terça-feira, 29 de março de 2016

"Pega leve, tia"...

Enquanto esperávamos a nossa vez, eu lia "Hibisco Roxo" da Chimamanda. O menino ouvia rap tão alto nos fones de ouvido, que eu escutava junto. Pedi para abaixar. Ele tirou o celular do bolso e fingiu que diminuiu o volume. Eu deixei pra lá. Concentrei na leitura. A protagonista do livro vai, junto com o irmão, visitar o avô. O pai, convertido ao catolicismo, só permite 15 minutos de visita: "Naquele dia eu também examinara Papa-Nnukwu, desviando o olhar quando ele me encarava, procurando por um sinal que marcasse sua diferença, sua condição de pessoa ímpia. Não vi nenhum (...)" Chimamanda com sua genialidade, vai mostrando a desgraça do colonialismo. Não gosto dessa palavra: "desgraça". Mamãe, tão católica quanto o pai da personagem, não deixava que falássemos. Dizia que era o nome da mãe do capeta e que só de pronunciá-la, atraíamos coisas ruins. Mas é isso que o colonialismo foi, uma "desgraça"! As consequências estão todas por aí. Tanto aqui, quanto em Angola ou na Nigéria de Chimamanda. Observo a fila no posto de saúde. Quase nenhum branco. Com exceção dos nossos crespos (meu e do menino) soltos e pra cima, todos na fila estão com os cabelos "comportados". Os homens de boné ou chapéu, as mulheres com eles alisados e presos. A mocinha a minha frente, negra, usa uma saia jeans e um casaco rosa com corações e um bordado escrito "girl". Nos pés um chinelo enfeitado de pedrinhas de strass. O cabelo, alisado, ralo, quase não dá para fazer o coque, pequeno, no alto da cabeça. Em tempos de epidemia de dengue, zika e chikungunya, a fila para coleta de sangue está grande. O anexo, recém-reformado está limpo, as paredes pintadas de novo, o piso de uma cerâmica branca. Na parede um cartaz, feito manualmente, mostra uma arcada dentária onde faltam dentes. Há uma porta fechada com a identificação: escovódromo. Ao lado um painel de fotos com pessoas sorridentes mostrando o antes e o depois da dentadura. Na minha frente uma senhora com uma saia de oncinha, nos pés os chinelos havaiana azul e branco tradicional. Nas mãos uma sacola plástica. Dentro a carteira e o formulário azul, da solicitação do exame. Um senhor chega com um articum nas mãos. Presente para a atendente que lhe foi tão atenciosa. Da bolsa da moça com a criança no colo, escapa o cartão de vacinas do pequeno, onde é possível ler: “são direitos constitucionais da criança”… Na vez do menino ele fala pra auxiliar de enfermagem: “Pega leve, tia! Meu tamanho é de adulto, mas o coração é de criança.” Todos na sala riem. Depois da coleta, passamos na lanchonete, ele come alguma coisa e seguimos apressados. Ele não quis matar aula. . Deixo ele no portão do colégio, explico o porquê do atraso para a senhora que nos atendeu. "Ele está doente?", ela pergunta preocupada. "Não, são só exames de rotina", explico. Quando chego em casa, ouço ao longe, o apito da professora de educação física e o burburinho dos adolescentes na quadra. Então foi por isso que ele fez tanta questão de ir pra escola, mesmo atrasado? Hoje é dia de educação física. Mais do que nunca, a escola é lugar de socialização, espaço para estar com os seus. Para isso vale a pena até suportar a chatice das aulas.

quarta-feira, 23 de março de 2016

Uma mulher comum

Tirou o lenço da gaveta e ficou alisando o presente que veio de uma excursão a Aparecida do Norte. No meio do tecido a imagem da santa padroeira, preta, como ela. Dobrou o lenço formando um triângulo e amarrou na cabeça para proteger o cabelo da poeira. Antes, retirou os três fios brancos que se recusaram a obedecer à tinta e ao alisante. Pegou a vassoura e lembrou dos ensinamentos da mãe: "para varrer uma casa direito é preciso começar pelo alto". Passou a vassoura pelo forro, em movimentos que iam de cima a baixo, retirando as teias de aranha. Junto vieram as traças, esses bichinhos danados que não respeitam nem os vestidos novos, já cheios de furinhos. Tirou o caquinho de espelho do bolso e se olhou. Os olhos se encheram de lágrimas. Onde foi parar a menina que ela foi um dia? Quem é essa velha que vem em sua direção? Guardou o espelho, pegou a flanelinha laranjada e foi tirar o pó da estante. Espanou a poeira acumulada no salmo 23, na Bíblia aberta. Fechou o livro e abriu aleatoriamente: "Foi pela fé que também Sara, apesar da idade avançada, se tornou capaz de ter uma descendência..." Nem com o conselho sagrado se animou. Apalpou os músculos frouxos do braço. Retirou o espelho do bolso do avental e se olhou novamente. Passou a mão pelo canto dos lábios, reparou que estão mais caídos, formando um "u" invertido, que lhe confere um certo ar de tristeza. "Quem é essa velha, meu Deus?", "Cadê a mulher que eu fui um dia?". Terminada a limpeza dentro de casa, foi para o tanque enfrentar a roupa suja e a vida sem amaciante. Depois da roupa estendida no varal, tirou o lenço da cabeça, dobrou-o novamente e guardou na gaveta da cômoda, protegido das traças. Soltou o cabelo, tirou o avental e foi sentar-se no tronco, feito banco, na porta da rua. Quem é ela? É só uma mulher comum, dessas que jamais verá seu nome impresso, mas que, no entanto, sustenta os pilares do mundo.

(Inspirado livremente no poema "Dolores" de Adélia Prado, no poema "Espelho" de Silvia Plath e na música "Mãe", do Emicida.

A vida não para

Pé ante pé consegui sair sem acordar Scooby, Frida e Dandara. As luzes da rua ainda estão acesas. Coloco os fones de ouvido. Desta vez vou embalada pela voz de Lenine: "mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma, até quando o corpo pede um pouco mais de alma"... Peguei emprestado os fones do menino e ouço a canção dos dois lados. A lua ainda está no céu, linda, inteira. Do outro lado, o tom vermelho-alaranjado informa que o sol surgirá dentro em pouco. Os cachorros ainda dormem enrodilhados no meio da rua. O cheiro que vem da fábrica de doce me deixa em dúvida se é banana ou goiaba. A lenha buscada ontem, está toda organizada, por tamanho e espessura, embaixo do pé de manga. Fogão a lenha tem sua ciência. 6 horas em ponto e o carro passa com a equipe da saúde da família a caminho da zona rural. A lua já sumiu, o sol surge atrás da Serra do Baldim. Os eucaliptos que substituíram os pés de pequi, atrapalham a paisagem. Dou meia volta no trevo e volto. Já tem menino penteado e com o uniforme da escola. A água do cabelo molhado escorre pelo pescoço deixando uma marca na camiseta cinza. Nos pés o chinelinho havaiana gasto de um dos lados. Ele pisa torto como eu. A galinha preta chocou os pintinhos. Parece que oito conseguiram escapar, dois são rajadinhos, o resto saiu como a mãe. Estão lá, todos juntos, ciscando no monte de lixo. Apresso o passo para ter certeza que o menino acordou com o despertador. A cada dia que passa, ele precisa menos de mim. Minha playlist recomeça. A voz de Lenine me lembra:
"Mesmo quando tudo pede
Um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede
Um pouco mais de alma
Eu sei, a vida é tão rara
A vida não para não!"

segunda-feira, 21 de março de 2016

"Aqui, ninguém vai pro céu"

 Às 6:15 da manhã, quando o motorista deu a partida, o menino avisou: "tô desligando do mundo, hein mãe"? Colocou os fones, coluna ereta para não amassar o black, colou a cara na janela e foi observando a paisagem que já sabe de cor.
Sem ninguém para conversar, também coloquei meus fones e fui observando as pessoas que entravam no ônibus. Um jovem, em pé, à minha frente, segurava no bagageiro, deixando à mostra a tatuagem na parte superior interna do braço esquerdo, em letra cursiva: Maycon.
Ao seu lado, outro jovem, todo arrumado: bermuda saruel, crocs, celular no bolso e material de pedreiro na mão.
O trocador mal-humorado, reclamava o tempo todo da linha que não é dele, que está substituindo o colega, que não conhece os pontos de ônibus no meio da estrada sem nenhuma identificação. "Um passinho pra trás, por favor", ele pede. E numa coreografia de barrigas e bundas se mexendo, todos obedecem.
Com sua voz doce e suave, Criolo canta no meu ouvido esquerdo, já que o fone só funciona de um lado: "é, dizem que não é pra você, esta história de vencer, de sonhar e conquistar. É, mas eu digo que é pra você, essa história de vencer, de sonhar e conquistar..."
Às 7:35h ainda nem atravessamos o Rio das Velhas. O trocador melhorou o humor e agora conversa com uma moça loirinha que não conseguiu lugar para se sentar. Ela reclama dos poucos ônibus em circulação. Ele concorda com ela.
"Dá licença, dá licença!", alguém vem gritando lá de trás. "Motorista, para no próximo, por favor!?" Novamente o balé de barrigas e bundas se move, abrindo espaço para a tiazinha descer. "Vai com Deus!" grita alguém. "Fica com ele também!", ela responde.
O rapaz com a tatuagem no braço informa pra loirinha que vagou lugar lá no fundo. Sem ninguém pra flertar, o trocador, visivelmente aborrecido, vai conversar com o motorista.
Duas horas depois estamos em Lagoa Santa. Criolo me convida para Bogotá, diz que lá é melhor que Pasárgada. Eu imagino ele e Dona Vilani na cozinha, na casa do Grajaú. A mãe lendo Manuel Bandeira para o filho, enquanto ele lava a louça, sem sequer imaginar, que anos depois, a referência ao poema ia virar letra de música.
Coincidentemente, quando Criolo começa a cantar "Não existe amor em SP", estamos chegando em BH. O menino chama minha atenção para um painel de grafite, lindo, na av. Pedro I. Curiosamente, Criolo canta: "onde os grafites gritam, não dá para entender..." "Aqui, ninguém vai pro céu..."

Às 08:40 estamos na Pampulha. Mais uns 20 minutos e chegamos na região do IAPI. Enquanto Emicida e seus amigos, dá um monte de soco no meu estômago com a música "Mandume": "nunca deu nada pra nós, caralho; nunca lembrou de nós, caralho", o menino chama minha atenção para dezenas de usuários de crack, na cracolândia belo horizontina.
"Chegamos na capital, mãe", ele diz. "Hoje é dia da desigualdade social e da injustiça ser jogada na nossa cara." São 09:15h.

domingo, 20 de março de 2016

Ainda a (há?) esperança

A esperança é um bichinho mesmo muito frágil. Na sexta-feira, seguindo os conselhos de Saramago, comecei o dia embalando a esperança no colo. No começo da noite, depois de toda aquela boniteza que foram as passeatas pelas ruas, minha irmã me perguntou: "Dalva, como está a sua esperança? A minha está do tamanho desse povo todo que foi à rua, hoje".
Mas a injustiça é como a aranha que ameaça a esperança no conto da Clarice. "Precisamos facilitar o caminho da esperança", ela nos diz. A casa precisa estar limpa, precisamos arrastar os móveis, limpar a parede atrás dos quadros. Nada pode ameaçar a esperança, esse bichinho magrelo e frágil.
Como é a literatura que me salva, hoje acordei e fui ler Adélia: "Eu, se fosse governo..."
Fiquei refletindo sobre o conto da mineira.
Eu, se fosse a presidenta, seguiria os conselhos da Adélia: "subiria num tamborete, batia palma e gritava bem alto pra todo mundo escutar: cala boca, gente, escuta aqui. Obrigava todo mundo a ficar quieto primeiro e explicava o meu programa administrativo." Governo, explica Adélia, "é o tipo de coisa que não dá pra fazer sozinho, precisa de todo mundo". Se eu fosse a presidenta, faria como Adélia ensina: "escolhia pra meus ajudantes só gente que tivesse duas coisinhas à-toa: honestidade e competência." Mas a presidenta está cercada de inimigos, coitada!
Com a equipe pronta, aí era chamar todo mundo para uma assembleia, que teria recesso somente depois de trazer, por escrito, "quantos meninos sem escola, quanto pai de família sem emprego, quanto homem e mulher que fosse amarelo, feio, sem dente, sem saúde, sem alegria." Sim, alegria é tão importante quanto comida. Mas aí, como a narradora do conto de Adélia, eu lembro que não tenho poder nenhum e impotente, também fico me sentindo como uma galinha na chuva: "Já viu que dó? Aquele passo bobo, aquele pescoço esticado pra frente, olha aqui, olha acolá, encharcada na friagem e na lama, sem resolver nada e, pior que tudo, sem saber de nada.
Profética, Adélia decifra meus sentimentos: "Tou com medo de apanhar tristeza, encardir de melancolia. Sei que sofrimento neste mundo é fazenda de todos. Mas tendo Justiça, meu Deus, ao menos miséria some, ao menos ninguém vai ter susto de ser preso à toa, de apanhar sem poder dizer essa boca é minha, explicar, de pé feito um homem, se tem culpa ou não." Na quebrada a gente sabe bem como é. Outro dia mesmo, eu e meu amigo passamos por isso: "Calem a boca senão vocês vão ser presos por desacato!" Fiquei muda diante da violência e não consegui segurar as lágrimas.
Como a narradora de Adélia, eu também tenho chorado. Mas choro escondido do menino; pois, quando ele tem o medozinho dele, é atrás de mim que corre, "pensando que eu sou forte, só porque sou grande", só porque sou mãe. Quando vamos a BH e eu reclamo porque ele quer ajudar todo morador de rua, todo malabarista no sinal, todo vendedor que entra no ônibus e digo: "de mim você não tem pena, não é?" Ele responde: "Você não precisa que eu tenha pena de você, mãe". Daí, cata todas moedas e vai lá, colocar na mão do moço. Só falta dar um abraço nele e pedir desculpas porque o dinheiro é pouco e, afinal, é muita gente pra ajudar. É assim desde criancinha.
Mas como a narradora do conto, eu não sei o que fazer, nem como ajudar. A impotência toma conta de mim. Me sentido como a galinha na chuva, eu começo a limpar a casa, a arrastar os móveis, a deixar tudo limpo, para que nada atrapalhe o caminho da esperança; para que ela não seja ameaçada por nenhuma aranha.

sexta-feira, 18 de março de 2016

Esperança

Em momentos de injustiça precisamos da esperança.
Mas hoje, eu acordei desesperançada.
Como ter esperança num mundo onde se rouba merenda de criança, mas servem filé mignon a manifestantes anti-governo? Como ter esperança num país que se escandaliza com dois pedalinhos, mas faz vista grossa a um helicóptero com meia tonelada de cocaína? Como ter esperança em uma população que se escandaliza com uma avenida fechada aos domingos para lazer, mas acha que está tudo certo quando ela é fechada, durante dias, por um grupo que agride qualquer pessoa que passe com uma camiseta vermelha? Como ter esperança num povo que tira selfie com PM, a mesma PM que extermina a juventude negra e periférica?
Acordei buscando a esperança: no beijo do filho indo para a escola, no cachorro que pulou em mim, quando eu abri a porta, mas nada... Saramago diz que em tempos de injustiça precisamos andar com a esperança no colo, a embalá-la, ou embalados nós no colo dela. Mas cadê ela?
Fui a horta colher as pimentas, mas no fundo, queria mesmo era encontrar a esperança, a verde, a concreta, aquele bichinho frágil que nos aparece de vez em quando. Em horas de desesperança, o inseto verde junta as duas: a esperança concreta e a esperança abstrata.
Clarice, no belo conto "Uma esperança", fala da fragilidade do inseto, mas que também serve para a outra, a abstrata: "ela quase não tem corpo, só tem alma", "é meio burrinha, hesitante"; "não tem olhos, é guiada pelas antenas", "mais pousa que vive", "é ilusória, mas é ela que nos sustenta sempre".
Aí, lembrei de um outro poema, de Mário Quintana:
"Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso voo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA..."
Um dia cheio de esperanças... que ao final do dia de hoje, tudo termine bem.

terça-feira, 8 de março de 2016

Menos flores, mais direitos; Menos flores, mais respeito

levantou às 5 para preparar o almoço dos meninos antes de sair. com pena de acordar o menorzinho, vestiu-lhe o uniforme da creche com ele ainda dormindo. os 4 desceram juntos. caminharam cerca de 3 km. deixou os dois mais velhos na porta da escola e ainda caminhou mais um bocado até a creche, onde deixou o caçula. apertou o passo para não perder a condução, afinal, seriam duas faxinas no dia. quando passou em frente ao supermercado, ganhou uma rosa pelo dia 8 de março, não sem antes ouvir um "gostosa" do rapaz que distribuía os mimos. no ônibus cheio, teve que dar uma cotovelada no velho que insistia em encoxá-la. chegou a tempo de pegar o patrão em casa, que lhe entregou as chaves do apartamento apertando-lhe os dedos das mãos. "quer dizer que você se separou? então, agora liberou geral?", perguntou-lhe, enquanto mordia o lábio inferior num gesto de desejo. ela engoliu o ódio e o choro e respondeu: "não senhor, pelo contrário; agora estou ainda mais criteriosa!"

quinta-feira, 3 de março de 2016

Sobre meritocracia

O menino ouvia atento as histórias do primo e da vida que ele levou na capital, quando recém-chegou do interior. Um tempo em que ele ganhava 300 e poucos reais como estagiário e pagava mais de 400 num curso de capacitação. Morava de "favor" num apartamento cedido por uma tia, o que possibilitava que a irmã mais velha, bancasse as contas sozinha. Caminhava cerca de 7 km a pé para ir para o trabalho, economizando os vales-transporte que eram usados para ir para o curso. Já chegava exausto no estágio, o que comprometia seu rendimento num trabalho que exigia muita atenção. Foi salvo por um colega, que lhe emprestou uma velha bicicleta, que reformada, resolveu parte do problema. Resolvido o transporte para o trabalho com a bike, faltava o deslocamento até o curso. Os 2 vales-transporte diários economizados do trabalho não eram suficiente para os 4 ônibus necessários para ir e voltar da escola. A saída foi fazer metade do percurso a pé, cerca de 8 km (ida e volta) e metade de ônibus, usando os vales economizados. Terminado o curso, ele foi admitido na empresa, onde trabalha até hoje. Como mora na periferia, o deslocamento de casa até o trabalho consome muitas horas do seu dia, o que dificulta o investimento em mais capacitação. É óbvio que a conversa caminhou para meritocracia, política de cotas, desigualdade social, racismo, etc... E como não poderia deixar de ser, sobre cultura hip hop e a consciência racial e social possibilitadas pelas letras de rap. No apagar das luzes, quando nos preparávamos para dormir, o menino, ainda impressionado com as histórias do primo, comentou: "é mãe, eu não posso reclamar da minha vida não, mesmo tendo só 1 par de tênis e 1 calça jeans." Eu fui dormir com o coração aquecido num orgulho danado desses meninos e certa de que, em alguma coisa nós acertamos com nossos filhos.