segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Amizade é o quê?


Cabô natal? Ufa! Detesto essas bobajadas de datas, felicidade de hora marcada. Gosto mesmo das horinhas de descuido, onde a gente se diverte no improviso, sem estar esperando. O final de semana foi massa. Minha irmã, Luia, chegou de surpresa, na sexta. E com ela sempre vem junto as risadas. Bom humor é fundamental, né? O menino já disse: "Mãe, você só ri assim quando a tia Luia tá por perto." A melhor pessoa que existe pra você contar piada, ri de tudo. Zezé, apesar de ser dos irmãos mais velhos é o mais jovial. Quê, isso! O "tiozinho" não se cansa, topa qualquer parada. Se for para dar um rolê pelo cerrado, então...E o menino, cês já sabem, né? Dispensa comentários. Tava formado o bonde, o quarteto fantástico. Só diversão! Juntos rimos até nos momentos de estresse e fazemos piada das tragédias. Saímos por aí, escolhendo sítios, chácaras e fazendas para comprar, como se tivéssemos dinheiro pra isso. E não queremos qualquer casa, não! Só coisa fina! Ontem, escolhemos uma casinha branca de janelas azuis. Um mimo. Há uns 2 anos queríamos a fazenda onde nosso pai trabalhou de meeiro. Compraríamos só por vingança. Nossa amizade vem de longa data. Luia e Zezé sempre foram amigos, e eu, das mais novas (que isso, novinha? hahaha) sempre os observava. Foi com eles que aprendi a gostar de ler. Primeiro, os livros de bolso, de faroeste, que Zezé tinha uma caixa cheia deles. Depois, fui sofisticando o gosto com Luia me apresentando literatura clássica. Sou uma eterna devedora a ela, por isso. Afinal, foi ela quem me apresentou Guimarães Rosa. Não tem como pagar, né? Mas eu retribuo plugando ela nos contemporâneos. "Lê esse conto do Allan da Rosa, aqui, e me diz o que tu acha"."Toma aqui,"Defeito de Cor". "Chimamanda, você precisa ler." "Rufato, não leu?" E assim, seguimos... Se temos diferenças? Temos! Muitas! Mas são tantas as afinidades, que vou te falar, viu? Com eles, como diz o velho Guima, é aquela conversa de igual, o igual, desarmado. Tiramos prazer de tá próximo, só isto! Amizade é isso, não é?

domingo, 25 de dezembro de 2016

Feliz Natal

Não adianta, não tenho vocação para o natal. Em pleno 24 de dezembro, passei o dia cantando "Papai Noel filho da puta", da banda de punk rock, "Garotos Podres":
"Papai noel filho da puta
Rejeita os miseráveis
Eu quero matá-lo
Aquele porco capitalista"
Enquanto o menino ficava escandalizado, "quê isso, mãe!" eu morria de rir, ensaiando um coral com a minha irmã.
O dia todo eu avisei:
"Gente, tem que ir ao supermercado comprar alguma coisa". O menino retrucava:
"Uai, mas e o porco capitalista?"
"Mas não é para fazer ceia, é porque não temos nada para a janta.
"Eu como qualquer coisa. Tem ovo? Eu faço uma omelete";
"Eu também!"
"Então tá"! Desisti.
Mas foi o pernil e o lombo que a vizinha estava assando no seu forno a lenha começarem a cheirar que eles mudaram de ideia, rapidinho.
- "Vamos fazer um churrasco?"
- "Vamos!"
- "Isso! A gente divide. São 300 gramas de carne por pessoa. Somos 4. Compra meio quilo de cada e tá beleza." Meu irmão fazia as contas.
- "Eu não vou na rua comprar". Reclamei.
O menino, facinho, topou ir ao supermercado com a tia. Eu comecei a sonhar com o cardápio: um arroz branco, um vinagrete, aquela linguicinha... Eba! Vamos ter churrasco na lage.
Para minha decepção, menino e tia voltaram com as mãos abanando. Todos os açougues limpos. É muita incompetência junta. Credo! Começaram as acusações:
- "Não foi por falta de aviso. Onde já se viu, decidir fazer churrasco uma hora dessas? Aos 44 do segundo tempo? São quase 9 horas da noite"
- "Azar! Eu vou comer o ovo, já falei"!
Eu, como já é tradicional, aproveitando o pé de acerola carregadinho, fui fazer um suco para garantir meu lado. Enquanto preparava o suco, fazia uma outra versão para a música, "Então é natal", insuportável na voz da Simone:
"Então é natal, e o que você fez
Eu fui pra Baldim, passei fome outra vez."
E rimos, rimos muito da nossa incompetência para fazer grandes ceias.
Para salvar o rango, assei umas mini-pizzas que estavam na geladeira e pronto! De fome ninguém morre. O menino ainda completou com o chocotone que ganhou de natal e que vinha poupando, amarrando mixaria, sofrendo para dividir.
À noite, sentados no quintal, refletíamos sobre o porquê dessa incompetência com o natal. É que nunca cultivamos essa tradição. Não lembro de nenhuma ceia na infância. Lembro sim, do Seo Afonso, namorado da Rosa, filha da Dona Alzira, nossa vizinha, que sempre, nesta época, trazia de BH, brinquedos e balas para distribuir com as crianças da Rua do Campo. Foram várias as vezes que ele salvou nosso natal com bolas e bonecas. Lembro, também, da distribuição de kits com pedaços de queijo e goiabada e pão com salame distribuídos em uma das casas da praça. Perdi a conta de quantas vezes passei horas na fila para depois, sair alegre e serelepe com um daqueles kits na mão.
Não teve ceia, mas teve muita risada e ficamos livres de abraços frouxos e daqueles "feliz natal" da boca pra fora.
Cansada, fui deitar antes da meia noite, mas ainda ouvi os peregrinos de Santos Reis descendo a rua a caminho da igreja para louvar o presépio.

sábado, 24 de dezembro de 2016

Presépio


Hoje é dia de colocar o Menino Jesus na Lapinha, na manjedoura, com a mãe e o pai dele, mais o boizinho e o burrinho. 

Há dias, os Três Reis Magos (um branco, outro branco e o preto) vem se achegando, cada dia um pouquinho mais adiantado. Chegar, 
mesmo, eles só vão no dia 6 de janeiro.

Do cerrado veio a samambaia de barranco, o lírio do campo e o abacaxi - maçã para o presépio cheirar bonito.

Boi, leão, elefante, urso, pavão; bichos que nem têm nos Gerais foram desembrulhados do jornal e retirados da caixeta. Recolhidos durante anos, durante uma vida inteira, só enxergam a luz do dia, nessa época do ano.

Os panos foram endurecidos com grude, carvão e vidro moído, pintados com anil e tinta amarela , formando um verde bonito, manchado como os matos em rebroto no tempo das águas. Tocos e caixas foram forrados com eles para formar a gruta.

O arroz, plantado numa latinha cresceu no escuro para ficar com uma cor amarelada. O pratinho com água formou uma lagoa para os patinhos e os peixinhos. No alto da gruta, a estrela que guiará os Santos Reis.

Tudo pronto, agora é esperar a visita da Folia de Reis.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Cuba: hora de partir...


Acordei com o coração apertado, era hora de partir. Foram poucos dias na Ilha, mas foram dias muito intensos. Tudo deu certo, o Universo conspirou.

Cheguei na sacada do prédio para me despedir da vista. O movimento nas escadarias da Universidade de Havana em homenagem a Fidel, continuava. O sol despontava por sobre Havana Velha. Tudo seguia normal. Xs velhinhxs fazendo tai chi chuan na praça, uma multidão descendo e subindo dos taxis e ônibus a caminho da escola e do trabalho.

Tudo normal, exceto que eu voltaria pra casa, para o golpe, para a perda de direitos, para a minha realidade.

Aurélia chegou para se despedir e pegar as chaves do apartamento.
"-Volte com mais tempo e traga o menino. Ficou tanto ainda por conhecer."
"- Sim!" Prometi, com voz embargada.

Seo Rose já me esperava em seu Lada soviético. Uma tristeza tomou conta de mim, não queria partir...

Desta vez, Seo Rose estava mais conversado, eu é que não queria conversa. Fui fazendo o caminho do aeroporto José Martí e engolindo o choro. Lembrei do poema da Lya Luft:

"Não quero perder o momento belo.
Quero vivê-lo mais, com a intensidade que exige a vida:
desgarramento e fulguração.

Então me corto ao meio e me solto de mim:
a que se prende e a que voa,
a que vive e a que se inventa."

Cortada ao meio, me desprendi de mim e revivi o momento belo:  as crianças uniformizadas tendo aulas de educação física no meio da Plaza de las Armas; os jovens e velhos chorando a morte do Comandante; as relações horizontais entre professorxs, alunxs e funcionárioxs do Instituto Cubano de Antropologia; o altíssimo nível educacional e cultural da maioria dos cubanxs com quem conversei; as aulas de história e cidadania que recebi do jovem historiador Iván; as aulas de salsa que recebi de professorxs e estudantes na festa de encerramento da Conferência; o povo da santeria andando pelas ruas com seus trajes brancos e suas guias; a arquitetura colonial de Havana Velha, as casinhas arrumadas com uma estética muito peculiar; a fome de beleza do povo cubano, as letras fortes das raperas feministas cubanas;  a ausência de propagando  me obrigando a consumir.

Cuba não é para qualquer um não!

No aeroporto, me despedi tomando uma xícara de café cubita, o melhor café que já tomei.

Quando o avião deslizou pela pista, lembrei de um canto dos meus irmãos congadeiros: 

"Adeus, terra diferente
Meu coração tá doendo
Nossa senhora que me leve
Pelo mesmo caminho que viemos."

...

Se deus quiser, se deus quiser,
Até para o ano, se deus quiser!"



domingo, 18 de dezembro de 2016

Sétimo dia em Cuba: morre Fidel!

 Acordei cedo, tomei banho e enquanto tomava o café, liguei a TV. Um programa de entrevistas falava sobre Fidel e a revolução. Ri, pensando em como Fidel e revolução são temas diários nas conversas dxs cubanxs. Em seguida, Raul Castro entrou em cadeia nacional e anunciou a morte do irmão. Terminou sua fala, erguendo o braço com o punho fechado e falando com firmeza e emocionado: "Hasta la victoria siempre"! Bordão do Comandante. Tomei um susto e comecei a chorar. Não acreditei no que ouvia. Mudei de canal. Era verdade! 


Fui até o hotel "Habana Livre" me conectar à internet. Em todos os hotéis que entrei, ninguém nunca me abordou apesar da minha cara de "tia do cafezinho". Nenhum segurança veio atrás de mim. Sentava ao lado dos gringos naqueles sofás confortáveis, enquanto acessava a internet. A internet é um problema sério em Cuba. Problema para nós que vivemos 24 horas conectados, não para os cubanos. O sinal de wifi existe em locais públicos como praças e em hotéis, mas paga-se caro para ter acesso. 2 CUC a hora, cerca de 2 euros. Mas os cubanos acessam, não tanto quanto à gente. As praças ficam cheias de gente conectada, principalmente jovens. 

Queria me encontrar com Ariele, jornalista e antropóloga que conheci no congresso. Era meu último dia, queria me despedir e o único jeito de nos comunicarmos seria pela internet. Era torcer para ela estar on line. Quando entrei no facebook as notícias vindas do Brasil já davam conta da morte e xs amigxs falavam da coincidência d'eu estar em Cuba, justamente nesse dia. Queriam minhas impressões. Consegui falar com Ariele e combinamos de nos encontrarmos na "Plaza de la Revolución", às 13h. 

Retornei ao apartamento onde estava hospedada e na esquina já ouvi a movimentação em frente à "Universidade de Habana", onde Fidel estudou. Estudantes, professores e funcionários já se mobilizavam em homenagens. Me informei e dava para ir a pé até a praça encontrar com Ariele. 

No caminho um cubano puxou assunto. Citava vários países para descobrir de onde eu era: "Colômbia? Panamá? Peru?" "Não, brasilena", falei no meu portunhol. "Parece cubana", ele disse. Eu, me sentindo elogiada, fui conversando com ele e falando sobre a coincidência de estar em Cuba nesse dia. Ele me falou da revolução e de Fidel. No caminho encontramos com um senhor que lutou na revolução, amigo de Fidel. Fui apresentada a ele. O senhor abriu um sorriso quando ouviu que eu era brasileira, mas pediu desculpas e disse que não tinha condições de conversar comigo naquela hora. "Um outro dia", ele disse. Emocionado e cabisbaixo seguiu seu caminho com seus passos lentos de ancião. 
O Cubano, um músico rumbeiro me acompanhou até a "Plaza de la Revolución" e riu de mim, por não ter marcado um local exato para encontrar com Ariele, "A praça é enorme e cheia de turistas. Você não vai encontrá-la". Felizmente não foi difícil. Quando comentei com Ariele da movimentação na Universidade de Havana, jornalista que é, ela quis ir imediatamente para lá, pois queria entrevistar as pessoas. Pegamos um taxi cubano (os taxis são diferentes na Ilha. Os cubanos pagam em moeda local, bem barato e os turistas pagam em CUC, bem mais caro). Como Ariele fala bem o espanhol, sempre que estava com ela pegávamos taxis cubanos. É possível viver em Cuba gastando pouquíssimo! 

Quando chegamos, um casal de jovens descia as escadas da Universidade. Sugeri a Ariele que conversássemos com eles, pois ouvi, a vida inteira, que os mais jovens, em Cuba, não gostam do Regime, nem de Fidel e que sonham em abandonar a Ilha. O rapaz usava uma camiseta do Che Guevara e a menina tinha uma adesivo do Fidel colado na roupa. Na mão um cartaz quando da celebração de aniversário de Fidel. Ambos estavam emocionadíssimos. Disseram que Fidel era a Revolução. A menina falou que o seu sentimento era de orfandade. Tiramos uma foto com eles. Nos aproximamos de um senhor que, emocionadíssimo, disse que não tinha condições de conversar. Ficou ali, com um olhar perdido, enquanto ouvia as músicas que saíam dos altos falantes da Universidade. 

Depois subimos as escadas e me chamou a atenção uma jovem que trazia o nome de Fidel escrito no rosto. No braço, uma fitinha preta em sinal de luto. Melissa,18 anos, estudande de Direito, com uma consciência política de fazer inveja a muito marmanjo. Entre lágrimas ela falou de como era a relação de Fidel com a juventude, uma das prioridades do governo. Falou da bolsa que todo graduando recebe para estudar. TODO GRADUANDO! Falou das prioridades de investimento do Comandade, diante do 
pouco dinheiro: educação, saúde, tecnologia. Melissa disse que estava em uma festa, que foi interrompida assim que chegou a notícia da morte de Fidel. 

Conversamos ainda com uma cubana, tradutora, que vive há anos na Alemanha. Emocionada, ela falava da admiração por Fidel e do seu amor por Cuba. Depois fomos até a praça nos conectar e mandar notícias para o Brasil. Ariele ainda conversou com alguns senhores que estavam por ali. Somente um, disse que pra ele era indiferente, que estava se sentindo normal. Depois fomos até o apartamento onde eu estava hospedada tomar um café. O casal que me alugou o apartamento chegou em seguida. Ela, agrônoma, trabalha numa ONG com agricultura familiar. Já viajou por mais de 1 dezena de países a trabalho. Contou indignada de como viu crianças trabalhando na agricultura na Argentina e vendendo limões nos semáforos na cidade de Rosário. Disse que isso nunca seria visto em Cuba. Seu marido, que trazia no bolso um pen drive com as músicas do grupo de rap cubano "Los Orishas" de presente para o menino, chorou por várias vezes. Sua esposa também. Ficamos ali, os 4, naquela típica sala cubana chorando, ouvindo a manifestação que chegava da Universidade de Habana, onde Fidel, em suas próprias palavras, se tornou revolucionário. 

O que vi nas ruas de Cuba foi comoção. Todos esperavam a morte de Fidel, pois já estava com 90 anos e há 10 se afastara da presidência por problemas de saúde. Mas, o fato de não ter mais o Comandante, fisicamente, mexeu com a mairoria dxs cubanxs. Quando eu perguntava sobre Cuba ser uma didatura e Fidel um ditador, ouvi: "Que povo apoiaria um ditador"? A jovem Melissa que marcou o corpo com o nome do Comandante, me disse, entre lágrimas: "Defeitos tinha, erros cometeu, mas amávamos essa pessoa!".

sábado, 17 de dezembro de 2016

Sexto dia em Cuba

Terminada a Conferência, eu e Ariele aguardávamos em frente ao Instituto Cubano de Antropologia para irmos para a festa de encerramento, que seria num clube, nos arredores de Havana. Enquanto esperávamos, conversávamos com professorxs e estudantxs cubanxs, trocando contatos e planejando publicações.

Uma professora de estudos sociorreligiosos veio conversar comigo. Apesar d'eu falar em português e ela em espanhol, nos entendemos bem. Ela disse ter gostado da minha apresentação e ter compreendido tudo que falei. Disse que leu o meu trabalho nos anais do encontro e que enquanto lia, conseguia imaginar tudo que eu descrevia. Fiquei muito feliz. 

Planos para 2017: aprender a hablar español.

Depois, enquanto aguardávamos a partida do ônibus, eu e Ariele resolvemos comer uma pizza.  Acabamos nos distraindo com nossas conversas, sempre intermináveis. Quando nos demos conta, o pessoal já tinha partido e saímos apressadas pelas "calles" de Habana Vieja em direção a Plaza de las Palomas. Por sorte alguns participantes ainda aguardavam, pois o transporte seria feito em dois ônibus.

A praça estava cheia daqueles ônibus enormes de turistas com ar condicionado e achamos que iríamos em um deles. Para nossa surpresa, o ônibus verde que estacionou do outro lado da praça e que nos levaria, era um típico ônibus cubano: modesto, como quase tudo em Cuba. Apesar de velho, o ônibus era conservado, com vários de seus assentos remendados, mas de uma forma tão cuidadosa, que parecia um patchwork. Uma pena eu não ter tirado fotos.

O clube era um lugar belíssimo. Na entrada recebemos, grampeados, 4 fichinhas, uma de comida e três de cerveja. O salão estava arrumado com mesas grandes de madeiras e cadeiras de plástico. No palco, um som mecânico tocava música cubana.

Assim que sentamos, o professor Tomás, um estudioso das religiões afro-cubanas, veio sentar conosco, "as brasileñas". Sentou junto, um aluno seu, historiador, funcionário da Biblioteca Nacional de Havana. Também ficou conosco mais uma professora cubana e uma mexicana.

A presidente do Instituto Cubano de Antropologia deu as boas vindas e chamou um representante das delegações para falarem ao microfone. Sugeri que Ariele falasse em nome dxs brasileirxs. Ela começou com "primeiramente fora Temer!" e eu fiz coro, acompanhada pelo professor Tomás, uma das figuras mais interessantes do Congresso. 


Depois que a cerveja começou a fazer efeito, a pista de dança encheu e as pessoas não pararam mais de dançar.

A festa não tinha aquela fartura dos buffet a que estamos acostumados. Como tudo em Cuba, a comida era modesta. Cada participante teve direito a uma marmitinha com um pedaço de bolo, 2 sanduíches e uma coxa de frango, mais 3 latinhas de cerveja. Aliás, uma das coisas que mais ouvi dxs cubanxs, inclusive de um professor universitário que já rodou o mundo, é como nós, brasileiros, desperdiçamos comida.

Nem por isso a festa foi menos divertida. No começo eu fiquei meio tímida para dançar, mas os convites foram  tantos e os professores tão bons que não resisti e arrisquei uns passos de salsa. O salão acabou se transformando em um imenso baile black, no bom estilo "the get down", e eu me senti em casa, mais uma vez. Vendo toda a desenvoltura daqueles corpos que pareciam não se cansar, eu lembrei da frase de Nietzsche: "eu só acreditaria num deus que soubesse dançar".

Me chamou a atenção a forma como todos se relacionavam. Eu nunca tinha visto, num evento acadêmico, principalmente de antropologia, relações tão horizontais. Professores, acadêmicos e funcionários dançavam e se divertiam juntos.

Ali, junto de cubanxs, mexicans, colombianxs, costa riquenhxs, nicaraguensxs, panamenhxs, me senti latino americana, como nunca havia sentido.

Na hora de ir embora, Iván, o historiador da Biblioteca Nacional de Cuba, nos levou até o ponto de ônibus e só descansou depois de nos colocar dentro de um taxi. Antes, porém, nos deu aula sobre Cuba antes e depois da revolução.

Eu e minha amiga combinamos de nos encontrar no dia seguinte na Praça da Revolução para passarmos juntas o meu último dia na Ilha, já que no domingo, eu voltaria pra casa.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Quinto dia em Cuba

 Dia de apresentação!
Antes de descer para o Instituto, passei na pracinha, ao lado de casa, para acessar a internet e ver se o Brasil ainda estava de pé.  Uma passada de olhos, rápida, nos posts no facebook foi suficiente para  desaparecer a vontade de voltar ao Brasil. Medo, medo, medo do que está acontecendo e do que ainda pode acontecer. Evitei ler as notícias para não me sentir culpada pelas horinhas de descuido que estava vivendo.

Na praça, homens e mulheres idosos faziam tai chi chuan. Um adolescente passou com um skate debaixo do braço, o que aumentou ainda mais as saudades do menino. No facebook vi fotos dele na excursão com a escola.

Quando cheguei ao Instituto, minha amiga, Ariele, já se preparava para fazer a sua apresentação. Estava linda com um vestido colorido e arrumava duas bandeirinhas de Cuba sobre a mesa. Sua apresentação foi impecável, feita em espanhol, muito elogiado, por sinal. O trabalho era sobre os meios de comunicação no Brasil e ela falou sobre o lugar que eles ocuparam na consolidação do golpe. Falou ainda sobre o machismo e a misoginia que a Presidenta Dilma sofreu. A apresentação foi muito elogiada e eu fiquei orgulhosa da minha amiga.

Logo após a apresentação de Ariele, fui rapidamente para o meu grupo de trabalho sobre Antropologia das Religiões. Apesar de ter apresentado em português, consegui me fazer entender e recebi muitos comentários sobre o trabalho. Todo se impressionaram com a trajetória singular da Capitã Pedrina e fiz muitos contatos com professores interessados em trocar figurinhas sobre as religiões afro no Brasil.

Só conseguimos almoçar no final do dia. 

À noite fomos a um show de rap cubano. Antes, passamos na casa da minha amiga para deixar o computador. Não tem como andar pelas ruas de Havana e não fazer análise o tempo todo. 

No caminho havia uma movimentação diferente em uma das ruas. Uma bandeira de Cuba hasteada, música e várias pessoas em frente a uma das casas. Ariele, como sempre, muito extrovertida e com seu espanhol sempre elogiado se aproximou e perguntou o que era. Um rapaz jovem, de cerca de vinte e poucos anos nos explicou que ele era um delegado municipal que prestava contas sobre o seu mandato. Nos perguntou se conhecíamos o sistema de representação político de Cuba e quando questionamos aos moradores sobre o seu trabalho, eles disseram que sim, ele trabalhou muito pelo bairro.


Pegamos um táxi e fomos para o bairro Vedado onde aconteceria o show de rap em comemoração ao Dia Internacional de Combate a Violência Contra as Mulheres. Enquanto o espaço  não abria fomos caminhar pelo Malecón e sentir a brisa do mar. O show contou com várias "rapeiras" com suas rimas feministas. A cena Hip Hop em Cuba é forte. 

Como o cansaço era muito, não conseguimos ficar até o final. Decidimos ir embora, pois no dia seguinte era o último dia do Congresso e teria festa com direito a comida e música cubana e precisaríamos estar bem dispostas.


quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Quarto dia em Cuba

 Acordei cedo para ensaiar minha apresentação, pois não queria deixar tudo para a última hora. Já que apresentaria em português, precisava falar pausadamente, o que comprometeria os 15 minutos que teria. Cronometrei o tempo e consegui me organizar de modo a ficar dentro do previsto.

Tentei negociar com um taxista para reduzir o valor da corrida, mas dessa vez, não consegui. Fui de coco táxi, que me deixou bem longe do Instituto. Aproveitei para ir apreciando a arquitetura. Na Praça das Armas, várias turmas de crianças uniformizadas faziam aula de educação física,algumas jogavam futebol. Lindo de ver aquelas crianças uniformizadas, ocupando o espaço público, misturadas aos turistas.

Assisti à mesa sobre Antropologia das religiões com várias apresentações sobre práticas religiosas de matriz africana, em Cuba. E eu, que pensava que só existia Santeria. Não sabia de nada, inocente! Depois, fui para o grupo de trabalho que discutia Antropologia e processos educativos. Assisti a apresentação "Educação intercultural antirracista: uma proposta para a superação do docente universitário cubano". Gostei muito! Racismo em Cuba é um tema que me interessa. Anotei o contato do expositor para trocarmos  figurinhas depois.

À tarde fui dar um rolê com minha mais nova amiga brasileira. Entramos num hotel para acessar a internet. Apesar da cabeça estar a mil, os textões teriam que ficar para depois, pois o acesso era caro e complicado. Andamos pelas ruas de Havana Velha, em meio àquelas conversas sem fim. Pelas ruas muitas, mas muitas manicures com uma infinidade de esmaltes. As cubanas são muito vaidosas. As unhas estão  sempre pintadas, os cabelos arrumados, muitas bijuterias.

Almoçamos num paladar super charmoso uma comida estilo master chef. No restaurante um casal de brasileiros se aproximou e ficamos horas conversando sobre o impacto que Cuba provocava em nós.


Na ida pra casa paramos numa livraria. Na vitrine um livro infantil de Frei Beto. Passamos no Comitê Municipal do Partido Comunista de Havana Velha. Fotos de Fidel e Chê Guevara por toda parte.Depois  paramos para conversar com as funcionários de um museu. Na porta três cachorros identificados com crachás onde traziam o nome, a qual instituição pertenciam, que eram esterilizados e um pedido: "não me maltrates". Em vários locais vi cães com essa identificação, inclusive na Universidade de Havana. Quando descobriam que éramos brasileiras, todos falavam das novelas brasileiras, que há anos, passam em Cuba.

Era o quarto dia em Cuba e eu já sofria em ter que ir embora.

Na hora de dormir, fui ler "Recordações de amar em Cuba" do Oswaldo França Júnior e ele falava do encontro que teve com Fidel quando participou como jurado do prêmio do concurso literário Casa das Américas. França Júnior falava da intimidade de Fidel com Frei Beto. Fui dormir pensando em como os livros de Frei Beto foram importantes para despertar em mim admiração pela Ilha, pelo socialismo e um desejo de conhecer Cuba.

Dormi pensando na minha apresentação que aconteceria no dia seguinte.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Terceiro dia em Cuba

Às 07:20h, cheguei na sacada do apartamento e, Daniel, o coco taxista, já esperava na porta do prédio para me levar ao Instituto. Desta vez não tive fomos pelo Malecón, mas foi interessante ir em direção à Havana Velha por dentro do bairro Vedado. Fui observando a movimentação na cidade. Muitas, muitas crianças e adolescentes uniformizados à caminho da escola. As meninas com suas saias curtas e parte das coxas à mostra.Como são vaidosas as cubanas.

Cheguei cedo ao Instituto,  mas tive que ir a uma casa de câmbio trocar euros, pois a inscrição era em CUC's. Quando retornei, uma pequena fila havia se formado. Um rapaz, atrás de mim, perguntou se a fila era para a inscrição. Respondi que sim e ele, ao ouvir o meu sotaque perguntou se eu era brasileira.
- "Eu também - ele disse, e abandou o portunhol.
A moça, à minha frente, ouvindo nossa conversa também se apresentou:
-"Brasileiros?"
- "Sim!"
E viramos amigas de infância.
Que maravilha, poder falar em português e ser entendida.
O rapaz é professor de uma universidade da Bahia; e a moça, coincidentemente, havia defendido, recentemente, sua dissertação de mestrado no departamento de antropologia da UFSC.

A conferência de abertura foi sobre a sociedade masculina secreta afro-cubana, Abakuá, seguida da exibição de um documentário sobre o mesmo tema. Um dos primeiros trabalhos a serem apresentados foi de uma outra brasileira, coincidentemente, também minha colega da UFSC.

Um professor de Santiago de Cuba, interessado em nossos trabalhos, fez-nos o convite para que os publicássemos na revista da sua Universidade.

No final da tarde, saí com minha mais nova amiga para comprarmos uma "tarjeta" de acesso à internet.Depois, entramos em um hotel para nos conectarmos e mandamos notícias para casa. Muito bom poder entrar, sentar e não ser abordada por nenhum segurança.

Em seguida, andamos um pouco pelo centro de Havana Velha e almoçamos em um paladar super simpático, enquanto um cantor cubano embalava nosso almoço. Sentadas em uma sacada iluminada pela luz do pôr do sol que refletia nos casarões coloniais, comemos comida gostosa, ouvindo música cubana.

Depois, demos uma volta pelas ruas de Havana Velha e minha amiga, que acabara de me conhecer, me deu de presente uma bandeira de Cuba, linda! Recebi, comovida, o presente, pois sentimento a gente comunica, o corpo não consegue aprisionar e rolou, desde nossa primeira conversa, uma afinidade entre nós.

Me chamou a atenção ter no mesmo quarteirão, um hotel sofisticado, uma escola infantil e uma residência de pessoas comuns dividindo o mesmo espaço. Poder andar à noite na rua sem medo de ser assaltada ou sofrer algum tipo de violência também me impressionou. Também percebi o espanto dxs cubanxs quando falava a respeito do racismo no Brasil; que aqui, se morre  pela cor da pele e pelo CEP onde você mora, coisa difícil para um cubanx compreender.

Quando cheguei em casa, depois de conseguir negociar com o taxista (Viva! Mesmo em português), Aurélia quis saber como tinha sido o dia, se tinha dado tudo certo. Seu marido trazia nas mãos um pen driver com músicas do grupo de rap cubano "Los Orishas" para que eu levasse para o menino.

Fui dormir lembrando de Guimarães Rosa: "felicidade se acha é em horinhas de descuido"...



domingo, 11 de dezembro de 2016

Segundo dia em Cuba

Nada como um dia após o outro. E uma noite no meio, de preferência bem dormida. Apesar do barulho da rua, consegui dormir bem. A tarefa do dia era fazer a inscrição na Conferência. Não sei por que cargas d'água havia entendido que aconteceria na Universidade de Havana e estava toda contente, pois hospedada em frente, bastaria atravessar a rua. Foi o que fiz, logo depois do café. Atravessei a rua  e fui tentar descobrir onde aconteceriam as discussões. Apesar de não falar espanhol, consigo compreender bem, mas não conseguia me fazer entender, falando em português, ainda que pausadamente. Aproveitei para conhecer o prédio, belíssimo, por sinal, onde Fidel estudou e se fez revolucionário.

Com muito custo descobri que o evento aconteceria no Instituto Cubano de Antropologia, em Havana Velha. Decidi então, tentar me conectar à internet para acessar os dados da Conferência e descobrir, enfim, o endereço. Também precisava mandar notícias pra casa. Acostumados que somos a ficar conectados 24 horas, foi uma dificuldade perceber como a internet em Cuba é ruim. Fiquei lembrando o tanto que reclamo da Interset, a empresa que fornece internet em Baldim e decidi que nunca mais reclamaria do acesso, muito melhor do que o de Cuba.

Não foi tão fácil como pensei e resolvi pedir ajuda para Aurélia, a dona do apartamento que me hospedou. Ela havia deixado comigo um celular para que eu gritasse por socorro se precisasse de ajuda. Por telefone, nossa comunicação ficava ainda mais difícil e ela não compreendia nada do que eu dizia, mas veio encontrar comigo, no final da tarde, depois do trabalho.

Aurélia uma engenheira agrônoma empoderada,  veio rapidamente em meu socorro, descobriu o endereço, chamou o marido e me levou, de carro, até Havana Velha, com o cuidado de ir pelo Malecón. "Relaxe e aproveite a paisagem..." ela disse. A cada prédio, a cada construção, ela e o marido me davam uma aula de história e cultura.

É impossível andar por aqueles prédios históricos e não pensar nas relações coloniais. Não tem como não pensar na sociedade de consumo, não tem como não pensar nas prioridades na vida de uma pessoa, de um país, que com pouco dinheiro  precisou definir prioridades. O que Cuba escolheu priorizar? Educação e saúde. Não tem como não pensar na perversidade do embargo econômico.

O tema da revolução é recorrente nas conversas. Havana Velha está lotada de turistas, por todos os lados. Fiquei pensando o que seria Cuba sem a revolução. Com certeza seria um resort de luxo dos americanos e o povo cubano seria mão de obra barata.

Aurélia e o marido me levaram até a porta do Instituto, me ensinaram como chegar e ainda combinaram com um coco taxi, uma espécie de triciclo, que me buscasse no dia seguinte, em Vedado.

Na terça feira, primeiro dia do congresso, quando olhei pela sacada do apartamento, aquele veículo amarelo, meio carro, meio moto, em formato de ovo, já me aguardava na porta do prédio.

sábado, 10 de dezembro de 2016

Primeiro dia em Cuba



A viagem não foi boa. Como eu  embarcaria de madrugada, preferi ir mais cedo para o aeroporto do que sair muito tarde de casa. O menino e minha irmã se ofereceram para ficar comigo na avenida Antônio Carlos até o ônibus do aeroporto passar, mas eu disse que não precisava. Depois, me arrependi e senti  medo de ficar sozinha na avenida. O que salvou foi o movimento em frente à UFMG, por conta das atividades das ocupações dos estudantes. O ônibus passou por volta das  21:45h e um pouco antes das 23:00h eu já estava chegando em Confins. Na hora de descer, o trocador do ônibus me interpelou informando que ali era o embarque internacional. Eu disse que era ali mesmo que ia ficar e que ele, por favor, pegasse minha malinha que estava no bagageiro.

Eu e minha cara de quem não frequenta embarque internacional...

Tive que esperar bastante, já que o embarque era somente à 1:50h da manhã. Na fila do check in já foi possível ver a quantidade de passageiros com destino ao turismo de compras de Miami. Fiquei  sem entender aquela quantidade de malas imensas, já que iam comprar muito por lá. Me senti de outro planeta com minha malinha com 7 mudas de roupas, uma para cada dia da viagem.

O voo foi muito cansativo. Senti inveja dos passageiros da classe executiva com um pouco mais de espaço, travesseiros e cobertores. A sorte é que o ar condicionado não estava gelado e frio eu não passei, mas as cadeiras apertadas não eram muito diferentes do ônibus da Saritur que me leva toda semana para BH. Não sei se foi a expectativa da viagem, mas, uma dorzinha chata de cabeça que me acompanhava foi se agravando ao longo da madrugada e, mesmo tomando um dramim, não consegui dormir. Quando serviram a comida, apesar de estar com muita fome, não consegui comer e fiquei ali, na janelinha, suportando o mal estar, suando frio, sem querer me levantar para não incomodar os dois passageiros ao meu lado que dormiam profundamente. Quando chegamos no Panamá, nem o visual deslumbrante do canal à noite com as luzes dos navios foi suficiente para me animar.

Quando o avião da Copa Airlines pousou na Ilha, senti um alívio. Enfim, em solo! Mas, para completar fui barrada na imigração:
- "Cadê a carta de aceite do congresso?", "Cadê seu bilhete de volta?", "Cadê o trabalho que vai apresentar"?
- "Tudo bem moço, é só acessarmos a internet que lhe mostro tudo."

Mas cadê internet? Eu, que já não estava bem fisicamente, fiquei ainda pior, me sentindo com cara de uma infiltrada do Império. Quando enfim, consegui pegar minha mala, ela estava toda quebrada. Tudo bem, que já ganhei de segunda mão, mas tenho certeza que foram aquelas malas gigantes que foram para Miami que despengolaram a bichinha.

Enfim...

Mas foi avistar o Seo Rose, taxista que foi me buscar, com um cartaz enorme com meu nome que o mal estar passou! Ainda bem que eu combinei dele me buscar, porque eu não estava em condições físicas de ensinar endereço pra ninguém, ainda mais sem saber falar espanhol. Me acomodei no banco da frente do táxi, um Lada soviético conservadíssimo, e fui observando a paisagem, já que o taxista era de pouquíssimas palavras. A primeira imagem é mesmo a dos carros antigos e dos ônibus. Surpreende a conservação, o que me levou, inevitavelmente, a refletir sobre a nossa sociedade de consumo.

O primeiro outdoor que vi, já me emocionou. A clássica foto das crianças cubanas uniformizadas e os dizeres: "Educação para todos é direito de todo cubano". Engoli o choro.  Em seguida um outro outdoor comemorativo ao aniversário de Fidel com várias fotos dele, da juventude até  mais velho. Em seguida, mais um, dessa vez em alusão ao embargo. Uma forca representava o último "o" da palavra onde se lia: "Embargo, o genocídio mais longo da história". Mais à frente, um ginásio poliesportivo com vários campos de futebol, onde aconteciam jogos. Outro outdoor, agora com os medalhistas olímpicos reverenciados como heróis cubanos.

 Quando avistei a Universidade de Havana, percebi que tínhamos, afinal, chegado. Aurélia nos esperava na calçada, já ansiosa pela demora. Uma jovem senhora, baixinha, pouco mais velha que eu, que já foi pegando a mala da minha mão e me explicando tudo. O prédio estava sendo pintado pelos moradores. Ela me mostrou o apartamento, um quarto e sala com uma pequena cozinha e banheiro, mas muito arrumadinho, com geladeira, fogão, TV, microondas, sofá, duas camas de solteiro, 1 mesa com 4 cadeiras e um pequeno aparelho de som.

Aurélia buscou café em sua casa. O melhor café que já tomei na minha vida: cubita. Uma pena não ter trazido. Mas Cuba não é, definitivamente, lugar para turismo de compras. Seu marido chegou em seguida e ficamos conversando sobre a Revolução, Fidel, sobre o meu amor por Cuba, sobre os livros e escritores que despertaram em mim, este amor: Frei Beto, Fernando Morais, Oswaldo França Júnior e sobre as dezenas de amigxs que bancaram a minha viagem. Depois, saímos pelo bairro e Aurélia me mostrou onde comprar comida, acessar a internet, etc.  Eu expliquei que a grana era curta e que além do mais, não gosto de me comportar como turista, gosto de viver como o povo do lugar. Ela, então, me mostrou o restaurante onde o turista come, o restaurante onde o cubano come - mas não qualquer cubano- e os paladares, espécie de restaurantes que existem em casas particulares, onde todo cubano pode comprar. "É nesse mesmo que vou comer!", eu disse a ela. Ela me explicou também a conversão da moeda, que no caso são duas: o peso conversível (CUC) e a moeda nacional (MN - peso cubano). 1 CUC equivale a 25 MN. Levei vários dias para compreender essa conversão.

Fomos andando até o Malecón (beira mar havanesa). Impossível ver aqueles casarões antigos à beira mar e não pensar como seria se fosse em qualquer cidade litorânea no Brasil. Aqueles casarões estariam de pé? Aquele calçadão estaria ocupado por pessoas comuns, negras em sua maioria? Fiquei pensando, que muito provavelmente, seria demolidos e construídos torres gigantes de apartamentos e hotéis de luxo. Ver o povo ocupando o espaço público é uma imagem que sempre me comove.

Quando me despedi de Aurélia, resolvi descansar um pouco e tentar acertar o (con)fuso horário, já que com o horário de verão, Cuba está 3 horas a menos que no Brasil. É como se fosse uma viagem no tempo, literal e não só metaforicamente. Depois de um rápido cochilo fui atrás do endereço de uma amiga da minha comadre para entregar umas encomendas. Andei bastante, localizei a casa, mas não havia ninguém. Caminhar pelo bairro à noite foi muito interessante. Como era domingo, as ruas estava cheias de gente. Muitos jovens, muita paquera, beijo na boca, música, uma efervescência no ar. E, embora com ruas pouco iluminadas, a sensação de segurança era muito grande. Em momento algum me senti estrangeira. Pelo contrário, me senti em casa. Alguma vantagem tem que ter, parecer a tia do cafezinho. Estranhei o barulho vindo da rua. Localizado numa encruzilhada (Laroiê!), era grande o movimento de carros e ônibus que vinha da fora.

As impressões deste primeiro dia é que sim, existe pobreza em Cuba. Ou melhor, a riqueza de Cuba é outra. Existe uma pobreza material, mas as pessoas ostentam uma dignidade. Outra impressão que tive é que o povo cubano tem fome de beleza. Embora pequenos e antigos, os lugares por onde passei são sempre muito limpos. Existe um cuidado com a estética na forma como os móveis são dispostos, nos vasos de plantas.  Eu, que muitas vezes fui "acusada" de ter uma casa cubana, percebi que não era verdade. As casas cubanas são muito mais arrumadinhas que a minha.

Queria mandar notícias pra casa, que havia chegado bem, mas não consegui acesso à internet, tarefa que ficou para o dia seguinte.

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

26 de novembro de 2016. Que dia para estar em Cuba!



26 de novembro de 2016.
Morre Fidel Castro!
Que dia para estar em Cuba!
Era meu último dia na Ilha. Acordei cedo, tomei banho e enquanto tomava o café, liguei a TV. Um programa de entrevistas falava sobre Fidel e a revolução. Ri, pensando em como Fidel e revolução são temas diários nas conversas dxs cubanxs. Em seguida, Raul Castro entrou em cadeia nacional e anunciou a morte do irmão. Terminou sua fala, erguendo o braço com o punho fechado e falando com firmeza e emocionado: "Hasta la victoria siempre"! Bordão do Comandante. Tomei um susto e comecei a chorar. Não acreditei no que ouvia. Mudei de canal. Era verdade!
Fui até o hotel "Habana Livre" me conectar à internet. Em todos os hotéis que entrei, ninguém nunca me abordou apesar da minha cara de "tia do cafezinho". Nenhum segurança veio atrás de mim. Sentava ao lado dos gringos naqueles sofás confortáveis, enquanto acessava a internet. A internet é um problema sério em Cuba. Problema para nós que vivemos 24 horas conectados, não para os cubanos. O sinal de wifi existe em locais públicos como praças e em hotéis, mas paga-se caro para ter acesso. 2 CUC a hora, cerca de 2 euros. Mas os cubanos acessam, não tanto quanto à gente. As praças ficam cheias de gente conectada, principalmente jovens.
Queria me encontrar com Ariele, jornalista e antropóloga que conheci no congresso. Era meu último dia, queria me despedir e o único jeito de nos comunicarmos seria pela internet. Era torcer para ela estar on line. Quando entrei no facebook as notícias vindas do Brasil já davam conta da morte e xs amigxs falavam da coincidência d'eu estar em Cuba, justamente nesse dia. Queriam minhas impressões. Consegui falar com Ariele e combinamos de nos encontrarmos na "Plaza de la Revolución", às 13h.
Retornei ao apartamento onde estava hospedada e na esquina já ouvi a movimentação em frente à "Universidade de Habana", onde Fidel estudou. Estudantes, professores e funcionários já se mobilizavam em homenagens. Me informei e dava para ir a pé até a praça encontrar com Ariele. No caminho um cubano puxou assunto. Citava vários países para descobrir de onde eu era: "Colômbia? Panamá? Peru?" "Não, brasilena", falei no meu portunhol. "Parece cubana", ele disse. Eu, me sentindo elogiada, fui conversando com ele e falando sobre a coincidência de estar em Cuba nesse dia. Ele me falou da revolução e de Fidel. No caminho encontramos com um senhor que lutou na revolução, amigo de Fidel. Fui apresentada a ele. O senhor abriu um sorriso quando ouviu que eu era brasileira, mas pediu desculpas e disse que não tinha condições de conversar comigo naquela hora. "Um outro dia", ele disse. Emocionado e cabisbaixo seguiu seu caminho com seus passos lentos de ancião.
O Cubano, um músico rumbeiro me acompanhou até a "Plaza de la Revolución" e riu de mim, por não ter marcado um local exato para encontrar com Ariele, "A praça é enorme e cheia de turistas. Você não vai encontrá-la". Felizmente não foi difícil. Quando comentei com Ariele da movimentação na Universidade de Havana, jornalista que é, ela quis ir imediatamente para lá, pois queria entrevistar as pessoas. Pegamos um taxi cubano (os taxis são diferentes na Ilha. Os cubanos pagam em moeda local, bem barato e os turistas pagam em CUC, bem mais caro). Como Ariele fala bem o espanhol, sempre que estava com ela pegávamos taxis cubanos. É possível viver em Cuba gastando pouquíssimo!
Quando chegamos, um casal de jovens descia as escadas da Universidade. Sugeri a Ariele que conversássemos com eles, pois ouvi, a vida inteira, que os mais jovens, em Cuba, não gostam do Regime, nem de Fidel e que sonham em abandonar a Ilha. O rapaz usava uma camiseta do Che Guevara e a menina tinha uma adesivo do Fidel colado na roupa. Na mão um cartaz quando da celebração de aniversário de Fidel. Ambos estavam emocionadíssimos. Disseram que Fidel era a Revolução. A menina falou que o seu sentimento era de orfandade. Tiramos uma foto com eles. Nos aproximamos de um senhor que, emocionadíssimo, disse que não tinha condições de conversar. Ficou ali, com um olhar perdido, enquanto ouvia as músicas que saíam dos altos falantes da Universidade. Depois subimos as escadas e me chamou a atenção uma jovem que trazia o nome de Fidel escrito no rosto. No braço, uma fitinha preta em sinal de luto. Melissa,18 anos, estudande de Direito, com uma consciência política de fazer inveja a muito marmanjo. Entre lágrimas ela falou de como era a relação de Fidel com a juventude, uma das prioridades do governo. Falou da bolsa que todo graduando recebe para estudar. TODO GRADUANDO! Falou das prioridades de investimento do Comandade, diante do pouco dinheiro: educação, saúde, tecnologia. Melissa disse que estava em uma festa, que foi interrompida assim que chegou a notícia da morte de Fidel.
Conversamos ainda com uma cubana, tradutora, que vive há anos na Alemanha. Emocionada, ela falava da admiração por Fidel e do seu amor por Cuba. Depois fomos até a praça nos conectar e mandar notícias para o Brasil. Ariele ainda conversou com alguns senhores que estavam por ali. Somente um, disse que pra ele era indiferente, que estava se sentindo normal. Depois fomos até o apartamento onde eu estava hospedada tomar um café. O casal que me alugou o apartamento chegou em seguida. Ela, agrônoma, trabalha numa ONG com agricultura familiar. Já viajou por mais de 1 dezena de países a trabalho. Contou indignada de como viu crianças trabalhando na agricultura na Argentina e vendendo limões nos semáforos na cidade de Rosário. Disse que isso nunca seria visto em Cuba. Seu marido, que trazia no bolso um pen drive com as músicas do grupo de rap cubano "Los Orishas" de presente para o menino, chorou por várias vezes. Sua esposa também. Ficamos ali, os 4, naquela típica sala cubana chorando, ouvindo a manifestação que chegava da Universidade de Habana, onde Fidel, em suas próprias palavras, se tornou revolucionário.
O que vi nas ruas de Cuba foi comoção. Todos esperavam a morte de Fidel, pois já estava com 90 anos e há 10 se afastara da presidência por problemas de saúde. Mas, o fato de não ter mais o Comandante, fisicamente, mexeu com a mairoria dxs cubanxs. Quando eu perguntava sobre Cuba ser uma didatura e Fidel um ditador, ouvi: "Que povo apoiaria um ditador"? A jovem Melissa que marcou o corpo com o nome do Comandante, me disse, entre lágrimas: "Defeitos tinha, erros cometeu, mas amávamos essa pessoa!".

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

"O dia deu em chuvoso"...

Queria saber escrever bonito como minha amiga Regina Pereira. Ou que o espírito do poeta mineiro, Donizete Galvão, me visitasse ou ainda, que a entidade que sopra poemas no ouvido de Adélia em sua cozinha, em Divinópolis desse o ar da graça por aqui. Ou que me baixasse inspiração como a que visitava Cora Coralina enquanto ela fazia doce na velha casa da ponte.
Mas nada...
Criolo canta pra mim e me ajuda:
"E por mais que eu tente explicar, não consigo
tornar concreto o abstrato que só eu sinto
É como se eu ficasse aqui nesse cantinho
Vendo o mundo girar num erro abusivo"...
"Viver é muito perigoso".
Pai mata filho e pessoas invadem o Congresso exigindo intervenção militar. E eu aqui, tendo epifanias, enquanto olho pela janela azul de tramela.
A chuva deixa o morro branquinho.
O pé de mamão que cresce na janela da cozinha ensaia algumas florzinhas. Não sei se renderá frutos, mas suas folhas têm funcionado como uma espécie de toldo que impede que a chuva entre pela casa a dentro, molhando tudo. Com a janela aberta vejo a algazarra dos passarinhos. Pássaro gosta de chuva, já reparou? Agora a pouco uma andorinha estava quietinha no muro, no meio do maior aguão. Os periquitinhos verdes passando em bando, fazendo algazarra. E os pardais cantado um canto de contentamento, bem diferente do sabiá quando tá chamando chuva, no meio daquele calorão.
Nos galhos do pé de mamão, os pingos da chuva ficam suspensos naqueles caules ocos que usávamos para soprar bolinhas de sabão na infância.
Hoje, a fábrica de doces faz goiabada. O cheiro chegou até aqui e se juntou ao do capim cidreira estimulado pela chuva que cai sem parar, desde cedinho.
A cidade é um silêncio só.
Mentira!
Tem o som da chuva, que hoje veio encarreirada, me fazendo lembrar do poema de Adélia e me inspirando o cardápio do almoço: "chuchu novinho com angu e molho de ovos".
Bora separar o fubá.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Leia Clarice!

Odeio baratas, mas já aprendi a enfrentá-las. Clarice me ajudou. Foi lendo "A paixão segundo GH" que compreendi que a barata esfrega em minha cara a minha solidão. Sem ter a quem recorrer, sou obrigada a enfrentar o nojo, a repugnância e o terror e matar as minhas próprias baratas. Já consigo fazer isso bem.
Essa madrugada vivi outro terror. Dessa vez foi um rato, enorme. Acordei com um barulho na minha caixa de livros. Pressenti, é o rato. Ele já havia dado sinais de estar nos visitando. Fui em busca de ajuda no quarto do menino. Afinal, aquele 1,80m tem que servir para alguma coisa. Desafiado, ele veio em meu socorro. Eu decidida, informei:
- "Pra esse quarto eu não volto".
- "Tudo bem, mãe. Vamos fazer assim. Eu fecho a porta do seu quarto, você dorme no meu e amanhã Tio Zezé dá um jeito." Concordei. Só que, enquanto ele puxava a porta para fechá-la, o danado do rato resolveu sair do quarto. Em pânico, eu comecei a gritar. O menino se manteve firme por alguns segundos, até que o bicho foi em sua direção, passando em cima de seu pé. Aí, éramos dois na gritaria. Os dois, em cima da mesma cadeira, abraçados e gritando. Do outro lado do muro o vizinho acordou assustado.
- "Tá tudo bem aí?"
"Tá não!", respondi. "Temos aqui, um rato".
Do seu barraco no fundo do quintal, meu irmão acendeu a luz.
- "Que que aconteceu?"
- "Um rato, Zé!
- "Amanhã eu resolvo isso."
- "Como assim, amanhã?"
A saída foi me trancar no quarto do menino e dormi na mesma cama com ele. Abraçados, os dois.
Pela manhã fui ler Clarice, "Perdoando Deus", conto em que a personagem se vê às voltas com um rato morto, em Copacabana. "Minha vulnerabilidade de criatura", é isso que o rato me mostra, minha fragilidade. Como escreve Clarice, "o mundo também é rato", "o rato existe tanto quanto eu". O mundo não é só feito das florzinhas que enfeitam a minha janela, todas as manhãs. Tem ratos, também! E precisamos aprender a enfrentá-los. É certo que ele vai voltar, mas não estarei desprevenida. Que venha! Estarei pronta, esperando.
Quando você não tiver a resposta, quando nada fizer sentido, leia Clarice. Pra mim sempre dá certo.

Ninguém vai nos tombar, não!

Como o segundo turno em BH era entre o capeta e o demônio, justifiquei meu voto em Baldim, fui catar gabiroba no cerrado e depois fui almoçar com parte da família. Como a família é grande, qualquer almoçinho já junta pelo menos cinco irmãos. Uma das minhas irmãs mais velhas estava presente. E é sempre muito emocionante ouví-la. Ela é das pessoas mais amorosas e generosas que conheço, com um senso de justiça do tamanho do mundo. Foi das primeiras a sair do interior e vir para a capital. Hoje, ela me contou que não queria vir. Vinha ser empregada doméstica, embora esse não fosse seu desejo. Segundo ela, quando o ônibus entrou na avenida Pedro I, na região de Venda Nova, zona norte de BH, ela desceu e foi para casa de uma antiga vizinha nossa, que anos antes mudara para a periferia da capital. O "futuro patrão" a espera até hoje. Minha irmã sempre foi "meio rebelde", sempre assumiu seus desejos, sempre quis fazer a sua história. Casou e teve cinco filhxs. Durante muitos anos sua vida foi dedicada à família. Só realizou o desejo de entrar na Universidade [pública, numa época que não havia cotas o que teria facilitado um monte a nossa vida] depois dos 50 anos. Foi fazer biblioteconomia, não porque era seu desejo, mas porque não era um curso tão concorrido. Estudou com uma de suas filhas. Se formaram bibliotecárias. Dxs cinco filhxs, 4 formaram em universidades públicas. Uma se formou em estatística e trabalha na área; a caçula é agrônoma e está no doutorado; outra está cursando direito e a que estudou com a mãe, ainda fez uma segunda graduação e faz um trabalho lindo na biblioteca na cidade onde mora que já foi até premiado, em Brasília. Essa geração dos nossxs filhxs, apesar de todas as dificuldades, já tiveram uma vida bem melhor do que a nossa. Minha irmã lembrou da infância e de uma das inúmeras mudanças. Esta, feita num carro de boi emprestado, com os poucos pertences enrolados em trouxas, dividindo espaço de papai e mamãe com xs filhxs. Seguiam para as terras de um grande latifundiário da região, onde papai trabalharia como meeiro por alguns anos. Desse período os irmxs mais velhxs só têm lembranças de fartura. A terra era boa, papai plantava de tudo e conseguiu até comprar 2 cavalos. Mas um desentendimento pôs fim ao negócio e levou a família, seguindo outras, que já haviam migrado, para Baldim. Sem trabalho, papai se viu obrigado a vender os cavalos para comprar comida e começou um período muito difícil para a família. Ficamos ali, lembrando histórias e nos emocionando, enquanto refletíamos sobre a nossa conjuntura política. Um detalhe que me emocionou nessa minha irmã que não queria ser empregada doméstica, e que sempre teve a libido pelo conhecer, que adora estudar, que é uma das pessoas mais inteligentes que eu conheço, foi vê-la com aparelhos nos dentes, o que só foi possível depois dos 60 anos de idade e depois que todos os seus filhxs usaram. Isso tudo pra dizer que a pobreza é uma desgraça e que ficar livre dos efeitos dela leva, às vezes, mais de uma geração. Nunca foi fácil para a minha família. Vivemos um refresco por cerca de uma década durante o período do governo Lula/Dilma. Tenho clareza de que o que vem pela frente não será nada fácil, mas seguiremos na luta. 'Nois por nois', como sempre foi. Pra quem teve que recomeçar tantas vezes, não é agora que esta direita vai nos derrubar. Convivemos com ela desde que nossos ancestrais chegaram aqui, num navio negreiro. E não é agora que nós vamos deixar esses senhores de engenho nos tombar. Se não tombaram nem minha bisavó, Maria Rosa, que era negra cativa!

O tirano que habita em nós

- que mosca enorme! vou esmagar ela.
daí, parou, pensou um pouquinho e disse:
- engraçado, mãe... em relação a essa mosca eu sou como um deus. tenho poder de morte e de vida sobre ela.
- é assim para uma série de coisas, filho. veja o machismo, muitos homens sentem esse poder em relação às mulheres. no racismo, brancos sentem em relação a negros; a polícia, quando escolhe quem deve morrer e quem pode viver...
- pensando bem, não vou alimentar "meu tirano", não.
- isso mesmo. Guimarães Rosa diz que só de olharmos com cara feia no espelho, já é suficiente para ele aparecer.
- pode ir mosquinha, não vou fazer nada com você, não.

Quando a coisa fica preta, a coisa fica boa

O domingo amanheceu com uma chuvinha fina, daquelas de engrossar rio, de fazer o milho crescer. Hora de fazer a mochila e aproveitar o feriado para voltar pra casa tratar das 'criação'.
A semana foi intensa! A metrópole proporciona isso. Depois desses anos de reclusão em Baldim, estamos sedentos por programações culturais e BH não faz feio, não.
Na segunda teve sarau com participação de Renegado e Tom Nascimento, que fizeram toda a diferença. Quando a coisa fica preta, a coisa, realmente, fica boa.
Na terça, teve roda de conversa com a professora e ex-ministra Nilma Lino Gomes, a primeira mulher negra a ser reitora de uma universidade (Unilab). Nilma falou sobre racismo, relações raciais e educação para uma platéia que encheu a Ocupa FaE de cor. Que coisa linda, xs pretxs todxs querendo se expressar. Nilma falou que não tem como discutir racismo sem pensar os privilégios da branquitude. Falou também do movimento negro e dxs negrxs em movimento. Foi ovacionada! Representatividade importa! Nossxs corpos negros precisam estar ocupando a universidade, trazendo à tona a necessidade de refletirmos sobre os silêncios e a invisibilidade de certas pautas.
Na quarta, o menino se sentindo culpado porque mataria aula, veio de Baldim para participar da conversa com o músico Emicida e o escritor Ferréz. Fomos cedo para a porta do teatro pegar os ingressos e na fila já tínha um monte de mina preta discutindo empoderamento negro. Não resisti, me meti na conversa e viramos amigas de infância. O grande teatro do Sesc Palladium ficou lotado, mais uma vez, por uma platéia cheia de cor. Os corpos negros precisam ocupar também os espaços da cultura. Eram muitos blacks e turbantes empoderados colorindo aquele teatro. Foi lindo, foi forte, foi empoderador. Mais uma vez, as vozes desses sujeitos à margem queriam ser ouvidas. Não sem razão, o tema da conversa era literatura periférica. Os sujeitos periféricos na condição não mais de objeto de estudo, mas como protagonistas, como sujeitos de uma produção artísitica importante, não só simbolicamente, como também histórica e politicamente. Foram 3 horas de conversa que só foi interrompida porque o teatro precisava ser fechado. Não dá mais para ignorar a produção cultural e artísitica desses sujeitos periféricos. A periferia sendo discutida não como lugar de pobreza e violência, mas como um espaço de potência cultural.
Na quinta, o menino viveu pela primeira vez a experiência de um corte de cabelo num salão afro. Todx pretrx precisa viver isso. Eu fiquei ali, sentada admirando aquele black lindo que era elogiado por cada pretx que entrava no salão. O menino sempre alimentou o desejo de deixar o cabelo crescer, mas só consegui, há cerca de 2 anos, depois de participar de um evento onde havia muitos blacks, dreads e crespos lindos. Depois daquele evento ele nunca mais cortou o cabelo e foi a primeira vez que aparou as pontinhas. Mesmo assim, só se sentiu seguro com um cabelereiro negro. Enquanto ficava ali, assistindo, ouvi muitas histórias sobre bailes, festas, enquadros de polícia e racismo.
Na sexta, a aula foi na rua. Levei o menino para a manifestação contra a Pec 241/55. Foi lindo ver seu olho brilhando ao observar xs meninxs do Levante da Juventude. Estudante se juntando com professor e funcionários da educação para manifestarem sua indignação contra a Pec da Morte. Tenho certeza que o que ele aprendeu numa manhã na manifestação, ele não aprenderia em um semestre de escola.
Ontem, foi a vez de uma conversa com congadeiros e fazedores de cultura da região metropolitana de BH. Novamente, foi lindo, foi forte, foi empoderador. A conversa girou em torno da necessidade de nossos corpos negros ocuparem também, os espaços da política.
A cada dia que passa, eu fico mais convencida que, independente ou a contrapelo do golpe, existe uma revolução em curso, e que embora invisibilizada segue a pleno vapor e passa pelxs estudantes, pelas mulheres, pelos LGBT's e pelo povo preto.

O deus das casas

Desde que o menino nasceu já passamos por 10 casas. Vivendo, novamente, o movimento da mudança, acordei pensando nas casas por onde já passamos. Lembrei do poema, "As Casas", da Sophia de Mello Breyner:
"Há sempre um deus fantástico nas Casas
Em que eu vivo, e em volta dos meus passos
Eu sinto os grandes anjos cujas asas
Contêm todo o vento dos espaços."
Fiquei pensando que, conosco, tem sido assim. Um deus das casas tem nos acompanhado e nos protegido.
Quando, em janeiro de 2007, eu e o menino entramos no ônibus da Pássaro Verde em direção à Viçosa, nem imaginávamos o que estava por vir. Na rodoviária nos esperava Almenara, a mãe do meu amigo Samuel, uma das almas mais generosas que conheci. Nossos "caquinhos" já estavam nos esperando em um apartamento térreo no prédio do Navio. Almenara esperou, pacientemente, eu começar a receber a bolsa para pagar o aluguel. Samuel pagou a mudança: um fogão, uma geladeira, um sofá, um estante, duas camas de solteiro, os brinquedos do menino, na época com 4 anos. Meu fogão azul, sem a porta do forno era motivo de piada: "sua casa é muito cubana, Dalva!" ouvi várias vezes. A geladeira era novinha, comprada no cartão da minha amiga Waleska, em 10 vezes no Carrefour. Depois, aumentamos nossas posses comprando de segunda mão, em um dos vários "topa-tudo" de Viçosa, 2 bicicletas, uma mesa com 4 cadeiras e uma escrivaninha. Nossa cortina era uma colcha de retalhos, presente da mamãe. João foi para uma boa escola, eu passei no concurso para professora substituta do Departamento de Educação da UFV e vivíamos felizes nossa vidinha mais ou menos. Quando terminei o mestrado, ainda fiquei por lá mais 1 ano, dando aulas em uma faculdade particular. Nossa casinha era nosso refúgio. Parecia realmente que era protegida por longas asas de anjos, tamanha a felicidade que sentimos morando ali.
Em 2010, passei na seleção do doutorado em Antropologia Social na Ufsc. Não tinha como levar minha casa cubana. Financeiramente não compensava. Foi um exercício de desapego difícil de fazer. Para quem acostumou a viver com pouco, os objetos têm um valor simbólico muito grande. Tivemos que abrir mão de tudo, que foi vendido para um topa-tudo. Doeu no coração me desfazer das bicicletas e da estante dos livros, que era linda. Mas, em janeiro de 2011, desembarcamos em Florianópolis: eu, o menino e duas malas. Mais uma vez tivemos que montar nossa casa, dessa vez com o cuidado de ser só o essencial, já que a mudança não era definitiva. Moramos por alguns meses na praia do Campeche e de novo, foi uma casa como a do poema de Sophia, protegida por asas de anjos.
Em 2013, voltamos a BH para o meu trabalho de campo. Dessa vez minha irmã nos hospedou e no final do ano fomos para Lisboa, para o estágio doutoral sanduíche. Lisboa foi uma das experiências mais incríveis que vivemos. Fomos morar no bairro da Graça, bairro onde morou a poeta Sophia Breyner. Descobri a rua onde ela morou e a sua casa com vista para o Tejo, na Travessa das Mônicas. O miradouro que leva seu nome era um dos nossos lugares preferidos para apreciar o pôr do sol. De novo, fomos protegidos pelo Deus das Casas.
De Lisboa, viemos direto para Baldim. Dessa vez a casa era a da minha infância. A expectativa era apenas alguns meses e já estamos aqui há quase 2 anos e meio. Foi uma experiência incrível morar aqui. A cidade grande nos exige uma urgência que não existe por aqui. Aqui, o tempo é outro, é percebido de outra forma. Aqui, redescobri o silêncio. Já consigo reconhecer os cantos de alguns pássaros. Vou tomando conhecimento das horas pelo sino da igreja, pela ave-maria no alto falante na hora do angelus. As notas de falecimento e utilidade pública lidas pelo Zé da Bilinha, a risada da Dona Geralda a caminho da missa.
Mas, de novo, está chegando a hora de partir e eu já estou sentindo um aperto no coração. Esse tempo aqui me convenceu ainda mais de como precisamos de pouco para viver. Acumulamos muitos nesses anos, mas nossas conquistas não cabem em malas. Vou sentir falta da minha clarabóia, a janela azul de tramela, a visão do morro, novamente verdinho por causa das chuvas, a algazarra dos periquitos nos pés de manga e jabuticaba.
Só espero que a próxima moradia tenha vista. Como disse a poeta Sophia de Melo Breyner quando se mudou da cidade do Porto para o bairro da Graça, em Lisboa. A mãe insistia que uma casa precisa ser boa por dentro e Sophia retrucava que não, que uma casa precisa ter vista, que ela precisava chegar até a janela.
E o meu desejo é só esse: uma casa com vista. Eu também preciso chegar à janela.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Viva los estudiantes!

Cerca de 60 e poucos dias e 2016 acaba. Ufa! Que ano! O ano que finalizei e defendi a tese e isso não é pouca coisa não. Assim como olho para o menino no alto dos seus 1,80m e não acredito que chegamos até aqui, eu olho para o meu diploma de doutorado, meio incrédula, que consegui escrever a tese. Daqui, da mesa da cozinha. A mesma mesa que sentava com mamãe para o café e ouvia suas histórias. Muitas delas repetidas várias vezes e que hoje, dá um arrependimento por não ter registrado.
Cozinha é lugar místico, lugar de alquimia. É aqui que mato a minha fome, do corpo e da alma. Os livros e cadernos estão espalhados pelas cadeiras, bancos e mesa. Dia desses, o moço do supermercado veio trazer a compra e ficamos num impasse, sem lugar para colocar as compras: "aqui tem gente que gosta de ler, hein?" Ele disse procurando um espaço entre os livros para colocar os pacotes.
Há cerca de 2 anos e meio o menino me pergunta, quase que diariamente:"depois daqui, a gente vai pra onde, mãe?" E, parece que agora, finalmente, eu tenho uma resposta, voltar para a metrópole. Há meses já ensaio essa volta. Dia desses, voltando do Palácio das Artes fiquei pensando na diferença dos medos que sinto em uma e outra cidade. Na capital tenho medo de assalto, de assédio. Se bem que assédio tem em qualquer lugar. Aqui mesmo, tive que mudar o trajeto da caminhada para não me aborrecer. Aqui, tenho medo de aranha que sempre aparece quando cortamos a grama do quintal; tenho medo de cobra quando embrenho no mato para tirar retrato; tenho medo das vacas. Dia desses corri de uma que veio em minha direção, depois que passei embaixo da cerca para fotografar o pôr do sol. Os medos são diferentes, mas estão aí, com a gente.
"Você vai perder essas singelezas quando mudar para a capital", uma amiga disse. Mas eu penso que o mesmo sol que brilha aqui, brilha lá. A caminho da Faculdade de Educação - FaE onde estou dando aulas, sempre me distraio com a beleza do campus. Os ipês rosa, amarelo e branco, os passarinhos que são muitos, as orquídeas do jardim da FaE e claro, os estudantes que para minha alegria e orgulho estão ocupando tudo por lá.
Acompanhei a angústia dessxs meninxs me chamando a atenção: "professora, não podemos ficar aqui discutindo prática de ensino em Ciências Sociais, se nem sabemos se amanhã estaremos em sala de aula".
Hoje é dia de seguir para a capital. Amanhã estarei lá, na FaE, juntos com xs meninxs, ocupando aquele espaço que é nosso, porque é público e resistindo à essa PEC do fim do mundo.
"¡Que vivan los estudiantes,
jardín de las alegrías!
Son aves que no se asustan
de animal ni policía,
y no le asustan las balas
ni el ladrar de la jauría.
Caramba y zamba la cosa,
¡que viva la astronomía!
Me gustan los estudiantes
porque son la levadura
del pan que saldrá del horno
con toda su sabrosura,
para la boca del pobre
que come con amargura.
Caramba y zamba la cosa
¡viva la literatura!"
#NãoaPecdoFimdoMundo
#Ocupatudo
#OcupaFaE