domingo, 24 de setembro de 2017

"Repetir, repetir, até ficar diferente"

Acordei com o barulho da chave na porta. "Cheguei, mãe!". "Que bom, meu filho". O silêncio da cidade quebrado pelo som vindo de uma casa vizinha. Festa de quinze anos. Rolou homenagens, valsa. Os gritos adolescentes chegando até aqui. Depois, foi a vez do funk. Imaginei as mocinhas e rapazes "de família", com suas roupas de gala dançando até o chão. Lembrei da letra certeira: "é som de preto, de favelado, mas quando toca, ninguém fica parado". E querem proibir... Incomoda só quando é na favela, né? O menino bateu na porta do meu quarto. "Mãe, posso conversar com você um pouquinho?" "Claro, filho!". E contou da viagem da última metáfora. "Sabe aquela rua que você morou, mãe?" Disse como acertei dando a ele o caderninho artesanal, personalizado, para os seus escritos. "Mãe, eu sou muito seu filho. Tô indo pelo mesmo caminho, vendo poesia em tudo". Depois, se despediu e foi deitar. Dessa vez, eu que bati em sua porta: "Filho?" E li Adélia Prado pra ele: "A poesia me pega com sua roda dentada..." "É tipo isso mesmo, mãe!" Li "Antes do nome": Quem entender a linguagem entende Deus/cujo Filho é Verbo. Morre quem entender./A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,/foi inventada para ser calada./Em momentos de graça, infrequentíssimos,/se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão/Puro susto e terror." "Mó da hora isso, mãe." Dei boa noite e saí. "Meu filho, reparou no céu?" Gritei da cozinha, enquanto tomava um copo d'água. "Reparei sim, mãe. Tá lindo! Lembrei dele pequenininho, eu buscando na creche depois do trabalho, e ele me apontando a lua.
"Repetir, repetir até ficar diferente"... Educar é isso.

Chá

Não acordei bem. É a lua, tá virando. Lua nova, forte, mexe muito comigo. Preparei um chá. Como aqui não tenho um canteiro de hortelã, foi de saquinho mesmo. Mas o sabor é tão diferente, até a cor é estranha. Eu juro que tento ressignificar, mas sinto tantas saudades da minha patriazinha. Sinto falta do silêncio, dos pardais invadindo a cozinha, do beija-flor pousado no bebedouro, suas garrinhas seguras na haste amarela. Ele enfia o bico na flor artificial, sobe uma bolhinha na água e ele levanta a cabecinha. Parece um balé. Eu fico horas observando e me espantando, sempre. E o menino? Qu'é-de ele me apresentando as novidades na cena do rap? Criando coragem para me mostrar suas rimas? Fridinha e Scooby me rodeando, buscando presença, aconchego. Nem vou falar da janela azul de tramela, meu portal para Nárnia. Hoje, não tô boa, não. Vou tomar o chá.

Qu'é-de?

O entardecer aqui é triste. Nessa hora, o barulho dos carros na avenida aumenta. É hora do angelus, mas não tem a Ave Maria no alto-falante da igreja. Os prédios me roubam o pôr do sol. O cachorro do vizinho, que não para de latir, coitado, aumenta a saudade do Scooby. Qu'é-de Fridinha querendo colo? Qu'é-de meu irmão chegando da labuta cansado, sujo e cheio de histórias? Qu'é-de o menino perguntando pela janta?

Abandono

Neste semestre ainda não consegui estabelecer uma rotina, e como é facinho arrumar desculpas para não fazer exercício físico, parei a caminhada. Só hoje, consegui vencer a vozinha que há semanas me convence a não ir, e fui. Seguindo sugestões, fui caminhar na pracinha do aeroporto da Pampulha. Quinze minutos até lá, seis voltas na praça, quinze minutos de volta. Pronto, uma hora de caminhada. Quatrocentos calorias perdidas. Chegando lá, uma placa me chamou a atenção: "A Infraero cuida dessa praça". O correto seria: a Infraero abandonou e privatizou essa praça. Além de estar abandonado, metade do espaço foi cercado e deu lugar a uma estacionamento. Eu me confundia várias vezes ao tentar contornar a praça e entrava no estacionamento. Várias câmeras vigiam o local. Os carros estão super protegidos

Jantar

Ontem, eu levei o menino pra jantar num restaurante. Simplesinho, mas com toalha na mesa, garçom... "Mãe, eu fico tão incomodado com alguém me servindo. Quase digo pra ele, pode deixar aí, mano, que eu mesmo me sirvo." O prato veio bonito com coisas que ele gosta. "Muito melhor do que a marmita que você come em Baldim, né filho?" "Ah, mãe, eu não fico comparando as coisas, não. Aqui tá bom, lá também. Eu vivo o que o momento me reserva, tá ligado?"

O cobrador

Rubem Fonseca tem um conto que eu gosto muito: "O cobrador". O conto começa com uma visita do protagonista ao dentista. Depois que ele se acomoda na cadeira do consultório, o dentista olha com aquele espelhinho e pergunta como alguém pode deixar um dente ficar naquele estado. Quando li esse conto a primeira vez, lembrei de um dia que num consultório, desses de bairro, eu também ouvi da dentista: "Como alguém deixa um dente chegar nesse estado?". Ela ainda acrescentou: "Essa ainda vai voltar aqui para colocar dentadura, porque todo dia arranca um dente". O cobrador de Rubem Fonseca, também ouviu algo parecido: "Vou ter que arrancar, ele disse, o senhor já tem poucos dentes e se não fizer um tratamento rápido vai perder todos os outros, inclusive estes aqui" — e deu uma pancada estridente nos dentes da frente do "cobrador". Quando informado do valor da extração, o paciente disse: "Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, Agora eu só cobro!" Lembro também, de uma edição do Big Brother em que uma babá, a Cida, entrou na Casa. Durante o programa, seu rosto inchou por causa de um dente inflamado. Ela teve que sair para ir ao dentista. No programa ao vivo, Pedro Bial fez a mesma pergunta: "Como você deixou esse dente ficar nesse estado"? Quando Lula foi conduzido coercitivamente, e mais tarde, no mesmo dia, falou no Sindicato do Bancários em SP, ele contou de um agricultor que o visitou no Palácio do Planalto. Num gesto de cortesia, o presidente ofereceu ao visitante algumas castanhas que estavam em cima da mesa. O moço lhe respondeu que não comia castanhas porque não tinha dentes. Lula então, pediu para a sua assessoria que providenciasse uma prótese para o agricultor. Mamãe, já no final da vida, começou a perder os dentes e por isso tinha muita dificuldade em comer certas coisas. Sua comida tinha que ser extremamente cozida para ajudar na trituração. Esses dias, vendo o Rafael Braga e a mãe dele, com seus sorrisos tímidos e suas bocas murchas essas histórias todas vieram à tona, e eu fiquei pensando: será que não tem um/a dentista/a, filho/a de deus, para providenciar uma prótese dentária para o Rafael e sua mãe?

Quadro

Eu queria saber descrever com exatidão o quadro que agora eu vejo. A janela azul de tramela está aberta. Por ela vejo parte do morro, que embora ressequido, segue bonito. O silêncio habitual ressalta o som do motor da velha geladeira marrom. Os ímãs que foram de mamãe - uma pequena cruz, duas estrelinhas sorrindo, uma joaninha, uma arara verde, duas bonequinhas de crochê, agora convivem com os do menino: adesivos de Slipknot, The Who, Pink Floyd e Jimi Hendrix. O sabiá insiste chamando chuva. Scooby ressona no meio da cozinha. Fridinha está no sofá. Toda a beleza do mundo repousa nesta xícara de café. Sorvendo o amargo e o doce da vida, concilio minh'alma e estou pronta para voltar à capital.

Acalanto

O barulho da chave na porta é um acalanto quando se tem filho na rua.
- Cheguei, mãe.
- Que bom, filho. Suspirei aliviada.
- Mãe, quando eu tava virando a esquina, passou o carro da polícia. Eu, automaticamente, tirei o capuz, na hora.
É tão cruel isso. Um jovem negro correr risco de vida porque está de capuz ou de boné. São marcas da sua identidade juvenil, mas que os coloca em risco diante dos representantes do estado, que deveriam zelar por sua segurança. E olhem que tô falando de uma cidade de sete mil habitantes, isso contando os distritos. Você pode achar que estou exagerando, mas eu mesma quase fui presa por desacato, quando recebi a visita de um amigo que foi abordado de maneira truculenta porque a polícia recebeu uma ligação dizendo que tinha um elemento suspeito na cidade. Adivinha qual era a cor dele?

O hip hop é foda!

Cheguei ontem, por volta das quatro horas da tarde, e mal tive tempo de colocar as sacolas na mesa da varanda, os cachorros já pulavam em mim. Scooby cinco vezes maior do que Fridinha, leva sempre vantagem. Não conhecia o afeto dos bichos até me converter aos cachorros. O menino abracei depois, tendo que ficar nas pontas dos pés porque já passa de um metro e oitenta. Eles crescem sem pedir licença, alguém já escreveu.
Mãe, tenho tanta música pra mostrar. Muitos lançamentos essa semana, né filho? Não tive tempo de ouvir. Então, senta aqui, você precisa ouvir essa. E colocou "Finanças" do DV Tribo. Nos versos do Djonga e da Clarinha o rosto dele se iluminava. Depois colocou "Flow Lázaro Ramos", uma brincadeira do rapper Froid com a entrevista de Criolo, no Programa Espelho, sobre ascensão da classe C e a fala do rapper que virou meme: "Lázaro, alguém nos ajude, a entender"... Daí, veio o verso:
"Lázaro avisa pra Thaís
Que eu to muito feliz em ver os dois juntos
Desde Cobras e Lagartos, eu torci por vocês
Mano juro, que orgulho
Esquece isso, trampar pra Globo
Eu não te julgo, também me submeto
Pois todo preto, só quer ar fresco
Família perto e um lugar seguro
Preto, negro, crespo, praga
Faca nas track no estúdio do Batma'
Porque não podemos ligar pros home'
Olha o que fizeram com Rafa Braga
Desculpa eu, quando eu falei da prata
Tava cego, isso não muda nada
Ainda me olham do mesmo jeito
É muito pior do que eu imaginava"
Nessa hora, o menino fazia caras e bocas de aprovação, tipo, que verso foda, mãe! Tipo, representatividade importa. E eu, concordando: Sim, filho. Importa, muito! "Esú" tem que ouvir com calma, mãe, em silêncio, sozinho, não dá para desperdiçar música, é um momento de celebração, tá ligada? Sim, tô ligada, filho. O menino fechou a playlist com o lançamento do MC Well (que eu não conhecia). O rap "Muito bem feito" tem a participação do Djonga. Os versos fazem referência, entre outros, a Frantz Fanon (Frantz Fanon que o diga/tira essa máscara branca) e bell hooks (Os menor leu bell hooks/e foi minha a ideia, irmão). Nessa hora eu não aguente, pausei o vídeo, quebrei o clima e intervi: Meu filho, "Pele negra, máscara branca" é um livro do Fanon. Apresentei seminário no doutorado sobre ele. Ameacei buscar o livro na estante, ele me interrompeu, tipo, agora não, mãe. Continuei sentada, mas acrescentei: acabei de discutir bell hooks com os meus alunos. Você precisa ler, filho.

Bate no que você parir, desgraçado!

O barulho da comida na boca do filho a acalentava. 
- Que delícia comer sua comida, de novo, mãe! Você não faz ideia de como a da prisão é ruim.
- Eu caprichei, meu filho. É tão bom ter você em casa, novamente. O que fiz esse tempo todo foi só chorar. Tristeza demais filho da gente, que não é bandido, ser condenado como traficante. Enquanto observava o filho, ela pensava se tinha tomado a decisão correta quando decidiu sair de Aracajú e vir para a periferia da cidade grande. Mas fazer o que lá? Ela sem estudo, o que sabia fazer é revirar lixo, catando latinha e peças usadas. Aprendeu com a mãe e passou o ofício para o filho que vendia o material reciclado na Praça XV. Três gerações de catadores. Sentiu um nó na garganta ao lembrar da fome que não a deixava dormir e que se agravava a cada vez que sentia o cheiro do café sendo coado na casa da vizinha. Fome não é coisa nem pra bicho passar, muito menos pra gente, é de mexer com a bile de qualquer um. Mas, o filho não era bandido. Foi preso no meio de uma confusão de gente em 2013, sem nem saber o que era protesto, muito menos coquetel molotov. Quando lembrava que os gambé, filhos da puta, tinham batido no filho, ela recordava a mãe com o corpo pesado lhe protegendo dos socos do padrasto e gritando com a voz grave e rouca:
- Ocê vai bater no que ocê parir, desgraçado!

É canja

A mãe, ansiosa, esperava na porta do barraco, quando avistou o filho. Uma pequena cruz presa por um fio fino, pendia sobre a camiseta branca, provavelmente presente de algum religioso. Correu ao seu encontro apertando seu braço, mais fino do que quando foi preso. Se abraçaram e choraram, depois começaram a rir juntos. Ela notou dentes a menos na boca do filho. Deve ser a tuberculose que ele contraiu na cadeia, pensou. Ele entregou para a mãe um envelope pardo com os medicamentos que a médica do sanatório penal providenciou antes dele sair da prisão. 
- Que cheiro bom é esse, mãe?
- É canja de galinha. Comprei na oferta do mercadinho aqui, na Vila Cruzeiro. Ontem, consegui muitas latinhas. Você precisa ficar bom logo, para me ajudar a catar, viu?
O advogado desviou o olhar de mãe e filho, olhando pela janela do barraco e engoliu o choro.

Novo cantinho

Vou tentando imprimir minhas marcas no novo cantinho que é temporário. Até parece que temporário é meu definitivo. Na primeira noite aqui, os sons novos me assustavam. O que pensei ser uma barata voadora era a persiana batendo no vidro da janela. Estico o pescoço para ver o pôr do sol na paisagem que os prédios insistem em me roubar. A mudinha de boldo cheiroso que a capitã me deu no final da Festa está num copo com água. Já é possível ver uma raizinha brotando. Boldo cheiroso. Também conhecido como Tapete de Oxalá... Nome tão bonito... O Menino Jesus de Praga e o São Miguel Arcanjo do menino me fazem companhia. Estão ao lado de São Benedito, o mouro. Gosto muito dos santos pretos. Me falta uma Santa Efigênia, a santa etíope. Sou uma agnóstica muito fajuta.

Sá rainha

Hoje foi dia de almoçar em casa de Sá Rainha Conga. 
O sol à pino refletindo nos espelhinhos dos capacetes dos dançadores de Congo nos cegavam. 
Ou talvez foi a beleza que normalmente não enxergamos, branqueados demais que somos.
Nossa chegada foi anunciada pelo dono da casa com foguetório. 
Sá Rainha veio abrir o portão. 
Mesa farta servida pelas Anas.
Numa inversão ensinando humildade, Sá Rainha serviu os devotos.
Depois, agradecimentos, choro e despedida.
Até para o ano se Deus quiser.

Capricho define

Enquanto algumas fardas secam ao sol, outras estão sendo passadas. Na cozinha o almoço é feito em mutirão. Uns catam feijão, outros cortam abóbora e quiabo e há quem prepare a carne. Do peiji chegam vozes de alguém rezando. As crianças descansam deitadas à sombra, pois já, já será um sobe e desce de morro, tocando e cantando para buscar reis e rainhas. Almoço pronto é hora de rezar para comer. Tem pra todos que estão e pra quem mais chegar. Tudo é um grande movimento! 
Viva Santa Efigênia, a Santa pretinha, que hoje é o dia dela.

Viva os pretinhos do Rosário

A claridade do dia forçando a entrada pelas frestas da janela de madeira formou um desenho bonito no quarto escuro. A cidade era um silêncio só. Nem parecia a mesma da noite anterior. Fui dormir ao som dos tambores das dezessete guardas de congado da cidade. Dezessete. Ver os negros e negras ocupando a Praça XV de Novembro, onde por várias vezes já foram impedidos de tocar, tem um valor simbólico enorme. A Festa, que já foi proibida, atacada, segue resistindo há séculos através da fé e da força do povo negro.
Viva os pretinhos do Rosário!

Festa do Congo

A primeira vez que vim a Oliveira/MG, foi em 2011, em trabalho de campo. Depois, perdi a conta de quantas vezes refiz o trajeto vindo de BH, a bordo do ônibus da Saritur. Hoje, quando virei a esquina da Casa Azul de Pedrina e vi no varal esticado na lage, as fardas azuis e brancas, meu coração se encheu de alegria. Da chaminé saía uma fumacinha denunciando panelas no fogo; a sala feito capela estava decorada com enfeites novos; as caixas reformadas pendurados na parede; Sá Rainha Cleusa com sua voz mansa contando alegre: vou ser vovó; Nega, a bandeireira, às voltas com seus rosários; Ana Júlia já andando e falando; e William agora é rei e coordenador do Congadinho.
Que alegria participar dessa irmandade.
Viva os pretinhos do Rosário!
Viva os Santos negros!
Viva quem gosta da Festa!
E viva também quem não gosta!

Eu sou o outro

A gente tenta se proteger para não adoecer. Vai ver Grupo Corpo, se enfia na literatura e na poesia, faz curso de escrita, se cerca de gente legal, vai passear no cerrado com os irmãos, tem altas conversas com o filho, recebe o afeto dos bichos. Mas daí, quando você abre o computador, a primeira notícia que vê é: "140 tiros - foi assim que mataram os 10 no Morumbi". Uma das vítimas chegou a receber 33 tiros, outra 27, 13 projéteis nas costas. Lembrei do conto "Minieirinho" da Clarice Lispector:
"Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro."

Guarda-roupas

Você que cresceu tendo um guarda-roupas no quarto, me diz, como é? Hoje, uma amiga me enviou uma foto com a seguinte legenda: "meu primeiro guarda-roupas". Um armário pequeninho, branco, estilo Casas Bahia, uma meia porta, duas prateleiras e três gavetas. As coisinhas dela arrumadas, os cremes... Eu chorei! Chorei porque me vejo tanto na história dela. Os pais vieram do Vale do Jequitinhonha. Semestre passado ela se graduou na UFMG. Postou foto entre os pais, orgulhosos, exibindo o certificado. Só as deusas sabem o caminho que ela trilhou para chegar até aqui. Penso que, mais do que nunca, precisamos pensar nossos lugares de privilégios. Privilégio: do latim "privilegium" - "condição de vantagem atribuída à uma pessoa ou grupo em comparação aos demais. O privilégio garante ressalvas e imunidades que destacam o indivíduo perante outros, dando-lhe direitos especiais além dos comuns a todos." Minha amiga esperou 28 anos para ter seu primeiro guarda-roupas. 28 anos. Será pago em seis prestações. Ultimamente, como diz o rapper Delartovi na música "Tilelê", vejo gente escondendo privilégio para pagar de oprimido.
Faz isso, não. É muito feio. 

Seguimos resistindo

Eu conversava com Ícaro no intervalo do almoço, quando meu sobrinho enviou os áudios. Ícaro é meu amigo dos tempos de mestrado, em Viçosa. Em 2010, teve sua dissertação de mestrado sobre o quilombo de Santo Antônio dos Pinheiros Altos premiada pelo Ministério da Cultura. A mensagem do meu sobrinho dizia: "Tia, Delartovi lançou! Legal demais, viu?" E enviou seis áudios com as músicas do novo trabalho do rapper de Nova Lima. "Nuuuuu, loko!" Impactado, Joel procurava palavras para adjetivar o trabalho recém-lançado. Eu já tinha escutado. Escutei cedinho antes de sair para dar aulas, pois não consegui ficar acordada até o lançamento que aconteceu no começo da madrugada de terça-feira. O álbum chama-se Emmet Louis Till e é uma homenagem ao garoto que há 62 anos, no dia 28 de agosto de 1955, foi assassinado acusado de um crime que não cometeu. Era um menino negro de Chicago, de férias na cidade branca do Mississípi. Só o título já é motivo suficiente para ouvir o novo disco. Me despedi de Ícaro, não sem antes ele anotar o nome do rapper para ouvir depois. Segui para a aula de Mãe Conceição, no curso "Catar folhas: saberes e fazeres do povo de axé". Lá, ouvi a história do quilombo urbano "Manzo Nguzo Kaiango" e sua resistência ao longo dos anos a todo tipo de violência, inclusive do Estado. A comunidade já foi expulsa do seu território e teve seu espaço sagrado violado. Mas seguem lutando. Mãe Conceição lançará livro, em breve, contando a história do seu terreiro. Depois da aula, segui com Mariza para o evento, "A resistência das mulheres negras na produção literária", com as escritoras Cidinha da Silva, Jussara Santos e Madú Costa. Mesa, lindamente, mediada por Luana Tolentino. Etiene Martins, da livraria Bantu, estava lá com os livros da Mazza. Depois da mesa aconteceria o show "Anganga" da Juçara Marçal, mas não tinha mais ingresso. Ainda ficamos por ali um tempinho, circulando entre aqueles blacks, crespos e dreads lindos. Voltei pra casa ainda mais convencida que, apesar do mundo lá fora explodir em bombas e golpes de toda natureza, o povo preto segue resistindo, como sempre fez. 

Lendo mulheres

Depois que comecei a ler mulheres, ficou muito difícil ler homens. Depois que comecei a ler mulheres negras, ficou mais difícil ler mulheres brancas. Explico. É que cansei de não me sentir representada. Imagine o que é isso? Uma vida inteira sem se ver na TV, nas revistas, no livro didático, na literatura. Daí, o meu espanto quando leio Conceição Evaristo, Chimamanda, Futhi Ntshingila, Carolina de Jesus, Scholastique Mukasonga. Ver a mulher negra para além dos estereótipos, em toda sua complexidade, dá uma quentura no coração. Ontem, eu lia "Onde estaes felicidade", da Carolina. Ela conta que queria construir o seu barraco, mas não tinha dinheiro para comprar tábuas. Ela foi onde estavam construindo uma igreja e pediu. Como não tinha dinheiro para o transporte, ela mesma carregou a madeira, à noite, depois do trabalho. Fazia duas viagens com as tábuas na cabeça, da Avenida Brasil até o ponto final do Canindé. Ia dormir às duas horas da manhã. Ela mesma construiu o seu barracãozinho: um metro e meio por um metro e meio. Terminou num dia de domingo. A favela estava cheia de homens e nenhum a ajudou. Sobrou uma tábua de cerca de quarenta centímetros de largura, era a cama onde ela dormia, sem colchão. Eu lembrei quando mamãe começou a construir o banheiro aqui de casa. Ela começou e não deu conta de terminar. Na ápoca, éramos estudantes na UFMG, bolsistas da Fundação Universitária Mendes Pimentel e a grana era muito curta. Mamãe me chamou para ir com ela até a prefeitura de Baldim pedir ajuda para terminar o banheiro. Eu senti muita vergonha e não tive coragem. Ela foi sozinha. Mesmo com vergonha e sem meu apoio moral, Dona Dulce foi até lá e esperou, pacientemente, para falar com o prefeito. O pedido foi atendido. Naquele tempo existia uma política pública de construção de sanitários. Quando ela chegou estava radiante de alegria. Quando leio Carolina ou Scholastique falando de sua mãe Stefânia, lembro o tempo todo de Dona Dulce. Daí, fica difícil voltar para os livros de homens-brancos-classe-média com seus problemas existenciais. Personagens que não fazem comida, não lavam sua roupa, não limpam sua casa. Deve ter alguém que faz isso, mas nem na literatura essas pessoas aparecem.  Por falar nisso, é hora de começar o almoço.

Amizade

Ontem, conversando com o menino, falávamos como, às vezes, reencontramos amigxs de longa data e não conseguimos retomar a amizade. Mudamos nós, mudou o outro e alguma coisa se perdeu. Noutras vezes, a amizade é retomada do ponto onde parou, independente do tempo da distância. Há ainda, amigxs que querem que você conheça xs amigxs delx. Já fui apresentada a muitas pessoas que achavam que eu precisava conhecer. Algumas amizades rolaram; outras, não. Dia desses, um amigo me disse a respeito de uma amiga dele que queria muito que eu conhecesse: "Vocês são muito parecidas, ou vão se amar ou se odiar". Tem isso. Rola também de não poder misturar certas amizades. Você dá super conta da pessoa, mas seu/sua amigx, não. É preciso saber respeitar. Eu penso que dividir amizade, ou melhor, dividir não, multiplicar amizade, é um ato de generosidade sem tamanho. Porque se "amizade dada é amor", nesses tempos brutos, "qualquer amor já é um pouquinho de saúde, descanso na loucura".

Vitimismo

Há alguns anos, ouvi de um professor que eu não podia me vitimizar. Isso porque, eu havia assumido, em sala de aula, que tinha muita dificuldade em ler em inglês. E antes que perguntem, não, não sei francês, nem inglês, mesmo tendo um título de doutora. Sim, passei nas duas provas que fiz para seleção, mas daí, a ler com desenvoltura um texto acadêmico, são outros quinhentos. E não, eu não acho que é preciso saber inglês ou francês para escrever uma boa tese ou dissertação. 
Se não aprendi, não foi por que não quis. Foi porque, enquanto meus colegas podiam ficar na Universidade nas aulas de línguas do Cenex da Faculdade de Letras, ou já tinham morado fora num tempo que nem existia o Ciências sem Fronteiras, eu tinha que sair correndo, antes da aula terminar, e atravessar a cidade para trabalhar. Hoje, eu teria todos os argumentos para discutir com aquele professor, mas naquele dia, após a aula, eu só chorei. Fui chorando encontrar com o menino que chegava da escola e foi ele, do alto dos seus nove anos, que segurou minha mão e me consolou: “Mãe, olha onde você chegou!” E contou uma história que ouviu da professora sobre um rei que distribuiu sementes para seus súditos. E ainda acrescentou: “Sua semente vai germinar, mãe! Eu vi você plantando!” Quando vi uma criança fazendo um papel que deveria ser meu, engoli o choro, apertei a sua mão e subimos juntos a ladeira em direção à quitinete onde morávamos. Hoje, anos depois, depois de ler e ouvir muito sobre branquitude e privilégios, eu adoraria reviver aquela cena e argumentar com o professor tudo que não consegui dizer naquele dia

Eclipse

Estou há dias em eclipse. O fim de semana foi intenso com Baldim vivendo a tradicional "Festa de Agosto". As alvoradas com foguetório, toques de sinos e banda de música remexeram lembranças. A guarda de catopê e de congo descendo e subindo a minha rua indo buscar reis e rainhas. Da cozinha de casa ouvi a missa conga com os tambores, que por tantos anos foram proibidos, tocando dentro da igreja matriz. Na mesa do café ou na faxina da casa, reflexões profundas ao som de música negra, numa playlist maravilhosa do menino no papel de DJ. Duas aulas poderosíssimas com a capitã Pedrina, na disciplina "Catar folhas: saberes e fazeres do povo de axé", com salas cheias e alunxs de todas as áreas da Universidade, até da engenharia aeroespacial. Reunião do coletivo "Corisco", um espaço de resistência dentro da Universidade com pessoas dispostas a correr risco epistemológico e olhar para grupos que normalmente a Universidade não costuma olhar, buscando justamente um alargamento da base epistêmica. E ontem, um encontro potente no coletivo "Pretas Poetas" realizado por e para mulheres negras. Sim, eu sei que lá fora o mundo explode em bombas e em golpes de toda natureza, mas tem muita gente produzindo muita coisa bacana e isso vai reverberar de alguma forma. 

"Toda mãe é solteira"

Criar um filho sozinha não é fácil. Eu olho para o menino, hoje com 15 anos, e não acredito que chegamos até aqui. Lembro dele pequenininho e da aventura que era ir ao sacolão ou ao supermercado. Trazia as compras junto com ele no carrinho e era uma maratona subir 4 lances de escada. Primeiro eu subia com ele e o deixava no berço, depois descia correndo e subia com o carrinho e as compras, rezando para que, nesse intervalo de minutos, não acontecesse nada com ele. Para eu tomar banho, colocava ele no carrinho dentro do banheiro e à medida que ele ia crescendo ele ia aprendendo a se desvencilhar do cinto e se enfiava embaixo do chuveiro comigo, de roupa e tudo. Hoje, quando ele senta na mesa da cozinha e conversa comigo sobre feminismo, machismo, racismo, apropriação cultural, privilégios, branquitute, eu penso no tanto que valeu a pena cada minuto investido na criação dele. 

Nossos passos vêm de longe

Naquela manhã, quando o caminhão parou em frente à quitinete, eu não tinha certeza se fazia a escolha certa. Nossos trenzinhos - duas camas de solteiro, uma estante para os livros, um geladeira semi-nova comprada em 10 vezes no cartão de uma amiga, um fogão azul com a porta do forno estragada, espólio ainda do primeiro casamento, duas caixas com os brinquedos do menino, meus livros e umas poucas vasilhas, seguiram na frente. Dias depois, seguimos nós, de ônibus. O menino no colo, poltrona do corredor, que depois trocamos com a moça sentada na janela, porque o pequeno, no pássaro verde, começou a enjoar nas intermináveis curvas a caminho da zona da mata mineira. Fomos muitíssimo bem recebidos. Almenara nos esperava na rodoviária. Ela providenciou gás para o fogão e seu filho, Sávio, montou nossas camas e instalou o chuveiro. Depois, meu amigo Samuel veio ver se estávamos bem acomodados. Foram quatro anos na cidade. Lá, fizemos amigos, dei aulas, o menino aprendeu a nadar, a andar de bicicleta, a se equilibrar em cima do skate, a dormir na casa dos amiguinhos. Às vezes chorava e eu tinha que buscá-lo. Ao final de 4 anos, dissertação defendida, lá fomos nós, novamente, dessa vez para o Sul do país. Nossos trenzinhos tiveram que ficar, vendidos a preço de banana para um topa tudo. Chorei no apartamento vazio. Precisei desapegar e conseguimos mudar para Floripa com duas malas, apenas. Tá certo que os livros ficaram na casa da Mariza, onde estão até hoje, esperando nossa cantinho definitivo que tem demorado a chegar. Entulhando espaço na casa da minha irmã ficaram alguns trabalhos de arte do menino, como uma releitura do Miró que ainda sonho em colocar na moldura. Sob a guarda dela tem também, umas fotos, discos, fitas e uma colcha feita pela cooperativa de mulheres "Mãos talentosas" que misturam o crochê com um nanduti, um bordado de tradição guarani. A colcha foi presente da amiga, Ana Rocha, lá de São Felix, interior da Bahia. Como se desfazer de um negócio desses? 
Impossível! É um trabalho lindo de viver. Depois, lá fomos nós para o outro lado do atlântico. Fomos com duas malas e voltamos com três por conta dos livros adquiridos. Viemos direto para Baldim onde vim escrever a tese. E aqui estou, há 3 anos. Aqui, me sinto em casa. Uma casa que nem é só minha. Herança de mamãe, que fez muito sabão de coco para pagá-la, meu mesmo, por direito, é só 10% dela, uma tirinha de nada. Fico com a parte da janela azul com vista para o morro, onde os beija-flores, diariamente, me trazem poesia em troca de um pouco de água; e um cantinho no quintal onde as perpétuas resistem ao sol quente e ao tempo das secas. 
O aprendizado depois de 10 anos, 10 casas, 5 cidades e 2 países? As malas precisam estar sempre leves. Lembrei disso tudo esses dias, enquanto atualizava e documentava meu lattes para mais um concurso e achei o certificado da prova de inglês do mestrado. 
Nossos passos vêm de longe.

Patriazinha

Baldim me faz tão bem. Adoro esse silêncio que escuto agora, só quebrado pelo som dos passarinhos ou pelos avisos vindo do alto-falante da igreja. Hoje, o Zé da Bilinha anunciou a morte do Seo Vitor Machado. Preciso ir lá, dar um abraço na Dona Maria e na Betânia. Betânia foi uma das minhas melhores amigas na infância e a Dona Maria foi a professora que ensinou minha irmã a ler. Era em sua casa que assistíamos TV na década de 1970. O sofá ficava pequeno para tanta criança da rua e ela nos recebia a todos, com uma paciência de Jó. Hoje não acordei bem, com dor de cabeça e mal estar. É a lua nova que se aproxima, lua forte, e que sempre tem esse efeito sobre mim. Mais cedo, ouvi daqui a Missa Conga. É Festa de Agosto, festa do padroeiro. Nessa época mamãe comprava retalhos para fazer roupas novas para nós e juntávamos moedinhas durante meses para comprar bijuterias nas barracas dos camelôs que se espalhavam pela praça. Às 5 da manhã teve alvorada com foguetório, sinos tocando e banda de música. Tive que levantar e abrir a porta para o Scooby entrar e se refugiar embaixo da minha cama. Agora, ouço os tambores ao longe. Devem estar seguindo para o almoço coletivo, marca das festas populares. Todo mundo que chegar, come. Depois vão agradecer a mesa, porque congadeiro é assim, não come sem rezar; não sai sem agradecer. Isso é Minas. Minas em mim. Minas comigo.

Faxina

Tim Maia canta alto:"Ela partiu, partiu, e nunca mais voltou"... 
O menino pega o rodo e faz de microfone. 
Eu assumo o backing vocal e faço coro: 
- "Partiu... partiu... E nunca mais voltou, e nunca mais voltou"... 
Depois rola Marvin Gaye. 
- "Onde foi mesmo que você descobriu Marvin Gaye?" eu pergunto.
- "Ouvindo Racionais", ele responde.
Depois James Brown, Stevier Wonder, Bill Wilhters.
O menino desliza pelo chão molhado.
- "Mãe, como você consegue ficar parada? Música de preto é bom demais! Respeita os clássicos, caráleo!"
E eu lembro dele pequenininho cantando no banheiro: "I fell good. taram ram ram ram" e imitando os metais tirando sons da boca.
-"O almoço tá pronto!" Grito da cozinha"
Para acalmar ele coloca Cartola, "Deixe-me ir" e depois, Elza, "Mulher do fim do mundo" e Paulo César Pinheiro, " Capoeira de Besouro" e Sérgio Pererê, "Toque de Santa Maria".
- Para, menino! Que playlist foda!
- Detalhe, mãe: só preto!
É assim que se trabalha autoestima por aqui.
Sim, é um autoelogio!
Terminada a faxina, o quarto dele ficou parecendo de pousada, mas a comida esfriou no fogão...

Ensinamento

Lavando roupas, fazendo almoço e ensinando o menino a fazer faxina.
"Varre esse quarto direito, menino! Uma casa você começa varrendo por cima." E passo a vassoura pelo forro, ensinando...
O som que ecoa pela casa é "Delartovi", um rapper foda, de Nova Lima:
"Nuvens que passam entre o solo da terra
Terra que alcança Babilônia e cratera
Pés que me cercam nesse solos de guerra
Onde a paz é o sorriso negro em cada viela
Vivendo no preço de crer no amanhã
No dom da alegria, busco a mente sã
No meio do caminho, encontrei Iansã
Fugi da serpente dentro da maçã
Só força, força pra não soltar a corda
Não fazer feio na gincana, porque a derrota incomoda"
Às 3h tenho que pegar o ônibus em direção a BH.
Hoje, à noite, tem aula da capitã Pedrina na disciplina "Catar folhas" co curso de Saberes Tradicionais, na UFMG.
O povo preto segue resistindo!

16 de agosto

Hoje é dia de contrição.
De falar baixo, de pisar leve, de dizer pouco. 
Dia de acender uma vela em memória. 
Porque para lembrar e sermos lembrados é que fomos feitos. 
Há 7 anos Dona Dulce descansava seu fardo. 
A primeira feminista que conheci.
Nunca frequentou escola, não sabia ler nem escrever.
As letras, porque o mundo lia como ninguém.
Quis o destino que eu voltasse a habitar a casa dela e há 3 anos estou aqui, cuidando do seu espólio: uma janela azul de tramela, a grama que embora ressequida com a falta de chuvas segue firme no quintal, duas ou três xícaras lascadas, umas poucas panelas amassadas - justamente as que ela mais gostava. Uma samambaia chorona plantada em lata de doce e que ano após ano, resiste. Um vaso de lírio que está florido na porta da cozinha. Seus forrinhos nas tábuas na parede que sustentam suas vasilhas, não tão areadas como ela gostaria.
Desculpa, mãe!
É que é muito difícil manter a casa do mesmo jeitinho da Senhora. Não tem mais a sua cara, mas a sua presença, essa sim, continua firme.
Ontem o menino disse: "Nem recolhi as folhas e já tenho que rastelar o quintal novamente". É que com esse tempo seco e com o ventinho do mês de agosto o quintal não para limpo. Quer dizer, folha não é lixo, sempre insisti com a Senhora, lembra? Ouvir o menino dizer isso me encheu de alegria e soou para mim como a maior homenagem que eu poderia lhe render.
Mãe, João criou afeto por esse lugar. Outro dia ele me disse: "Eu quero que os meus filhos frequentem aqui. Eu quero dizer pra eles: essa é a casa que foi da bisavó de vocês."
Pronto!
Quer homenagem mais linda que essa?
Estamos aqui, mãe, zelando por sua memória. 

"Porque é pra isso que somos feitos: para lembrar e sermos lembrados."
Valeu por tudo, Dona Dulce!

Charlottesville

Quando tinha 9 anos o menino foi chamado de negro na escola. Morávamos em Florianópolis onde fui fazer o doutorado. Ele chegou da escola e demorou a me contar. Só falou depois do jantar, enquanto fazíamos a tarefa da escola. Sentado na bancada que dividia a sala da cozinha, na quitinete onde morávamos, sem levantar os olhos do caderno, ele falou pausadamente:
- Mãe, hoje na escola, um gurizinho me chamou de negro.
Por alguns segundos, que mais pareceram uma eternidade, eu fiquei muda. Ele então, completou:
- E eu respondi: Sou sim, com muito orgulho! 
Eu só consegui abraçá-lo e chorar. Uma coisa é você sofrer o racismo, outra muito diferente é quando seu filho sofre. Chorei porque não queria que ele sentisse essa dor que já senti tantas vezes e que ainda sinto. Mas também chorei de orgulho, porque desde sempre ele se reconhece como negro. Sempre conversamos sobre a história dos nossos ancestrais. Nossos passos vêm de longe, ensino pra ele. Só chegamos aqui, porque muitos resistiram antes de nós. Refaço com ele a nossa árvore genealógica até chegarmos na minha tararavó, Filomena, que foi escravizada. Antes dela não temos informações. E ontem revivi esse sentimento. Quando ele chegou na cozinha, sentou no banco embaixo da janela azul que dá para o morro e colocou pra tocar "Racistas otários" dos Racionais, eu percebi que vinha conversa séria. Ele então falou dos nazistas de Charlottesville. Já tivemos conversas difíceis. Falamos sobre tudo: aborto, maconha, álcool, camisinha, gravidez na adolescência, machismo, gênero. E racismo é tema recorrente nas nossas conversas. É que todos os dias temos um episódio de preconceito, discriminação e sempre tive a preocupação em fortalecer a sua autoestima para ele saber reagir quando sofrer racismo. Depois dos Racionais, ele colocou "Olho de tigre", do Djonga: 
"quem tem minha cor é ladrão
Quem tem a cor de Eric Clapton é cleptomaníaco?
(...)Sensação, sensacional
Fogo nos racistas"
Diz a letra. 
E o menino falou sobre a necessidade de não se confundir a reação do oprimido com a violência do opressor. Não falou com essas palavras, mas era isso o que ele queria dizer. Enquanto eu preparava o jantar fomos conversando sobre nazismo, neonazismo e sobre o ódio que saiu do armário nesses tempos brutos. O menino ainda lembrou da letra Ubuntu Fristaili, do Emicida e cantamos juntos: 
"Eles não vão entender o que são riscos
Os nossos livros de história foram os discos". 
Depois, ouvimos "Mufete: 
"Esquece o que o livro diz, ele mente
Ligue a pele preta a um riso contente". 
Falamos sobre como o que aconteceu em Charlottesville está pertinho de nós, muito mais do que gostaríamos. Educar um filho é muito difícil, educar filho negro, mais ainda. Sabe o que é seu filho trazer na pele o "defeito de cor"? Você ter que prepará-lo para uma abordagem policial que vai acontecer mais cedo ou mais tarde, porque ele é o típico suspeito? Que seu cabelo afro, seu boné, seu skate debaixo do braço faz dele um alvo em potencial? Ainda bem que temos as letras de rap para nos ajudar na construção dos argumentos e no fortalecimento da nossa autoestima. Encerramos a conversa ouvindo Racionais, "Capítulo 4, versículo 3", cuja introdução que já foi epígrafe de um trabalho escolar dele, diz:
"60 por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais
Já sofreram violência policial
A cada quatro pessoas mortas pela policia, três são negras
Nas universidades brasileiras
Apenas 2 por cento dos alunos são negros
A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente
Em São Paulo 
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente"
E terminei o dia, mais uma vez convencida: o hip hop é foda!

Playlist

Enquanto eu preparava o jantar, o menino selecionava a playlist. 
- Mãe, gostei de uma música que o Milton canta com uma moça.
- Moça? Que moça? Será a Elis?
E colocou Milton e Alaíde Costa cantando "Me deixa em paz". 
Alaíde Costa. Milton Nascimento."Me deixa em paz".
[E fez caras e bocas tipo "reação/análise". Tipo, que música foda! Tipo, que tiazinha é essa? Tipo, Milton Nascimento é 'pesado' demais!]
E se emocionou. O menino se emocionou ouvindo Alaíde Costa. Os olhos dele encheram-se de lágrimas.
- Mãe, me soa muito familiar. Eu cresci com você e papai ouvindo isso. Meu gosto musical tem muito de vocês dois.
 Alguma coisa nós acertamos com esse menino.

Outros saberes

Ontem, na aula inaugural da disciplina "Catar Folhas: saberes e fazeres do povo de Axé", enquanto degustava um delicioso caldo de feijão ofertado pela Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente na figura do Pai Ricardo; enquanto a lua [vocês viram a lua, ontem?] tentava nos observar pelas frestas das árvores do bosque da Escola de Música; enquanto via a capitã Pedrina dançando em louvor aos seus santos e ancestrais; enquanto ouvia os atabaques ecoando num espaço que é tantas vezes árido; enquanto via as pessoas presentes se abraçando; eu me lembrei da aula que tivemos pela manhã e do texto da bell hooks que começamos a discutir [Ensinando a transgredir] e da intimidade que tenho com meus alunos e alunas e das confissões que realizo em sala de aula e tive certeza do quanto precisamos aprender com os saberes do povo de Axé!