quinta-feira, 3 de março de 2016
Sobre meritocracia
O menino ouvia atento as histórias do primo e da vida que ele levou na
capital, quando recém-chegou do interior. Um tempo em que ele ganhava
300 e poucos reais como estagiário e pagava mais de 400 num curso de
capacitação. Morava de "favor" num apartamento cedido por uma tia, o que
possibilitava que a irmã mais velha, bancasse as contas sozinha.
Caminhava cerca de 7 km a pé para ir para o trabalho, economizando os
vales-transporte que eram usados para ir para o curso. Já chegava
exausto no estágio, o que comprometia seu rendimento num trabalho que
exigia muita atenção. Foi salvo por um colega, que lhe emprestou uma
velha bicicleta, que reformada, resolveu parte do problema. Resolvido o
transporte para o trabalho com a bike, faltava o deslocamento até o
curso. Os 2 vales-transporte diários economizados do trabalho não eram
suficiente para os 4 ônibus necessários para ir e voltar da escola. A
saída foi fazer metade do percurso a pé, cerca de 8 km (ida e volta) e
metade de ônibus, usando os vales economizados. Terminado o curso, ele
foi admitido na empresa, onde trabalha até hoje. Como mora na periferia,
o deslocamento de casa até o trabalho consome muitas horas do seu dia, o
que dificulta o investimento em mais capacitação. É óbvio que a
conversa caminhou para meritocracia, política de cotas, desigualdade
social, racismo, etc... E como não poderia deixar de ser, sobre cultura
hip hop e a consciência racial e social possibilitadas pelas letras de
rap. No apagar das luzes, quando nos preparávamos para dormir, o menino,
ainda impressionado com as histórias do primo, comentou: "é mãe, eu não
posso reclamar da minha vida não, mesmo tendo só 1 par de tênis e 1
calça jeans." Eu fui dormir com o coração aquecido num orgulho danado
desses meninos e certa de que, em alguma coisa nós acertamos com nossos
filhos.
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