segunda-feira, 2 de abril de 2018

Sem medo e com liberdade

5h:45 o alarme tocou e, pasmem, eu consegui levantar. Aos poucos vou estabelecendo uma nova rotina. Prefiro caminhar pela manhã, de preferência antes do sol esquentar. Hoje, o céu nublado ajudou. Não tem mais o som dos pés sobre o cascalho, o caminho não é mais pedregoso, agora é no asfalto. Aproveito uma ciclovia carecendo de pintura e sigo a avenida, que há anos, quando mamãe mudou para BH, era um córrego. Depois as pessoas não entendem as enchentes. No caminho tem uma água que corre direto vindo de um lote vago, acredito ser uma nascente. Ainda é cedo, o trânsito está tranquilo. Adolescentes passam com uniformes de escola pública. Tento identificar de qual, mas não consigo ver a logo. Edi Rock canta no meu ouvido: "500 anos de Brasil e o Brasil aqui nada mudou". "A vida é desafio" é das minhas músicas preferidas dos Racionais. Tomo o cuidado de cantar baixo, mas não consigo evitar os gestos. Uma senhora negra que vem em minha direção ri do meu entusiasmo. Movimento a cabeça num cumprimento e ela responde com um bom dia. Meus passos são rápidos, no ritmo da batida do rap. Quando passo em frente ao Cemitério da Paz, é Brown que, coincidentemente, canta: "2 de Novembro era finados. Eu parei em frente ao São Luis do outro lado. E durante uma meia hora olhei um por um e o que todas as Senhoras tinham em comum? A roupa humilde, a pele escura, o rosto abatido pela vida dura, colocando flores sobre a sepultura, podia ser a nossa mãe", que loucura!" Lembro do menino me dizendo que se fosse professor de sociologia escutaria "Negro Drama" com os alunos. Analisaria cada verso com eles e depois pediria um texto. "Tá tudo lá", ele disse. Quando retorno, o público na avenida já mudou. Agora são crianças menores com cara de sono na porta da escola. O uniforme verde da rede municipal, alguns com a blusa laranja da escola integrada. O menino já foi da integrada, não gostou. Também acho que nenhuma criança merece ficar o dia todo na escola, não do jeito que é hoje. Apesar que, para muitas é isso, ou ficar sozinhas em casa. Brown canta: "Às vezes eu acho que todo preto como eu só quer um terreno no mato, só seu, sem luxo, descalço, nadar num riacho, sem fome, pegando as fruta no cacho." Uns versos antes, ele cantou: "Sempre quis um lugar gramado e limpo, assim verde como o mar, cercas brancas, uma seringueira com balança, disbicando pipa cercado de criança". Outro dia, ouvi o Emicida dizendo que quando pode comprar uma casa, pediu ao corretor uma igualzinha a essa cantada por Brown. Mas Ice Blue nos traz de volta para a realidade: How... how Brown, acorda sangue bom, aqui é Capão Redondo, "tru", não Pokemon, Zona Sul é invés, é estresse concentrado, um coração ferido por metro quadrado". Lembro da conversa, ontem, com a minha amiga de milianos. Falávamos sobre a descoberta das narrativas próximas da nossa realidade. De como depois dos livros das escritoras negras está difícil outras leituras. Ela me perguntou se isso vai passar. Eu não soube responder. Foram tantos anos de invisibilidade e silenciamento que agora queremos tirar o atraso, nas leituras e na vida. Por isso, eu continuo lendo as manas pretas, escrevendo meus textos e escutando Racionais. "Sem medo e com liberdade", como disse a minha amiga. 

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