Desde que o menino nasceu já passamos por 10 casas. Vivendo,
novamente, o movimento da mudança, acordei pensando nas casas por onde
já passamos. Lembrei do poema, "As Casas", da Sophia de Mello Breyner:
"Há sempre um deus fantástico nas Casas
Em que eu vivo, e em volta dos meus passos
Eu sinto os grandes anjos cujas asas
Contêm todo o vento dos espaços."
Fiquei pensando que, conosco, tem sido assim. Um deus das casas tem nos acompanhado e nos protegido.
Quando, em janeiro de 2007, eu e o menino entramos no ônibus da Pássaro
Verde em direção à Viçosa, nem imaginávamos o que estava por vir. Na
rodoviária nos esperava Almenara, a mãe do meu amigo Samuel, uma das
almas mais generosas que conheci. Nossos "caquinhos" já estavam nos
esperando em um apartamento térreo no prédio do Navio. Almenara esperou,
pacientemente, eu começar a receber a bolsa para pagar o aluguel.
Samuel pagou a mudança: um fogão, uma geladeira, um sofá, um estante,
duas camas de solteiro, os brinquedos do menino, na época com 4 anos.
Meu fogão azul, sem a porta do forno era motivo de piada: "sua casa é
muito cubana, Dalva!" ouvi várias vezes. A geladeira era novinha,
comprada no cartão da minha amiga Waleska, em 10 vezes no Carrefour.
Depois, aumentamos nossas posses comprando de segunda mão, em um dos
vários "topa-tudo" de Viçosa, 2 bicicletas, uma mesa com 4 cadeiras e
uma escrivaninha. Nossa cortina era uma colcha de retalhos, presente da
mamãe. João foi para uma boa escola, eu passei no concurso para
professora substituta do Departamento de Educação da UFV e vivíamos
felizes nossa vidinha mais ou menos. Quando terminei o mestrado, ainda
fiquei por lá mais 1 ano, dando aulas em uma faculdade particular. Nossa
casinha era nosso refúgio. Parecia realmente que era protegida por
longas asas de anjos, tamanha a felicidade que sentimos morando ali.
Em 2010, passei na seleção do doutorado em Antropologia Social na Ufsc.
Não tinha como levar minha casa cubana. Financeiramente não compensava.
Foi um exercício de desapego difícil de fazer. Para quem acostumou a
viver com pouco, os objetos têm um valor simbólico muito grande.
Tivemos que abrir mão de tudo, que foi vendido para um topa-tudo. Doeu
no coração me desfazer das bicicletas e da estante dos livros, que era
linda. Mas, em janeiro de 2011, desembarcamos em Florianópolis: eu, o
menino e duas malas. Mais uma vez tivemos que montar nossa casa, dessa
vez com o cuidado de ser só o essencial, já que a mudança não era
definitiva. Moramos por alguns meses na praia do Campeche e de novo, foi
uma casa como a do poema de Sophia, protegida por asas de anjos.
Em 2013, voltamos a BH para o meu trabalho de campo. Dessa vez minha
irmã nos hospedou e no final do ano fomos para Lisboa, para o estágio
doutoral sanduíche. Lisboa foi uma das experiências mais incríveis que
vivemos. Fomos morar no bairro da Graça, bairro onde morou a poeta
Sophia Breyner. Descobri a rua onde ela morou e a sua casa com vista
para o Tejo, na Travessa das Mônicas. O miradouro que leva seu nome era
um dos nossos lugares preferidos para apreciar o pôr do sol. De novo,
fomos protegidos pelo Deus das Casas.
De Lisboa, viemos direto
para Baldim. Dessa vez a casa era a da minha infância. A expectativa era
apenas alguns meses e já estamos aqui há quase 2 anos e meio. Foi uma
experiência incrível morar aqui. A cidade grande nos exige uma urgência
que não existe por aqui. Aqui, o tempo é outro, é percebido de outra
forma. Aqui, redescobri o silêncio. Já consigo reconhecer os cantos de
alguns pássaros. Vou tomando conhecimento das horas pelo sino da igreja,
pela ave-maria no alto falante na hora do angelus. As notas de
falecimento e utilidade pública lidas pelo Zé da Bilinha, a risada da
Dona Geralda a caminho da missa.
Mas, de novo, está chegando a
hora de partir e eu já estou sentindo um aperto no coração. Esse tempo
aqui me convenceu ainda mais de como precisamos de pouco para viver.
Acumulamos muitos nesses anos, mas nossas conquistas não cabem em malas.
Vou sentir falta da minha clarabóia, a janela azul de tramela, a visão
do morro, novamente verdinho por causa das chuvas, a algazarra dos
periquitos nos pés de manga e jabuticaba.
Só espero que a
próxima moradia tenha vista. Como disse a poeta Sophia de Melo Breyner
quando se mudou da cidade do Porto para o bairro da Graça, em Lisboa. A
mãe insistia que uma casa precisa ser boa por dentro e Sophia retrucava
que não, que uma casa precisa ter vista, que ela precisava chegar até a
janela.
E o meu desejo é só esse: uma casa com vista. Eu também preciso chegar à janela.
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