domingo, 5 de junho de 2016
Domingo
Eu não tenho escrivaninha. Escrevo mesmo é na mesa da cozinha. Papéis,
livros e cadernos estão misturados com vidros de pimenta, com o pote de
manteiga, com a lata de pão. Às vezes, a mancha de gordura ou a gota de
café que salta da xícara borra a letra no papel. O que mesmo que estava
escrito aqui? Sei que vou sentir saudades dessa janela azul de tramela e
do que me chega através dela: as andorinhas e pardais nos fios da rede
elétrica, a revoada barulhenta de periquitos, o canto
da siriema lá no morro. O coro infantil no alto falante da igreja já
chamou para a missa. Dona Geralda já desceu. Ouvi a sua voz e subi no
banco da cozinha para vê-la descendo a rua com seu passo lento. Meu
coração se encheu de ternura. Dona Geralda era quem ajudava a cuidar da
minha avó, na infância. Vovó teve vários avc's. Na época chamávamos de
derrame. Não andava, vivia em cima da cama. Dona Geralda é quem, sempre
disposta e bem humorada, ajudava a dar banho, lavar seus paninhos. Tenho
tanta gratidão por isso. No fundo do quintal da casa do vovô tinha um
portão que dava para o fundo do quintal da Dona Geralda. Na cerca, uma
rama de cansanção que servia as duas casas. Dona Geralda também era
benzedeira. Fecho os olhos e consigo sentir o cheiro do raminho de
arruda e guiné com os quais ele me benzia. "Ocê tá com muito mal olhado,
nossa senhora"! E bocejava! "Espia! Essa abrição de boca é algum olho
ruim que botaram em você." E murmurava sua reza espantando o mal olhado e
o quebranto. Depois, os raminhos murchos eram jogados no fogo do fogão a
lenha para não ficar nenhum vestígio do mal retirado do corpo. O som do
coral da igreja chega avisando que a missa já começou. Dona Geralda
deve estar lá, de terço na mão. Daqui a pouco, escutarei a risada dela
subindo de volta pra casa. Quando meu tempo por aqui terminar e a janela
for outra, "em meu país de memória e sentimento", bastará que eu feche
os olhos e será novamente domingo.
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O encantamento da simplicidade está na pureza dos sentimentos que ela contém.
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