quarta-feira, 23 de março de 2016

Uma mulher comum

Tirou o lenço da gaveta e ficou alisando o presente que veio de uma excursão a Aparecida do Norte. No meio do tecido a imagem da santa padroeira, preta, como ela. Dobrou o lenço formando um triângulo e amarrou na cabeça para proteger o cabelo da poeira. Antes, retirou os três fios brancos que se recusaram a obedecer à tinta e ao alisante. Pegou a vassoura e lembrou dos ensinamentos da mãe: "para varrer uma casa direito é preciso começar pelo alto". Passou a vassoura pelo forro, em movimentos que iam de cima a baixo, retirando as teias de aranha. Junto vieram as traças, esses bichinhos danados que não respeitam nem os vestidos novos, já cheios de furinhos. Tirou o caquinho de espelho do bolso e se olhou. Os olhos se encheram de lágrimas. Onde foi parar a menina que ela foi um dia? Quem é essa velha que vem em sua direção? Guardou o espelho, pegou a flanelinha laranjada e foi tirar o pó da estante. Espanou a poeira acumulada no salmo 23, na Bíblia aberta. Fechou o livro e abriu aleatoriamente: "Foi pela fé que também Sara, apesar da idade avançada, se tornou capaz de ter uma descendência..." Nem com o conselho sagrado se animou. Apalpou os músculos frouxos do braço. Retirou o espelho do bolso do avental e se olhou novamente. Passou a mão pelo canto dos lábios, reparou que estão mais caídos, formando um "u" invertido, que lhe confere um certo ar de tristeza. "Quem é essa velha, meu Deus?", "Cadê a mulher que eu fui um dia?". Terminada a limpeza dentro de casa, foi para o tanque enfrentar a roupa suja e a vida sem amaciante. Depois da roupa estendida no varal, tirou o lenço da cabeça, dobrou-o novamente e guardou na gaveta da cômoda, protegido das traças. Soltou o cabelo, tirou o avental e foi sentar-se no tronco, feito banco, na porta da rua. Quem é ela? É só uma mulher comum, dessas que jamais verá seu nome impresso, mas que, no entanto, sustenta os pilares do mundo.

(Inspirado livremente no poema "Dolores" de Adélia Prado, no poema "Espelho" de Silvia Plath e na música "Mãe", do Emicida.

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