, muitas pulgas, mas com o cuidado foi melhorando. Seu pelo voltou a nascer, e ela foi ficando, Precisava de um nome. Foi batizada Frida, porque o corpo tinha muitas feridas. Ainda tem. Demorou a responder ao novo nome. Não sei sua idade, mas imagino que seja velhinha, pois não tem todos os dentes e fica sempre muito quietinha. Na verdade, ela só queria um cantinho pra ficar. Não dá trabalho nenhum, a não ser com os seus problemas de pele, e é sempre muito obediente.
Mas Fridinha chegou grávida. E apreensiva, eu acompanhei sua gestação. Tensa, fui sempre acalmada por minha amiga Ana Augusta, que é veterinária. "Calma, Dalva! A natureza é sábia, se encarregará de tudo", ela dizia. Em 4 de novembro de 2015, nasceu Nala, toda branquinha, muito parecida com a mãe e Dandara, a princesa guerreira. Nalinha encontrou logo quem a quis. Foi adotada por meu sobrinho e mudou-se para BH. Está em boa família, gente convertida aos animais e tem um companheiro para brincar, o Billy.
A adoção de Dandara não dava certo. Por duas vezes quase teve um novo lar. O tempo foi passando e eu fui me apegando. Desisti de dá-la em adoção. Me conformei. "Agora, tenho 1 filho, duas malas e 2 cachorras", pensava. Mas dia desses, minha amiga Carmen veio me visitar e caiu de encantos por Dandarinha. Sedutora, não há ninguém que não se renda a seus encantos. Quando vi Dandarinha partindo, com aqueles olhinhos redondos, no banco traseiro do carro da minha amiga, meu coração apertou. Os dias seguintes foram de muita tristeza. Como eu jamais imaginei sentir por um animal. Foram sete meses de convivência. Dandarinha me obrigava a brincar. Pegava seu ursinho ou alguma meia do menino e eu tinha que correr atrás dela. Estava sempre por perto, enrodilhada aos meus pés. Dia desses, a nova dona me mandou fotos, mostrou Dandarinha se adaptando ao novo lar. Falei pra minha amiga desse afeto novo que ela, os filhos e o marido vão descobrir, convivendo com Dandara.
Quanto à minha tristeza, lembrei de Elizabeth Bishop. A poeta, no belo poema "a arte de perder", nos ensina que perder não é nenhum mistério. Precisamos treinar diariamente o desapego. Comece lembrando que perdemos as horas. Perca as chaves de casa. Depois exercite com coisas maiores: lugares, nomes, viagens. A gente também perde pessoas, e não é nada sério. Vamos sentir saudades, mas não chega a ser mistério. Exercitar a perda alarga a alma e abre espaço para outros afetos. Não é nada sério. Não há mistério.

terça-feira, 28 de junho de 2016

"Não há mudança sem sonho como não há sonho sem esperança"

Hoje, o menino tem prova bimestral. Ontem, sentamos juntos para estudar. É sempre um dilema. Eu, professora que sou, sofro horrores com o descolamento entre escola e realidade. A matéria era geografia. Da Europa. Mas, o menino queria saber mesmo era sobre outras paisagens.
"Mãe, que história é essa de "Deus e o diabo na terra do sol"?
Ele ouviu a referência na música do Emicida [Segue teu instinto/Que ainda é Deus e o Diabo na terra do Sol/Onde a felicidade se pisca, é isca/E a realidade trisca, anzol/Corre!] e viu outro dia, rapidamente, alguma coisa na casa do pai. Lógico que aproveitei a oportunidade para falar de Glauber, do cinema novo, da ideia na cabeça e da câmera na mão. Contei de Barravento, filme lindo, que assisti, em companhia da minha amiga Mariza, num Festival de Inverno, há muitos anos, em Ouro Preto. O menino se impressionou com a cena que viu, com a paisagem.
"Isso é o sertão, meu filho."
Falei de Guimarães Rosa.
"Sabe a quebrada? Então! O sertão é a quebrada do Guimarães Rosa."
Assistimos também ao trailer de "Big Jato", novo filme de Claudio de Assis, baseado no romance homônimo de Xico Sá, com Mateus Nachtergaele, que amo.
"A vida fede a verdade e cheira a poesia". "Tendeu, Jão?"
"Quero assistir este também, mãe."
"Sim, vamos assistir a próxima vez que formos a BH, se ainda estiver em cartaz."
"O sertanejo forte é o que vai embora", diz um dos personagens do filme. Falamos do nosso sertãozinho aqui, de Baldim. Expliquei que a fala do personagem era referência a Euclides da Cunha, Guerra de Canudos, "Os Sertões".
"Ói, de novo, a quebrada aí?"
"Mãe, porque a gente não aprende isso na Escola?"
Ah, a escola! Descolada de tudo. Preocupada em fazer xs meninx cumprirem regras: não pode usar boné, tem que sentar adequadamente, conversam demais, não podem demonstrar afeto. Beijar na escola? Dá ocorrência.
Um amigo tem um pesadelo recorrente. Sonha que voltou a estudar. Acho tão simbólico!
Uma amiga, professora, aposentou dia desses. Disse que o trabalho era como uma prisão semiaberta, só que ao contrário. Passava o dia na prisão, e à noite, voltava pra casa.
Meus alunos rasparam o "s" e o "a" da palavra sala, escrita acima de cada porta que identificavam as salas de aula. Substituíram por "c" e "e": cela! O arame farpado no muro, as grades e os cadeados, além da domesticação dos corpos, me obrigavam a concordar com eles.
Fomos procurar "Deus e o diabo na terra do sol" no YouTube. Achamos "A hora e a vez de Augusto Matraga". Assistimos o trailer com o lindo do João Miguel, que adoro.
"Mãe, eu quero assistir esse filme, também!"
"Sim, meu filho! Vamos assistir juntos. A hora e a vez de Augusto Matraga é um dos meus contos preferidos. Lembra que eu sempre digo que a minha hora e a minha vez vai chegar? Então... É fala do personagem".
"Não dá spoiler, mãe!"
Falei que Guimarães fazia aniversário. 108 anos. Já estivemos em sua casa, em Cordisburgo. Os livros dele estão por aqui, em toda parte. São como bíblia pra mim. Falei que Sagarana, livro onde está o conto do Matraga, completou 70 anos.
Ah, se a escola fosse ao cinema. Minha professora querida, Inês Teixeira, escreveu livro sobre isso.
"Filho, vamos deixar o sertão e voltar pra Europa, porque é sobre este, o tema da prova de amanhã."
Na hora de dormir fui ler Paulo Freire. "Pedagogia dos sonhos possíveis". Presente da minha amiga, Ofélia. Sonhei com a escola. Dava aulas sobre cinema novo, Guimarães Rosa e sertão.
"Sonhar é um ato político necessário", dizia Paulo Freire.
Segundo ele, "não há mudança sem sonho como não há sonho sem esperança"...

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Sambar na corda bamba

A semana que passou foi intensa. Completei 50 anos na quinta feira, dia 23, e como em todo aniversário, foi dia de reflexão. Ganhei de presente a visita da minha amiga, Carmen, que não via há algum tempo. Tê-la aqui, comigo, sentada à mesa, com a janela-azul-de-tramela ao fundo, mudando a minha a paisagem, amplificou ainda mais os sentimentos. Passei o resto da semana revivendo o momento belo que foi a sua visita e digerindo as emoções que a conversa trouxe à tona. No sábado, o dia começou com o anúncio da morte da Dindinha Maria. Casada com o irmão de mamãe, Dindinha ajudou a criar todos nós. Fui ao velório, quis me despedir. Quando a moça que rezava o terço perguntou se alguém queria falar alguma coisa, emocionada, entre choro, contei da minha gratidão a essa mulher generosa que acolhia todo mundo em sua casa. Me disseram que o papagaio dela continua lá, na cozinha, a chamar por ela: "mãe, mãe, ô mãe"... Ontem, fiquei sabendo da morte de Bárbara Rosa, moça jovem, cheia de vida que acompanhava o cantor Liniker. Descobri Liniker há alguns meses e virou inspiração pra mim. Gosto de sua música preta, mas gosto ainda mais de sua atitude lacradora: "ninguém vai me tombar, não!", ele diz. Segundo ele, ao menor sinal de ameaça, ele passa logo três batons e se empodera ainda mais. Há uns dias atrás, ouvi Bárbara no Programa Metrópolis. Quando a apresentadora, Adriana Couto, perguntou aos integrantes do projeto "Salada das Frutas" (Liniker, As Bahiana e a Cozinha Mineira e Tássia Reis) sobre o sonho de cada um deles, Bárbara respondeu que o dela era cantar com Criolo. Não deu tempo. Morreu na madrugada de domingo, tão jovem, aos 21 anos. No sábado, quando fui ao cemitério no enterro da Dindinha, andei por entre os túmulos, lembrando dos entes queridos que foram enterrados ali: mamãe, papai, vovó, vovô, dindinha... A certeza da vida é a morte, mas vivemos como se não fôssemos morrer nunca. Ir a um velório ou a um enterro nos ajuda a refletir sobre a fragilidade do que somos. Ajuda a pensar que estar vivo é uma dádiva, e por isso, hoje, tem esse nome: presente. Com as emoções em turbilhão, comecei o dia lendo Cecília Meireles:
"Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno."
Bárbara não conseguiu realizar um de seu sonhos que era cantar com Criolo, mas realizou outros. Então, bora tentar realizar o nosso sonho, hoje. Porque amanhã, ninguém sabe. E como Bábara cantava com o "Salada de Frutas": "boto o salto e vou pro mundo, nessa corda bamba, sambar!"
Bora, subir no salto, passar o batom vermelho e lacrar o dia de hoje!

domingo, 26 de junho de 2016

Fome de beleza

Acordei com fome de beleza.
Li Adélia, alto, na cozinha.
O menino acordou, em seguida.
Enquanto ele preparava o seu café, me ouvia:
"O que parece vivo, aduba. O que parece estático, espera."
"Nossa! Da hora isso, hein mãe?"
Desde pequeninho ele me ouve ler poesia.
Um dia, depois de uma briga, li "Mater Dolorosa":
"(...) Era domingo,
ela estava sem fadiga
e me respondia com doçura (...)"
Desde então, sempre que levanto a voz, ele me lembra:
"Mãe, olha a doçura!"
Li "Poema esquisito". O poema que fez mamãe chorar.
Li "Antes do nome", um dos meus preferidos:
"Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é o Verbo."
Li alto, "Azul sobre amarelo, maravilha e roxo":
"Desejo, como quem sente fome ou sede,
um caminho de areia margeado de boninas (...)
Na alma, o querer de um mundo tão pequeno
como o que tem nas mãos o Menino Jesus de Praga."
É tão bonito, isso! Não é?
"É sim, mãe!" O menino responde, enquanto mastiga o pão e toma seu leite.
Mamãe tinha um Menino Jesus de Praga. Procurei pela casa toda. Não encontrei. O menino ganhou um, quando nasceu. Está lá, junto com São Benedito e outros santos e a jarrinha do Jequitinhonha, embrulhados em jornal, guardados na caixa, esperando, pacientemente, eu ter, novamente, um cantinho pra eles.
O menino terminou o seu café e foi andar de skate.
"Vou procurar uns picos bons por aí". Os picos bons são a rua do colégio, em frente ao cemitério, a escada da fábrica de doce, a velha fábrica abandonada. Tão facinho esse menino. Qualquer lugar lhe serve.
O coro de vozes infantis sai do alto falante da igreja chamando os devotos para a missa. Dona Geralda já desceu com sua filha. Fui lá, na rua, dar um beijo nela. O cheiro de seu creme ficou impregnado em minha pele. Quis tirar uma foto. A filha com pressa. "Vamos, mãe!" Ela, paciente: "Na volta eu te chamo no portão e a gente tira, tá bom?".
Que importância isso tem? Nenhuma.
Mas é que, como Adélia diz, "eu só tenho o cotidiano e o meu sentimento dele". E um aperto aqui no peito. Daí, pego a escolher palavras com as quais narrar minha angústia. E nesta busca pelo 'de', o 'aliás', o 'porém', já vou respirando melhor.
A missa começou. A voz do coral chega aqui.
É domingo, é domingo, é domingo

sábado, 18 de junho de 2016

Matrix

Às vezes, tenho a impressão que estou vivendo numa matrix. O mundo está tão mais interessante fora do facebook. A vidinha por aqui, segue alheia a impedimentos, delações e vazamentos. Dia desses, Dona Ferina me parou para saber se eu era filha ou neta da Dona Dulce. Adorei ser confundida com a neta. Ela reclamou de dores, falou da preocupação com o filho, "menino trabalhador que se aposentou por invalidez", por causa de "problemas de cabeça". Lembrei de Sorôco, sua mãe, sua filha. Chegou a chorar com medo de morrer e deixá-lo sozinho. "Quem vai cuidar dele? Ele só tem a mim." Disse que ia levantar a bandeira de Santo Antônio na porta de casa para o santo velar por ele. "Afinal, o santo tem um menino também, não é?" Ontem, ouvi no alto falante da igreja o anúncio da sua morte. As dores que sentia não eram sem fundamento. E a vida segue, igualzinha. Hoje, apesar do frio, os meninos brincavam na porta de casa, do mesmo jeito. Depois das varadas por causa do copo de alumínio sujo de barro, a brincadeira era outra. Uma tapawer velha, fazendo as vezes de um caminhão basculante, transportava terra por um longo caminho, cheio de obstáculos, traçado no cascalho. O vira lata perdeu seu lugar ao sol, e quem, hoje, tomava um café, sem pão, era o menino, seu dono. Contrariado, o cachorro espreitava o momento de voltar para o seu conforto, no velho banco de carro, abandonado debaixo do pé de jamelão. Dona Maria capinava sua hortinha, alheia às discussões do congresso e a vizinha, logo abaixo, regava as bromélias que plantou na porta de casa. "Eduardo Cunha? Não conheço não, minha filha. Quem é? Mudou pra cá?"

Se eu soubese pintar

se soubesse pintar
pintaria um quadro em perspectiva
dessa que tem sido a minha visão
desde que cheguei aqui.
a velha janela azul de madeira e tramela
que abre pra dentro.
os fios de energia onde, durante o dia,
o tirisiu dança seu balé se exibindo pra mim.
e ao fundo,
o morro rebrotado com as chuvas de janeiro.
à direita,
em cima da geladeira marrom,
o velho pinguim,
a jarrinha de vidro com as flores artificiais da mamãe
e a chama da vela de 7 dias,
acesa para a abertura dos meus caminhos.
mas não sei pintar, nem desenhar
e como diz adélia,
"aos 50 anos não posso mais aprender profissão,
aprender a nadar como se deve"


Baldim, fevereiro de 2016.

terça-feira, 7 de junho de 2016

Caminhada

Vencer a vozinha que sussurra todos os dias na hora da caminhada: "não vai não, boba! Vai adiantar os trem que você tem que fazer", não é fácil. Mas venci e fui! Criolo cantando nos meus ouvidos ajuda a distrair. Todos os dias o mesmo caminho e ainda consigo reparar em coisas novas. A vaquinha estava lá, comendo numa carcaça de geladeira velha, feito coxo. Por falar em carcaça, uma outra, de um corcel II, abandonado no lote. Mais acima, um fiat 147 velho, também abandonado. Me impressiona a quantidade de carcaças de tanquinhos, essas máquinas de lavar mais baratas. São muitos que viraram lixeiras, alguns até presos no poste. Na cerca, portas de um armário, desses das casas bahia, cercam o buraco no galinheiro. Dois moleques brincando de pedreiro na porta de casa. Um deles manuseia uma enxada maior do que ele, e com água, buscada num copo de alumínio extremamente areado, faz o barro. O outro, transporta a "massa" num copo de liquidificador velho e vai levantando a mini parede, junto ao muro. Penso que aquelas marcas de mãozinhas sujas de barro no copo novo, podem dar problemas. O padeiro em sua bicicleta, espalha o som de sua buzina pelo cerradinho. Na garupa o balaio de pão. A mocinha toma o café num copo lagoinha, embaixo do pé de jamelão. Na mão, o pão recém-comprado. Os meninos refizeram as traves do campinho. Duas varas em forma de forquilha, mais um pedaço de bambu e está pronto o gol. Na cerca feito varal, à espera do sol, uma blusa branca, solitária. Na forma como está estendida, deve ter sido lavada com muito cuidado. Na volta, o menino pedreiro foge da mãe com uma vara na mão. Me meto na educação dos outros: "Não bate não, mãe! Ele estava brincando tão feliz!". Ela me sorri, como quem diz: "Deixa que é aqui, é comigo". Eu aumento o som da música nos fones de ouvido para não ouvir o choro do menino e aperto o passo para não ver a cena. Um vira lata magricela, no meio da rua, se contorce todo para lamber as feridas em suas costas. A marca de um líquido lilás denuncia que algum filho ou filha de deus se compadeceu e está cuidando dele. Ainda bem, porque já tenho três sob minha responsabilidade. E já é muito para uma recém-doutora desempregada. 

domingo, 5 de junho de 2016

Casa de papelão


além da casa costurada, a sobrancelha direita também tinha pontos. "foi um gambé filho da puta que me bateu. ele também quebrou meu dedo, olha". eu moro na rua, mas sou asseada. estou sempre trocando o papelão. esse lambe? foi uma amiga minha, louca, que faz ioga. ela deu de espalhar esses desenhos pela cidade. colou esse aí para enfeitar a minha casa. a caixinha de correios? é para o carteiro colocar as cartas dos meus filhos. eu tenho dois, sabe? um casal: um menino e uma menina. moram com a vó. essa fita? é para fechar a porta da minha casa. faço sempre um laço. não gosto de nós, nem de cadeados. por isso moro na rua. eu gosto é de liberdade."

Domingo

Eu não tenho escrivaninha. Escrevo mesmo é na mesa da cozinha. Papéis, livros e cadernos estão misturados com vidros de pimenta, com o pote de manteiga, com a lata de pão. Às vezes, a mancha de gordura ou a gota de café que salta da xícara borra a letra no papel. O que mesmo que estava escrito aqui? Sei que vou sentir saudades dessa janela azul de tramela e do que me chega através dela: as andorinhas e pardais nos fios da rede elétrica, a revoada barulhenta de periquitos, o canto da siriema lá no morro. O coro infantil no alto falante da igreja já chamou para a missa. Dona Geralda já desceu. Ouvi a sua voz e subi no banco da cozinha para vê-la descendo a rua com seu passo lento. Meu coração se encheu de ternura. Dona Geralda era quem ajudava a cuidar da minha avó, na infância. Vovó teve vários avc's. Na época chamávamos de derrame. Não andava, vivia em cima da cama. Dona Geralda é quem, sempre disposta e bem humorada, ajudava a dar banho, lavar seus paninhos. Tenho tanta gratidão por isso. No fundo do quintal da casa do vovô tinha um portão que dava para o fundo do quintal da Dona Geralda. Na cerca, uma rama de cansanção que servia as duas casas. Dona Geralda também era benzedeira. Fecho os olhos e consigo sentir o cheiro do raminho de arruda e guiné com os quais ele me benzia. "Ocê tá com muito mal olhado, nossa senhora"! E bocejava! "Espia! Essa abrição de boca é algum olho ruim que botaram em você." E murmurava sua reza espantando o mal olhado e o quebranto. Depois, os raminhos murchos eram jogados no fogo do fogão a lenha para não ficar nenhum vestígio do mal retirado do corpo. O som do coral da igreja chega avisando que a missa já começou. Dona Geralda deve estar lá, de terço na mão. Daqui a pouco, escutarei a risada dela subindo de volta pra casa. Quando meu tempo por aqui terminar e a janela for outra, "em meu país de memória e sentimento", bastará que eu feche os olhos e será novamente domingo.

sábado, 4 de junho de 2016

Dia cinza

o dia amanheceu cinza.
lembrei do poeta:
"deem-me o céu azul e o sol visível. névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim."
uma dorzinha de cabeça chata, que não passa nem com analgésico, nem com chá.
a tpm chegando e amplificando tudo.
lembro de adélia:
"meu deus, me dê cinco anos, me dê a mão, me cura de ser grande."
me dê, de novo, o pilãozinho de madeira
para eu sentar junto ao fogão,
enquanto o vovô, sô zé dias,
esquenta pra mim, um pão da padaria velha,
com margarina doriana, na chapa do fogão a lenha,
e com o café ralo e doce da lata,
eu aqueça meu coração.
"ô meu deus, meu pai, meu pai..."

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Junho

Junho chegou. E com ele, o frio chegou. Se bem que por aqui, frio, frio, não faz não. Dá uma esfriadinha pela manhã e à noite, mas os dias são cheios de sol e calor, mesmo em tempos tão estranhos. Eu sigo olhando pro chão, dando valor as coisas desimportantes. O sol nascendo, o som dos passos no caminho pedregoso, o bando de periquitos camuflados no pé de eucalipto, a hortinha da dona Maria. A rama de batata doce toda florida, os pés de quiabo que já alcançaram o telhado, mas seguem produzindo, a couve que está uma lindeza e as mangueiras que já estão em flor, novamente. Paro para conversar com o moço, improvisando uma tela em volta da palmeira que já ia bonita, mas plantada rente à cerca, foi comida pelas vacas. Vaca é um bicho triste, já reparou? Fica ali, ruminando o capim por horas, aquele olhar perdido, estranho. O cavalo é bicho resignado, nasceu pra sofrer, coitado. Carregar peso, apanhar à toa, à toa. E cachorro? Cachorro fica ali, na espreita de qualquer sinal de afeto para virar o seu melhor amigo. Ele olha nos olhos da gente, já reparou? Parece que busca um sinal da humanidade que em algum lugar, perdida, lá no fundo, repousa adormecida. Se localizar, ele se aproxima, se não, ele sai desconfiado com o rabo entre as pernas.