Hoje, o menino tem prova bimestral. Ontem, sentamos juntos para
estudar. É sempre um dilema. Eu, professora que sou, sofro horrores com o
descolamento entre escola e realidade. A matéria era geografia. Da
Europa. Mas, o menino queria saber mesmo era sobre outras paisagens.
"Mãe, que história é essa de "Deus e o diabo na terra do sol"?
Ele ouviu a referência na música do Emicida [Segue teu instinto/Que
ainda é Deus e o Diabo na terra do Sol/Onde a felicidade se pisca, é
isca/E a realidade trisca, anzol/Corre!] e viu outro dia, rapidamente,
alguma coisa na casa do pai. Lógico que aproveitei a oportunidade para
falar de Glauber, do cinema novo, da ideia na cabeça e da câmera na mão.
Contei de Barravento, filme lindo, que assisti, em companhia da minha
amiga Mariza, num Festival de Inverno, há muitos anos, em Ouro Preto. O
menino se impressionou com a cena que viu, com a paisagem.
"Isso é o sertão, meu filho."
Falei de Guimarães Rosa.
"Sabe a quebrada? Então! O sertão é a quebrada do Guimarães Rosa."
Assistimos também ao trailer de "Big Jato", novo filme de Claudio de
Assis, baseado no romance homônimo de Xico Sá, com Mateus Nachtergaele,
que amo.
"A vida fede a verdade e cheira a poesia". "Tendeu, Jão?"
"Quero assistir este também, mãe."
"Sim, vamos assistir a próxima vez que formos a BH, se ainda estiver em cartaz."
"O sertanejo forte é o que vai embora", diz um dos personagens do
filme. Falamos do nosso sertãozinho aqui, de Baldim. Expliquei que a
fala do personagem era referência a Euclides da Cunha, Guerra de
Canudos, "Os Sertões".
"Ói, de novo, a quebrada aí?"
"Mãe, porque a gente não aprende isso na Escola?"
Ah, a escola! Descolada de tudo. Preocupada em fazer xs meninx
cumprirem regras: não pode usar boné, tem que sentar adequadamente,
conversam demais, não podem demonstrar afeto. Beijar na escola? Dá
ocorrência.
Um amigo tem um pesadelo recorrente. Sonha que voltou a estudar. Acho tão simbólico!
Uma amiga, professora, aposentou dia desses. Disse que o trabalho era
como uma prisão semiaberta, só que ao contrário. Passava o dia na
prisão, e à noite, voltava pra casa.
Meus alunos rasparam o "s" e
o "a" da palavra sala, escrita acima de cada porta que identificavam as
salas de aula. Substituíram por "c" e "e": cela! O arame farpado no
muro, as grades e os cadeados, além da domesticação dos corpos, me
obrigavam a concordar com eles.
Fomos procurar "Deus e o diabo
na terra do sol" no YouTube. Achamos "A hora e a vez de Augusto
Matraga". Assistimos o trailer com o lindo do João Miguel, que adoro.
"Mãe, eu quero assistir esse filme, também!"
"Sim, meu filho! Vamos assistir juntos. A hora e a vez de Augusto
Matraga é um dos meus contos preferidos. Lembra que eu sempre digo que a
minha hora e a minha vez vai chegar? Então... É fala do personagem".
"Não dá spoiler, mãe!"
Falei que Guimarães fazia aniversário. 108 anos. Já estivemos em sua
casa, em Cordisburgo. Os livros dele estão por aqui, em toda parte. São
como bíblia pra mim. Falei que Sagarana, livro onde está o conto do
Matraga, completou 70 anos.
Ah, se a escola fosse ao cinema. Minha professora querida, Inês Teixeira, escreveu livro sobre isso.
"Filho, vamos deixar o sertão e voltar pra Europa, porque é sobre este, o tema da prova de amanhã."
Na hora de dormir fui ler Paulo Freire. "Pedagogia dos sonhos
possíveis". Presente da minha amiga, Ofélia. Sonhei com a escola. Dava
aulas sobre cinema novo, Guimarães Rosa e sertão.
"Sonhar é um ato político necessário", dizia Paulo Freire.
Segundo ele, "não há mudança sem sonho como não há sonho sem esperança"...
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