domingo, 24 de setembro de 2017

Charlottesville

Quando tinha 9 anos o menino foi chamado de negro na escola. Morávamos em Florianópolis onde fui fazer o doutorado. Ele chegou da escola e demorou a me contar. Só falou depois do jantar, enquanto fazíamos a tarefa da escola. Sentado na bancada que dividia a sala da cozinha, na quitinete onde morávamos, sem levantar os olhos do caderno, ele falou pausadamente:
- Mãe, hoje na escola, um gurizinho me chamou de negro.
Por alguns segundos, que mais pareceram uma eternidade, eu fiquei muda. Ele então, completou:
- E eu respondi: Sou sim, com muito orgulho! 
Eu só consegui abraçá-lo e chorar. Uma coisa é você sofrer o racismo, outra muito diferente é quando seu filho sofre. Chorei porque não queria que ele sentisse essa dor que já senti tantas vezes e que ainda sinto. Mas também chorei de orgulho, porque desde sempre ele se reconhece como negro. Sempre conversamos sobre a história dos nossos ancestrais. Nossos passos vêm de longe, ensino pra ele. Só chegamos aqui, porque muitos resistiram antes de nós. Refaço com ele a nossa árvore genealógica até chegarmos na minha tararavó, Filomena, que foi escravizada. Antes dela não temos informações. E ontem revivi esse sentimento. Quando ele chegou na cozinha, sentou no banco embaixo da janela azul que dá para o morro e colocou pra tocar "Racistas otários" dos Racionais, eu percebi que vinha conversa séria. Ele então falou dos nazistas de Charlottesville. Já tivemos conversas difíceis. Falamos sobre tudo: aborto, maconha, álcool, camisinha, gravidez na adolescência, machismo, gênero. E racismo é tema recorrente nas nossas conversas. É que todos os dias temos um episódio de preconceito, discriminação e sempre tive a preocupação em fortalecer a sua autoestima para ele saber reagir quando sofrer racismo. Depois dos Racionais, ele colocou "Olho de tigre", do Djonga: 
"quem tem minha cor é ladrão
Quem tem a cor de Eric Clapton é cleptomaníaco?
(...)Sensação, sensacional
Fogo nos racistas"
Diz a letra. 
E o menino falou sobre a necessidade de não se confundir a reação do oprimido com a violência do opressor. Não falou com essas palavras, mas era isso o que ele queria dizer. Enquanto eu preparava o jantar fomos conversando sobre nazismo, neonazismo e sobre o ódio que saiu do armário nesses tempos brutos. O menino ainda lembrou da letra Ubuntu Fristaili, do Emicida e cantamos juntos: 
"Eles não vão entender o que são riscos
Os nossos livros de história foram os discos". 
Depois, ouvimos "Mufete: 
"Esquece o que o livro diz, ele mente
Ligue a pele preta a um riso contente". 
Falamos sobre como o que aconteceu em Charlottesville está pertinho de nós, muito mais do que gostaríamos. Educar um filho é muito difícil, educar filho negro, mais ainda. Sabe o que é seu filho trazer na pele o "defeito de cor"? Você ter que prepará-lo para uma abordagem policial que vai acontecer mais cedo ou mais tarde, porque ele é o típico suspeito? Que seu cabelo afro, seu boné, seu skate debaixo do braço faz dele um alvo em potencial? Ainda bem que temos as letras de rap para nos ajudar na construção dos argumentos e no fortalecimento da nossa autoestima. Encerramos a conversa ouvindo Racionais, "Capítulo 4, versículo 3", cuja introdução que já foi epígrafe de um trabalho escolar dele, diz:
"60 por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais
Já sofreram violência policial
A cada quatro pessoas mortas pela policia, três são negras
Nas universidades brasileiras
Apenas 2 por cento dos alunos são negros
A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente
Em São Paulo 
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente"
E terminei o dia, mais uma vez convencida: o hip hop é foda!

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