sexta-feira, 27 de abril de 2018

"Quando a coisa fica preta, fica linda!"

Segunda-feira passada, dia 16 de abril, fui ouvir a escritora Ana Maria Gonçalves no Projeto Pretança no Centro Universitário UNA. Ana Maria falou sobre gênero, raça, narrativas e contemporaneidades. Entre outras coisas, a escritora falou sobre como estamos reativos. Em tempos de imagem/legenda, nossa reatividade resume-se a dar like e repostar conteúdos nas redes sociais, sem no entanto, elaborar qualquer tipo de reflexão. Como criar, se posicionar e ser propositivo num mundo que nos demanda tanta reação, foi o questionamento de Ana Maria. E foi com ele na cabeça que saí de lá. 
A conversa foi tão boa que decidimos, eu e uma amiga, seguirmos para o Teatro Espanca, uma espécie de quilombo urbano na região da Praça da Estação, onde a escritora seria homenageada. Um público majoritariamente negro a aguardava para o segundo evento da noite, dentro da Segunda Preta, projeto que busca empretecer as segundas-feiras da cena artística belorizontina.
Terminei o dia convencida que, apesar dos golpes que estamos sendo vítimas, diariamente, desde o afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff, existe uma revolução em curso, e que, na minha opinião, passa pelo povo negro. Hoje, o que acontece de mais interessante vem das periferias e da população preta.
Dias depois, assisti a uma entrevista com a filósofa Marilena Chauí, onde ela explicava que a sensação de impotência que nos acomete em períodos de crise, vêm justamente de um sentimento de perda individual, e que a capacidade de reversão disso, só virá se estivermos juntos com outros, num experiência de comunidade, de coletividade, de grupo, de movimento. Imediatamente fiz o link com a experiência da Segunda Preta, pensando como saí de lá me sentindo mais fortalecida. Lembrei, então, de uma fala da escritora Conceição Evaristo, de quem sou devota. Segundo ela, quando o sujeito escravizado fugia para o quilombo, ele nunca tinha certeza de sua liberdade, que podia ser perdida a qualquer momento. O que exigia sempre um exercício de resistência, persistência e resiliência. A isso, ela denomina de “práxis quilombola”.
Daí, a minha alegria ao ser convidada para colaborar com o Instituto Bambarê, uma organização que trabalha na divulgação, difusão e valorização da cultura afrobrasileira em suas variadas vertentes. Meu desejo é que esse espaço se transforme num quilombo, onde coletivamente possamos deixar de sermos apenas reativos, propagadores de imagens/legendas, mas capazes de pensarmos juntos alternativas para sairmos do buraco onde o país se enfiou e que parece não ter fundo. Que aprendamos com as nossas mais velhas, com todas e todas que vieram antes de nós. Como diz a mestra, Capitã Pedrina, precisamos continuar resistindo, como nosso povo faz, há mais de 500 anos. Segundo ela, que é uma mulher de palavra, se o pensamento é força viva, a palavra também o é. Que esta coluna seja um lugar de reflexão e de proposição.
Aquilombemo-nos!

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Carta ao Presidente Lula

Belo Horizonte, 10 de abril de 2018.
Querido Presidente Lula,
Sou Dalva, mulher do povo, mãe de filho. Sou a oitava de uma família de dez irmãos. Pais lavradores. Era assim que meu pai orgulhosamente se definia: um lavrador! Morreu jovem, de doença de chagas. Morreu sonhando com a reforma agrária e um pedacinho de chão que fosse seu. Minha mãe, como a sua, era analfabeta. Das letras, porque o mundo ela lia como ninguém. Meu pai trabalhou a vida toda como meeiro em terras de outros. Quando não conseguia terra para plantar era o empreendedorismo da mamãe que colocava comida na mesa. Vendíamos bolo e pastel numa mesinha na praça, durante as festas do padroeiro da cidade; merenda no grupo escolar e no ginásio; Q-suco gelado no campo nos dias de futebol. Lembra do Q-suco, Presidente? O gelo era fornecido pelos vizinhos, pois não tínhamos geladeira. Mamãe também fazia sabão artesanal do óleo do coco, não o da bahia, mas o de espinho, misturado com um tipo de soda cáustica artesanal, fabricada a partir de cinzas. "Quebrei muito coco para pagar essa casa", ela repetiu a vida toda, orgulhosa.Também vendíamos verduras que mamãe caprichosamente arrumava num balaio e saíamos oferecendo pela vizinhança. Essa atividade era mais difícil, pois a maioria das casas, a exemplo da nossa, também tinha horta. Eu fico irritadíssima quando ouço críticas à ascensão ao consumo da classe C, realizada no seu governo. Normalmente, quem faz essas críticas nunca precisou pedir gelo ao vizinho para tomar uma limonada gelada.
Fico pensando em como o bolsa família teria feito diferença em nossas vidas. Talvez mamãe não precisasse fazer, como fez muitas vezes, farofa de picão. O Senhor conhece picão, Presidente? Sim, é aquele mato. Pois, como a sua mãe, a minha também muitas vezes não teve o que dar de comer para os filhos. Se naquela época tivéssemos bolsa família, empreendedora do jeito que era, D. Dulce teria feito uma revolução com o dinheiro. Tenho certeza que ela seria como uma das milhares de mulheres, chefes de família, que devolveram o cartão, quando não precisavam mais do benefício.
Dos dez filhos, seis fizeram universidade pública, Presidente. Seis! Estatística interessante para filhos de trabalhadores rurais, não é? Muitas vezes indo a pé por não ter o dinheiro da passagem. Fico pensando como a nossa vida teria sido mais fácil se na época tivéssemos o Reuni, o Fies, o sistema de cotas, o minha casa minha vida, o pronatec... Mudamos para Belo Horizonte no começo da década de 1980, com a taxa de desemprego mais alta que a história do país já teve. Foram muitos sub-empregos, muita dificuldade. Chegamos a morar 8 pessoas em um barracão de 3 cômodos. Naquela época o Senhor já irritava a elite com as greves no ABC. Lembro quando o Senhor foi preso e quando saiu da prisão para acompanhar o enterro da sua mãe. A orfandade é pra sempre, não é presidente? Minha mãe também se foi, há 7 anos. Uma das poucas vezes que a vi no trato com o lápis foi para aprender a escrever seu nome para votar no Senhor, em 1989. Depois de terminada as obrigações de dona de casa, ela sentava na mesa da cozinha e ficava lá, com o lápis e o papel num desajeito de quem só tinha coordenação motora para o trato com a enxada. O lápis exigia uma coordenação motora fina que era demais pra ela. Mas mesmo assim, ela conseguiu aprender a escrever: L U L A. A partir do seu governo, Presidente, a minha vida e da minha família mudou radicalmente. Meus sobrinhos já têm uma vida diferente. Quase todos fizeram graduação. Uma sobrinha acabou de se formar num dos melhores cursos de Relações Internacionais do país, pelo FIES. Danadinha, ela! O Senhor precisa ver. Outra faz doutorado em agronomia. Tem uma que é estatística, outra fez letras e biblioteconomia. Tem também pedagoga, administradora; uma fazendo direito e outra psicologia, ambas pelo FIES. Não precisaram arrancar as folhas brancas e costurar para customizar novos cadernos ou levar o pouco material escolar na sacolinha reciclada de arroz ou açúcar, como fazíamos na infância. Muitos na minha família adquiriram carro e terminaram a construção da casa que durou décadas, graças à redução de impostos do seu governos e da presidenta Dilma. No seu governo eu voltei a estudar, fiz especialização, mestrado e doutorado. E com bolsa, Presidente. Também realizei um estágio doutoral "sanduíche" em Lisboa, onde morei por nove meses com meu filho, bancada pelo povo brasileiro, através do governo do PT. Vi, com meus próprios olhos, como o perfil do aluno brasileiro que fazia estágio no exterior mudara. Muitos estudantes negros e das classes populares. Conheci vários professores fazendo pós-doutorado. Quando terminei minha graduação em 1995, estudar fora do país era privilégio dos filhos da elite. Durante seu governo, Presidente, meu rosto foi um dos que fizeram os aeroportos parecerem rodoviária. Meu filho não teve que esperar mais de 30 anos para andar de avião. Muitas amigas e amigos meus passaram em concursos e estão lecionando nas universidades ou nos institutos federais e em cursos criados em seu governo. Por tudo isso, Presidente, sou muito agradecida ao Senhor. Saiba que tem muita gente aqui fora lutando e resistindo para que a injustiça que estão fazendo seja reparada. Espero, um dia, encontrá-lo pessoalmente para conversarmos sobre dona Dulce e dona Lindu, essas duas mulheres incríveis que nos fizeram ser quem somos. Força, aí! Se cuida!
Um grande abraço, Presidente Lula.
Dalva Maria Soares

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Caminhada

A caminhada agora não é mais no caminho pedregoso e poeirento da cidadezinha. Agora é no asfalto, aproveitando uma ciclovia carecendo de pintura. Pouco mais de dois meses e já conheço algumas coisas. Há dois quarteirões de casa tem um cachorro que vive na rua. Algum/a filho/a de Deus abastece uma vasilha com água e outra com ração e tem sempre um paninho pra ele dormir. Na firma, logo abaixo, tem um cachorro preto, que lá pelas 7 horas, está sempre próximo ao portão balançando o rabo na expectativa da chegada de alguém. Na loja de peças de carro usadas tem um gato, sempre na calçada. O ferro velho logo à frente é cheio de galinhas. Próximo à padaria uma casa enorme, térreo e primeiro andar, janelas e portas de madeira em estilo colonial. Pintada de verde e amarelo possui um cartaz enorme com os dizeres "escritório político", e o sobrenome do vereador e da irmã deputada. O imóvel está sempre fechado. Na garagem três carros e uma moto. Praticamente ao lado, três senhores em situação de rua, todos os dias, disputam espaço com os pombos. Quando passo, um deles está sempre de pé, arrumando suas tralhas num carrinho de supermercado e pronto pra sair e cuidar da vida. Todos os dias é assim...

Domingo

Ontem uma amiga me sugeriu a música de Sá e Guarabyra, "Meu lar é onde estão meus sapatos". Fui ouvir e um verso me chamou a atenção:
"A gente tem que saber
Ser dono do seu destino
Partir se tem que partir
Ficar se tem que ficar
Meu lar é onde estão meus sapatos
Um pouco em cada pedaço e lugar"
Hoje completam 11 domingos desde que a pickupzinha do Zéze trazendo nossos trenzinhos, veio ziguezagueando pelas curvas dos cerca de 100 km que agora me separam da minha patriazinha. Confesso que só agora parou de doer a distância da janela azul de tramela, meu portal para Nárnia. Repito pra mim mesma, quase que como um mantra, diariamente: "desapega, Dalva, desapega! Perder mais, mais rápido e com mais critério, lembra?". Agora há pouco lia um conto que falava de caduquice, que “caducar não é endoidar, não, é só esquecer o que d’ora em vante não tem mais serventia pra vida." É isso! Enquanto tiver serventia a gente vai lembrando. Daí, recordo da poesia de Adélia e me convenço que a memória e o sentimento são um país que posso sempre visitar e fecho os olhos e ouço novamente a risada de Dona Geralda a caminho da igreja, as vozes do coral cantando durante a missa e o sermão do padre. E estou novamente na minha patriazinha e "é domingo, é domingo, é domingo"...

Choque cultural

Meu primeiro choque cultural foi quando, aos 12 anos de idade, minha família mudou de uma cidadezinha de sete mil habitantes para BH. A cidade grande me assustava, morria de medo de me perder, não entendia os quarteirões fechados da Praça Sete, não sabia usar o telefone público. Foi em BH que a ficha da injustiça social caiu. Vi mendigos na rua pela primeira vez e percebi o quanto minha família era pobre. O segundo choque cultural foi quando entrei na universidade. Era começo da década de 1990, o muro de Berlim havia caído e discutia-se o fim da história. Influenciada pelos irmãos Souza (Betinho, Henfil e Mário) lá fui eu fazer Ciências Sociais. Lembro de uma greve de ônibus que teve, e como ia a pé para UFMG, fui assim mesmo. Achava que ia perder a caminhada, pois com greve nos transportes como é que as pessoas se deslocariam até lá? Quando cheguei e vi o estacionamento tomado de carros, alheios à greve, percebi o espaço elitista onde estava me metendo. Lembro do primeiro período, tendo que ler Pierre Bourdieu e não entendendo nada. Lembro de um trabalho que fui fazer na casa de uma colega de curso. Um menina que estava na segunda graduação, que já havia morado no Canadá e falava francês fluentemente. Essa colega às vezes zoava o meu sotaque da roça, eu que nem sabia que tinha, porque morando em BH há mais de 10 anos, achava que já dominava todos os códigos. Mas não adianta, pobre tem cara de pobre, jeito de pobre e alma de pobre. Já disseram por aí. Quando cheguei no apartamento da colega para discutirmos o texto tomei outro susto. Localizado na zona sul de BH, num prédio de um apartamento por andar, com cerca de, sei lá, 150/200m2. Era um apartamento de quatro quartos e ficamos discutindo o texto numa mesa enorme na sala de jantar. Chegamos a morar, eu e minha família, 8 pessoas em um barracão de três cômodos. Eu olhava pr'aquele apartamento enorme e me perguntava como podia abrigar somente uma pessoa? Por isso carrego uma simpatia enorme pelos movimentos de luta por moradia e, às vezes, tenho muita vontade de ocupar algumas casas vazias que vejo por aí. Minha colega morava sozinha e deve ter percebido a minha cara de espanto, pois ficou justificando de onde vinha a riqueza, que o apartamento era do pai que enriqueceu durante a ditadura na década de 1970, com aquela história que o bolo tinha que crescer pra depois dividir. Foi a primeira vez que ouvi isso. Depois estudaria sobre o período nas aulas de economia e aprenderia que o bolo cresceu sim, mais foi dividido somente com uma pequena parcela da população, aquela que ficava no topo da pirâmide, às custas do empobrecimento de quem estava na base. Nesses dias de aniversário do golpe militar de 1964, tenho lembrado dessas histórias. 

Tem como não amar?


O menino viajou no feriado. Ficamos sós, eu e Fridinha. Em troca de mensagens pelo whatsapp eu contei que na noite passada recebi convite de amizade de uma escritora que leio, admiro, em quem me inspiro. Eu já tinha contado a ele do impacto que provocou em mim o livro dela, que li meses atrás. Eu ficava atrás dele pela casa lendo trechos, emocionada com a história do protagonista, um moço que mais do que um sonho, tinha um desejo enorme de aprender a ler. Também contei que uma amiga minha usou um dos textos meus para discutir feminismo com mulheres do CRAS - Centro de Referência de Assistência Social, beneficiárias do bolsa família na zona da mata mineira. Contei também, da mensagem que recebi, dia desses, de uma senhora que eu admiro demais, que trabalha com reciclagem, dizendo que meus textos são muito importantes pra ela, pra eu não parar nunca de escrever.
Daí, que ele me manda o seguinte áudio:
- Nó, mãe! Que isso, hein, mãe? Cê tá movendo montanhas já com seus textos. Tô falando co'cê, mano. Cê tem que publicar um livro. Na alta, véi! Tá ligado? Eu canso de falar co'cê, mano. Mas é igual cê falô, é a mesma coisa do Djonga [rapper que ele adora] falar que curte meus beats. É desse jeito memo, tá ligado? Pô, parabéns, véi! Cê tem que investir nesses bagulho memo, tá ligado?

Me diz se tem como não amar?

Saudades de ter mãe

Hoje acordei com saudades de ter mãe. É que Sexta-feira da Paixão era dia de ir pra Baldim acompanhar mamãe na procissão e assistir aos autos da Paixão. Íamos de braços dados e os olhinhos dela brilhavam quando eu explicava cada um dos personagens. Ela se encantava com a sabidice da filha que leu toda a Bíblia. Levávamos os raminhos que enfeitavam o Senhor morto para queimar em dias de tempestade. O manjericão era plantado na horta e a casa ficava benzida o ano inteiro. Também era dia de comer uns fiapos salgados-toda-vida que ela fazia com batata e cebola pensando ser bacalhau.
Saudades de ter mãe...

O sol

Foi com mãe que aprendi que o tempo sara as feridas e que o sol tira todas as manchas. Por isso, especialmente as roupas brancas, precisam quarar. Lembro, quando criança, dela ensinando: enxaguar quatro vezes, colocar o anil na última água. Enquanto lavava os panos de prato e o uniforme do menino, lembrei de Conceição Evaristo e de sua mãe lavadeira:

"O olho do sol batia sobre as roupas estendidas no varal e mamãe sorria feliz. Gotículas de água aspergindo a minha vida-menina balançavam ao vento. Pequenas lágrimas dos lençóis. Pedrinhas azuis, pedaços de anil, fiapos de nuvens solitárias caídas do céu eram encontradas ao redor das bacias e tinas das lavagens de roupa. Tudo me causava uma comoção maior. A poesia me visitava e eu nem sabia..."

Conceição Evaristo, Poemas da recordação e outros movimentos.

A arte de perder

Toda vez que me vejo às voltas com a frustração de alguma perda, seja ela qual for, lembro sempre do poema da Elizabeth Bishop, "A arte de perder". Bishop ensina que não há nenhum mistério em perder, não é nada sério. Nos últimos meses eu perdi uma janela azul de tramela, perdi um pé de mamão nascido numa frincha na parede da cozinha, perdi as "mulatas na sala" nascidas no piso trincado da casa velha. Perdi os beija-flores que já tinham até sido batizados pelo menino: Van Gog e Monet. Bishop ensina que é preciso um exercício diário de desapego. Devemos começar com coisas simples: as chaves de casa, as horas gastas bestamente. Mas é preciso avançar, perder com mais rapidez e mais critério. Mês passado perdi um contrato de trabalho com um salário bacana. Ontem, perdi numa classificação para uma vaga de trabalho. Mas é preciso continuar. Perder nomes, lugares, viagens, cidades, pessoas... Às vezes é preciso perder até o ar. Já perdi mãe, pai, amores, amigos, e a vida continua. Começar com pequenas coisas e avançar com mais rapidez e critério. Não é nenhum mistério...

Naquela mesa

Não temos o hábito da mesa. Eu porque cresci sem ela, almoçando sentada no degrau da sala para a cozinha, com a lata de marmelada reciclada feito prato na mão, e um pedacinho extra de carne [torremo como mamãe e papai diziam] escondido debaixo do arroz, porque era só um pra cada. O menino também cresceu sem esse hábito, mesmo hoje tendo mesa em casa. Agora à pouco, com o prato na mão, sentou no sofá para almoçar. Ele ouvia Cartola [Bate outra vez] e me contava da pesquisa que fez, ontem à noite, sobre Lampião, porque segundo ele, queria conhecer sobre o Brasil profundo do começo do século XX. 

A vida é horrível

A polícia de Goiás matou 10 pessoas em menos de 24 horas. No Espírito Santos foram dois irmãos mortos com mais de 20 tiros cada um. O que se quer matar quando uma pessoa é alvejada com mais de 20 tiros? Lembro sempre do conto "Mineirinho" da Clarice: 

"Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro".

Mais de 20 tiros, cada...

Em Maricá foram cinco jovens com tiros na cabeça. Meninos do hip hop, produtores culturais da quebrada.

Os mesmos corpos matáveis de sempre: pobres, pretos, da periferia. No país que mata mais do que 150 países juntos (http://jc.ne10.uol.com.br/blogs/jcnasruas/2017/06/28/brasil-mata-mais-que-150-paises-juntos/).

Daí, lembrei da Maria Aparecida Bento e do conceito de "indignação narcísica", que é o sentimento de indignação com a violação dos direitos do outro, mas só quando essa violação afeta o grupo de pertença.

Quem se importa com o extermínio da juventude negra? Uma geração está sendo exterminada.

Minha amiga Luana fala do cuidado que precisamos ter para não adoecer. Carlandréia fala que não aguenta mais ver corpos negros tombando. Micheliny Verunschk fala do baixo astral que começa a tomar conta.

Lembro de Adélia e do poema "Bendito":

"Louvado seja Deus, meu senhor
Por que meu coração está cortado a lâmina
Mas sorrio no espelho ao que
À revelia de tudo se promete;
Por que sou desgraçado
como um homem tangido para a forca," (...)

Daí, o menino me chama para ver o céu estrelado, estende a rede na areazinha junto às plantas e separa a playlist dele. Tem Maneva, Lagum, mas também tem Tim Maia e Cassiano. Cassiano que ele conheceu ouvindo Racionais:
"O luar representa
Ouvindo Cassiano, há
Os gambé não guenta".
Ele quis saber quem era esse Cassiano que os gambé não guenta. Ouviu e se apaixonou.
Enquanto estávamos deitados na rede ouvindo música e olhando as estrelas, Fridinha pulou e ficou em cima da gente.
Voltei à Adélia:
"Louvado sejas, porque a vida é horrível
Porque mais é o tempo que eu passo
Recolhendo os despojos
- velho ao fim de uma gerra como uma cabra -
Mas limpo os olhos e o muco de meu nariz
Por um canteiro de grama.
Louvado sejas por que eu quero morrer, mas tenho medo
E insisto em esperar o prometido
Uma vez quando eu era menino
Abri a porta de noite
A horta estava branca de luar
E acreditei, sem nenhum sofrimento:
LOUVADO SEJAS!!!!"

A vida é horrível, são as horinha de descuido na companhia de Fridinha e do Menino que não me deixa adoecer.

Se cuidem!

Corações magoados

Quando eu ia visitar mamãe e ela estava nervosa por algum motivo, ela sempre dizia brava: "Não vou mexer com planta mais não. Vou deixar tudo morrer." Quando voltávamos, lá estava ela nos chamando pra mostrar um broto novo, uma florzinha que se abriu no quintal. Me vejo muitas vezes repetindo o comportamento dela. Digo pra mim mesma, "Dalva, não se apegue, essa moradia é temporária." Daí, me vejo novamente às voltas com uma mudinha surrupiada no trajeto da caminhada. Hoje foi dia de mexer na terra, dia de aumentar a minha coleção de corações magoado

Bastardos

Eu iniciei o doutorado em março de 2011, há 7 anos, portanto. E fico pensando em como tudo mudou nesse tempo. Li, agora à pouco, a carta que Marielle Franco escreveu para os "Bastardos da Puc" um coletivo de negros, pardos e bolsistas da Instituição (http://piaui.folha.uol.com.br/aos-bastardos-da-puc-com-carinho/). Logo no começo da carta ela adverte aos alunos das inúmeras dificuldades que encontrarão no mundo acadêmico, mas que eles não devem temer. Ela dá o exemplo de professores que dão textos e filmes sem tradução, e não tive como não lembrar do meu primeiro semestre no doutorado e do que passei, exatamente, por ter muita dificuldade em ler inglês. E quando me posicionei falando da minha dificuldade, fui chamada de vitimista pelo professor. Marielle, na carta aos "bastardos", diz que "apresentar para quem quer que seja a nossa realidade concreta não é ser vitimista". Lembro que na primeira reunião de estudantes para discutirmos a situação das bolsas, ouvi de uma colega que ali não era espaço para discussão de questões individuais. Respondi que o fato do meu filho, à época com 8 anos, ficar sozinho em casa enquanto eu estudava não era um problema individual, mas social. Isso foi há 7 anos. Hoje eu teria muito mais argumentos e mais consistentes para questionar o professor que me humilhou e a minha colega. Penso que alguma coisa se deslocou e os estudantes negros e pobres que estão, hoje, na universidade estão muito mais empoderados. Eu, como Marielle e tantas outras mulheres, vivia o drama de ser mãe solo e estudante. Quantas vezes o menino foi comigo pra universidade, juntou duas cadeiras e dormiu, enquanto eu assistia aula. Dia desses, numa reunião de um grupo de estudos que faço parte na UFMG, encontrei com uma amiga, também negra, que me deu um longo abraço apertado, enquanto dizia da alegria de me encontrar ali. Ela não precisou dizer mais nada, ficamos longos segundos acalentadas naquele abraço porque conhecemos o sentimento uma da outra e sabemos das dificuldades de adentrarmos espaços que historicamente nos têm sido negados. Como disse a Marielle na carta aos "Bastardos" a simples presença de nossos corpos negros na universidade já é um ato de resistência. Sigamos

Agora é tarde...

Hoje foi um dia difícil. Passei a manhã acompanhando o menino numa seleção para uma vaga de menor aprendiz. Me vi, novamente, em plena década de 1980, aos 14 anos, sem formação e sem experiência, andando sozinha para tirar documentos, morrendo de medo de me perder na cidade grande. A diferença é que agora eu acompanhava o menino. Ele é a sexta geração desde a velha Filomena, minha tataravó, negra escravizada, que foi até onde consegui chegar na minha genealogia. Seis gerações depois, um adolescente, a ponto de completar 16 anos, sonha com um emprego e não pode só se dedicar aos estudos, porque a mãe, mesmo tendo doutorado, ainda não consegue proporcionar a ele um monte de coisas que ele deseja e precisa. Durante a entrevista, a psicóloga perguntou: Qual a profissão de seu pai? Músico; e da sua mãe? Antropóloga. E você, que curso quer fazer? Cinema. Um menino que curte Cartola e que quer fazer Cinema, pleiteando vaga de empacotador de supermercado. Seis gerações depois e ainda não conseguimos vencer a pobreza. Enquanto aguardávamos a vez de sermos atendidos, eu lembrava do sociólogo francês Pierre Bourdieu e sua teoria da reprodução, e da frustração que foi na França, na década de 1960, a geração que teve acesso à educação, mas não melhorou economicamente. E o que você quer fazer com o salário que vai ganhar? A psicóloga perguntou. Bom, quero um 'boot' novo [ele sonha com um nike air max e sabe que eu não compraria nem se tivesse o dinheiro] e um bom microfone para gravar meus raps. Eu, que ontem fiz prova para um concurso onde cada candidato disputava com outros 1563 cada vaga disponível, disse a ele que precisamos combinar as respostas dessas entrevistas, que se ele quer a vaga precisa falar o que o outro quer ouvir. Que 'se pá', não vai poder falar com a psicóloga como se tivesse conversando com um colega na escola, 'tá ligado'? Ele disse que ficou tenso, pedindo às deusas que não me deixassem começar a problematizar as bobagens que a psicóloga falava. Depois da entrevista falei pra ele do meu incômodo, ao ver um menino sensível, antenado, consciente, pleiteando vaga para empacotador em supermercado. Não, mãe! Se eu arrumar uma vaga de empacotador vou dar o melhor de mim, porque essa grana é para investir nas coisas que eu desejo e sonho e eu sei que será temporário. A minha sorte é que o menino é bem humorado e, durante o almoço, fizemos piada e rimos das nossas pequenas tragédias. Ainda tivemos que comprar, às pressas, uma cola super bonder porque o nike que ele usava começou a descolar e ele tem o maior xodó com o tênis falsificado, igualzinho ao do ídolo Djonga, o rapper. Sentamos na praça e enquanto ele, com o boot na mão esperava a cola fazer efeito, eu lia poemas de Conceição Evaristo pra ele. Fico pensando se estou educando ele de forma correta e brinquei se não seria melhor aprendermos a fazer artesanato e ir vender arte na praia. Mas agora, aos 50 anos, como diz o Quintana, é tarde demais para ser reprovada. Ou como diz Adélia, não posso mais fazer curso de dança, escolher profissão, aprender a nadar como se deve.

Adoniran

Deitada na cama do menino eu o observava fazendo a tarefa de português, enquanto ouvíamos música. Não sei o que ele falou naquele dialeto das ruas que perguntei:
- Seu professor não corrige seu português, não?
- Por que ele corrigiria? Eu aprendi que a norma culta é só uma das inúmeras maneiras de se falar, e se eu falo e o outro entende não tem nada de errado no meu jeito de comunicar.
- Com quem você aprendeu isso, menino?
- Uai... Com você. Você tá criando um monstro, mãe. E por falar nisso, vamos ouvir Adoniran?
E colocou "Saudosa Maloca" pra rolar, fazendo caras e bocas de aprovação, tipo, que música foda, e completou:
- Mãe, olha a crítica social dessa letra. Por que a gente não aprende isso na escola?

Marielle, presente!

Ontem, eu atendi o meu desejo e fui para a Praça da Estaçao chorar pela Mariele. Por ela, por mim e por cada corpo negro tombado a cada 23 minutos neste país. Quando cheguei, Elisa Lucinda falava. A atriz e poeta está com um espetáculo em cartaz em BH e largou o ensaio para se juntar ao ato. As primeiras pessoas que encontrei foram a Cris e a Luísa. Cris é uma das poucas amigas brancas que eu sei que estará de braços dados comigo no front, se eu precisar. Ela é daquelas que escuta as irmãs pretas, que quer aprender e é uma aliada na luta contra o racismo. Não consegui segurar o choro quando as mulheres da Ocupação Carolina Maria de Jesus chegaram cantando: "companheira me ajude, que eu não posso andar só, eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor". Lembrei do Racionais: "O que todas tinham em comum? A roupa humilde, a pele escura e o rosto abatido pela vida dura". Me vi tanto nelas. Eu, uma sem casa até hoje. Também me emocionei quando ouvi a deputada Jô Moraes, de quem já fui eleitora tantas vezes falando. Jô, que lutou contra a ditadura, deve estar com mais de 70 anos e ainda segue falando em porta de fábrica com trabalhadores. Acho que foi minha amiga Carlandréia que falou que ninguém merece lutar duas vezes contra um golpe na mesma vida e que ela só descansa quando ouve o som da chave virando na porta e seu filho chegando em casa. Também foi emocionante quando a marcha dos professores estaduais, em greve, se juntou à multidão na Praça da Estação. A poeta Norma Lopes leu o poema que Michleliny Verunschk fez em homenagem à Mariele e que viralizou na internet. Espero que alguém tenha registrado porque foi lindo, forte e potente. Quando saímos em caminhada, me perdi da Cris e da Luísa, mas encontrei meu professor Juarez Dayrell, um dos responsáveis por eu ser professora. Encontrei também algumas ex-alunas, vi outras de longe. E, ao contornar a Praça, já encaminhando para a Praça Sete, encontrei, visivelmente emocionado, o pai do João com a esposa, a filha pré-adolescente e o filhinho caçula. Me juntei àquela família preta e abracei um por um. Ainda encontrei com a Glau e vi conhecidos aqui e ali. É tão triste saber que Mariele se foi. Uma mulher negra que abalou as estruturas racistas e excludentes, que ousou enfrentar forças poderosas e por isso foi silenciada. Quando cheguei em casa vi as manifestações que aconteceram em várias cidades e até fora do país, e me senti, novamente, em 2013. Tomara, as deusas permitam que esse movimento seja um reacender das ruas para barrar esse golpe racista e misógino que enfiou o país neste buraco que estamos.
Sigo em luto/a.
Mariele, presente!

Fridoquinha, meu amor!

Eu não conhecia o afeto dos cachorros até ir morar em Baldim. Aliás, tinha um pouco de preguiça, não gostava que se aproximassem muito de mim. Mas, os cerca de três anos e meio morando na casa de janela azul, me mudaram pra sempre. Primeiro foi Scooby. Três vezes rejeitado. Coitado! Quando cheguei em Baldim, ele não entrava dentro de casa. Com o tempo, só ficava perto de mim e foi minha companhia nos meses que escrevi a tese. Meu irmão diz que estraguei o cachorro, que ele manda em mim. E é verdade. Durante todo o tempo que morei lá, era meu despertador. Tirou toda a tinta da janela do quarto onde eu dormia e da porta da sala, onde raspava a pata me chamando para abrir o portão para o seu rolê matinal. Aliás, ele até aprendeu a abrir o portão sozinho. Depois veio Fridinha. No começo, o menino a chamava de "Nego Véio", até descobrirmos que era fêmea. Comecei colocando água e ração fora do portão, mas cachorrinha safa, de rua, sempre conseguia um jeito de se esconder em algum canto. Só percebíamos, quando sentíamos o mau cheiro. Até que um dia resolvemos dar um banho nela. Cheia de parasitas, dentes quebrados, parecendo velhinha. Custou a atender pelo novo nome: Frida, por causa das feridas em seu corpo. Depois do banho ela nunca mais foi embora. Mas, chegou grávida. Meu deus! Quando eu vi a barriguinha dela crescendo, me desesperei. Minha amiga, Ana Augusta, que é veterinária, me acalmou: Calma, Dalva! A gente arranja adoção. E a natureza se encarrega de tudo. No dia do parto eu ouvi um grunhidozinho vindo debaixo da cama do menino, onde ela gostava de ficar. Nasceram quatro filhotes, dois sobreviveram. Nalinha e Dandara. Nalinha, a cara da mãe, toda branca e peludinha. E Dandara, marronzinha, espevitada como a guerreira de quem roubamos o nome. Nalinha foi adotada por um sobrinho. Dandara ainda ficou conosco por oito meses. O dia que foi levada por uma amiga que me visitou, eu achei que ia ficar em depressão, tamanha a tristeza que senti. A imagem dela no banco de trás do carro, olhando pra mim, sem entender o que acontecia, me cortou o coração. Me consolava a ideia que ela tinha ascendido socialmente, ia morar na zona sul, teria acesso a dia de princesa em pet shop. Foi acolhida numa família que depois dela se converteu aos cachorros. Já são três por lá. Na mudança de Baldim para BH, Fridinha veio conosco. Agora somos uma família de três: eu, o menino e ela. Há algumas semanas foi, pela primeira vez, ao veterinário. Destoava dos cachorrinhos de madame que vimos por lá. Eu nunca vi uma cachorra combinar tanto com os donos, como ela combina conosco. Pura maloqueiragem. Teve seu dia de princesa, cortou as unhas, tosou o pelo, fez exames, recebeu medicamentos. Quando deixei ela lá para o banho e voltei para casa, meu coração cortou de dó com medo dela achar que eu a estava abandonando. Essa cachorrinha já sofreu demais nas ruas, é tensa, traumatizada. A deixei no começo da manhã, no começo da tarde, eu não aguentava de ansiedade, imaginando ela trancada naquela gaiola, se sentindo abandonada. Nem esperei o motorista trazer, fui eu mesma buscar. Voltei agarrada com ela. Pode parecer exagero, mas quando ela está dormindo, eu olho se está respirando. Como fazia com o menino quando ele era bebê. Esse afeto pelos bichos que eu não conhecia, é mesmo uma espécie de conversão. Alguma chavinha vira dentro de você, que passa a observar todos os cachorros do mundo. Como agnóstica fajuta que sou, até virei devota de São Francisco, comprei uma imagem dele e tenho pedido muito que cure o problema de pele que Fridinha tem, que sare as feridas em seu corpo tão pequeno, tão sofrido. Os traumas do tempo que viveu na rua a gente tenta amenizar com todo amor que sentimos por ela.
Os bichos humanizam a gente.
Certeza!

Enquadro

O que eu temia aconteceu. O menino tomou seu primeiro enquadro. Aconteceu há algumas semanas, mas ele só me contou hoje. E o pior, tomou um enquadro no hall de um prédio da zona sul, enquanto esperava a amiga que subiu ao apartamento. Um homem que se identificou como policial, apesar de estar à paisana, não mostrar documento e aparentar embriaguez, chegou pedindo a identidade dele, perguntando de maneira agressiva, se ele "tinha passagem" e afirmando que ele usava drogas. Meu corpo todo treme enquanto digito isso. Enquanto me contava, ele não conseguia evitar a indignação, falava alto, gesticulava e tinha os olhos marejados. Eu fiquei em choque. Nunca gostei que ele frequentasse a zona sul. "E foi num dia que eu estava bem vestido, mãe. Até cinto eu usava, porque tenho a preocupação em me arrumar mais quando vou nesses espaços". Detalhe: outros amigos estavam juntos, mas só ele foi abordado, afinal, não tinha cara de morador. "O que você está fazendo aqui?", foi questionado. E nem a intervenção do pai da amiga aplacou a ira do racista que tomou a identidade das mãos dele e ameaçou levá-lo a uma delegacia. Eu só consigo pensar na letra dos racionais: "racistas otários nos deixem em paz" e na letra do Djonga: "fogo nos racistas". Filho da puta, se eu estou por perto... Nesse dia 8, lembro da minha mãe que dizia sempre quando papai queria nos bater e ela com seu corpo nos protegia: "você vai bater no que você parir, desgraçado!

Sem medo e com liberdade

5h:45 o alarme tocou e, pasmem, eu consegui levantar. Aos poucos vou estabelecendo uma nova rotina. Prefiro caminhar pela manhã, de preferência antes do sol esquentar. Hoje, o céu nublado ajudou. Não tem mais o som dos pés sobre o cascalho, o caminho não é mais pedregoso, agora é no asfalto. Aproveito uma ciclovia carecendo de pintura e sigo a avenida, que há anos, quando mamãe mudou para BH, era um córrego. Depois as pessoas não entendem as enchentes. No caminho tem uma água que corre direto vindo de um lote vago, acredito ser uma nascente. Ainda é cedo, o trânsito está tranquilo. Adolescentes passam com uniformes de escola pública. Tento identificar de qual, mas não consigo ver a logo. Edi Rock canta no meu ouvido: "500 anos de Brasil e o Brasil aqui nada mudou". "A vida é desafio" é das minhas músicas preferidas dos Racionais. Tomo o cuidado de cantar baixo, mas não consigo evitar os gestos. Uma senhora negra que vem em minha direção ri do meu entusiasmo. Movimento a cabeça num cumprimento e ela responde com um bom dia. Meus passos são rápidos, no ritmo da batida do rap. Quando passo em frente ao Cemitério da Paz, é Brown que, coincidentemente, canta: "2 de Novembro era finados. Eu parei em frente ao São Luis do outro lado. E durante uma meia hora olhei um por um e o que todas as Senhoras tinham em comum? A roupa humilde, a pele escura, o rosto abatido pela vida dura, colocando flores sobre a sepultura, podia ser a nossa mãe", que loucura!" Lembro do menino me dizendo que se fosse professor de sociologia escutaria "Negro Drama" com os alunos. Analisaria cada verso com eles e depois pediria um texto. "Tá tudo lá", ele disse. Quando retorno, o público na avenida já mudou. Agora são crianças menores com cara de sono na porta da escola. O uniforme verde da rede municipal, alguns com a blusa laranja da escola integrada. O menino já foi da integrada, não gostou. Também acho que nenhuma criança merece ficar o dia todo na escola, não do jeito que é hoje. Apesar que, para muitas é isso, ou ficar sozinhas em casa. Brown canta: "Às vezes eu acho que todo preto como eu só quer um terreno no mato, só seu, sem luxo, descalço, nadar num riacho, sem fome, pegando as fruta no cacho." Uns versos antes, ele cantou: "Sempre quis um lugar gramado e limpo, assim verde como o mar, cercas brancas, uma seringueira com balança, disbicando pipa cercado de criança". Outro dia, ouvi o Emicida dizendo que quando pode comprar uma casa, pediu ao corretor uma igualzinha a essa cantada por Brown. Mas Ice Blue nos traz de volta para a realidade: How... how Brown, acorda sangue bom, aqui é Capão Redondo, "tru", não Pokemon, Zona Sul é invés, é estresse concentrado, um coração ferido por metro quadrado". Lembro da conversa, ontem, com a minha amiga de milianos. Falávamos sobre a descoberta das narrativas próximas da nossa realidade. De como depois dos livros das escritoras negras está difícil outras leituras. Ela me perguntou se isso vai passar. Eu não soube responder. Foram tantos anos de invisibilidade e silenciamento que agora queremos tirar o atraso, nas leituras e na vida. Por isso, eu continuo lendo as manas pretas, escrevendo meus textos e escutando Racionais. "Sem medo e com liberdade", como disse a minha amiga.