terça-feira, 28 de junho de 2016

"Não há mudança sem sonho como não há sonho sem esperança"

Hoje, o menino tem prova bimestral. Ontem, sentamos juntos para estudar. É sempre um dilema. Eu, professora que sou, sofro horrores com o descolamento entre escola e realidade. A matéria era geografia. Da Europa. Mas, o menino queria saber mesmo era sobre outras paisagens.
"Mãe, que história é essa de "Deus e o diabo na terra do sol"?
Ele ouviu a referência na música do Emicida [Segue teu instinto/Que ainda é Deus e o Diabo na terra do Sol/Onde a felicidade se pisca, é isca/E a realidade trisca, anzol/Corre!] e viu outro dia, rapidamente, alguma coisa na casa do pai. Lógico que aproveitei a oportunidade para falar de Glauber, do cinema novo, da ideia na cabeça e da câmera na mão. Contei de Barravento, filme lindo, que assisti, em companhia da minha amiga Mariza, num Festival de Inverno, há muitos anos, em Ouro Preto. O menino se impressionou com a cena que viu, com a paisagem.
"Isso é o sertão, meu filho."
Falei de Guimarães Rosa.
"Sabe a quebrada? Então! O sertão é a quebrada do Guimarães Rosa."
Assistimos também ao trailer de "Big Jato", novo filme de Claudio de Assis, baseado no romance homônimo de Xico Sá, com Mateus Nachtergaele, que amo.
"A vida fede a verdade e cheira a poesia". "Tendeu, Jão?"
"Quero assistir este também, mãe."
"Sim, vamos assistir a próxima vez que formos a BH, se ainda estiver em cartaz."
"O sertanejo forte é o que vai embora", diz um dos personagens do filme. Falamos do nosso sertãozinho aqui, de Baldim. Expliquei que a fala do personagem era referência a Euclides da Cunha, Guerra de Canudos, "Os Sertões".
"Ói, de novo, a quebrada aí?"
"Mãe, porque a gente não aprende isso na Escola?"
Ah, a escola! Descolada de tudo. Preocupada em fazer xs meninx cumprirem regras: não pode usar boné, tem que sentar adequadamente, conversam demais, não podem demonstrar afeto. Beijar na escola? Dá ocorrência.
Um amigo tem um pesadelo recorrente. Sonha que voltou a estudar. Acho tão simbólico!
Uma amiga, professora, aposentou dia desses. Disse que o trabalho era como uma prisão semiaberta, só que ao contrário. Passava o dia na prisão, e à noite, voltava pra casa.
Meus alunos rasparam o "s" e o "a" da palavra sala, escrita acima de cada porta que identificavam as salas de aula. Substituíram por "c" e "e": cela! O arame farpado no muro, as grades e os cadeados, além da domesticação dos corpos, me obrigavam a concordar com eles.
Fomos procurar "Deus e o diabo na terra do sol" no YouTube. Achamos "A hora e a vez de Augusto Matraga". Assistimos o trailer com o lindo do João Miguel, que adoro.
"Mãe, eu quero assistir esse filme, também!"
"Sim, meu filho! Vamos assistir juntos. A hora e a vez de Augusto Matraga é um dos meus contos preferidos. Lembra que eu sempre digo que a minha hora e a minha vez vai chegar? Então... É fala do personagem".
"Não dá spoiler, mãe!"
Falei que Guimarães fazia aniversário. 108 anos. Já estivemos em sua casa, em Cordisburgo. Os livros dele estão por aqui, em toda parte. São como bíblia pra mim. Falei que Sagarana, livro onde está o conto do Matraga, completou 70 anos.
Ah, se a escola fosse ao cinema. Minha professora querida, Inês Teixeira, escreveu livro sobre isso.
"Filho, vamos deixar o sertão e voltar pra Europa, porque é sobre este, o tema da prova de amanhã."
Na hora de dormir fui ler Paulo Freire. "Pedagogia dos sonhos possíveis". Presente da minha amiga, Ofélia. Sonhei com a escola. Dava aulas sobre cinema novo, Guimarães Rosa e sertão.
"Sonhar é um ato político necessário", dizia Paulo Freire.
Segundo ele, "não há mudança sem sonho como não há sonho sem esperança"...

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