terça-feira, 15 de novembro de 2016

O deus das casas

Desde que o menino nasceu já passamos por 10 casas. Vivendo, novamente, o movimento da mudança, acordei pensando nas casas por onde já passamos. Lembrei do poema, "As Casas", da Sophia de Mello Breyner:
"Há sempre um deus fantástico nas Casas
Em que eu vivo, e em volta dos meus passos
Eu sinto os grandes anjos cujas asas
Contêm todo o vento dos espaços."
Fiquei pensando que, conosco, tem sido assim. Um deus das casas tem nos acompanhado e nos protegido.
Quando, em janeiro de 2007, eu e o menino entramos no ônibus da Pássaro Verde em direção à Viçosa, nem imaginávamos o que estava por vir. Na rodoviária nos esperava Almenara, a mãe do meu amigo Samuel, uma das almas mais generosas que conheci. Nossos "caquinhos" já estavam nos esperando em um apartamento térreo no prédio do Navio. Almenara esperou, pacientemente, eu começar a receber a bolsa para pagar o aluguel. Samuel pagou a mudança: um fogão, uma geladeira, um sofá, um estante, duas camas de solteiro, os brinquedos do menino, na época com 4 anos. Meu fogão azul, sem a porta do forno era motivo de piada: "sua casa é muito cubana, Dalva!" ouvi várias vezes. A geladeira era novinha, comprada no cartão da minha amiga Waleska, em 10 vezes no Carrefour. Depois, aumentamos nossas posses comprando de segunda mão, em um dos vários "topa-tudo" de Viçosa, 2 bicicletas, uma mesa com 4 cadeiras e uma escrivaninha. Nossa cortina era uma colcha de retalhos, presente da mamãe. João foi para uma boa escola, eu passei no concurso para professora substituta do Departamento de Educação da UFV e vivíamos felizes nossa vidinha mais ou menos. Quando terminei o mestrado, ainda fiquei por lá mais 1 ano, dando aulas em uma faculdade particular. Nossa casinha era nosso refúgio. Parecia realmente que era protegida por longas asas de anjos, tamanha a felicidade que sentimos morando ali.
Em 2010, passei na seleção do doutorado em Antropologia Social na Ufsc. Não tinha como levar minha casa cubana. Financeiramente não compensava. Foi um exercício de desapego difícil de fazer. Para quem acostumou a viver com pouco, os objetos têm um valor simbólico muito grande. Tivemos que abrir mão de tudo, que foi vendido para um topa-tudo. Doeu no coração me desfazer das bicicletas e da estante dos livros, que era linda. Mas, em janeiro de 2011, desembarcamos em Florianópolis: eu, o menino e duas malas. Mais uma vez tivemos que montar nossa casa, dessa vez com o cuidado de ser só o essencial, já que a mudança não era definitiva. Moramos por alguns meses na praia do Campeche e de novo, foi uma casa como a do poema de Sophia, protegida por asas de anjos.
Em 2013, voltamos a BH para o meu trabalho de campo. Dessa vez minha irmã nos hospedou e no final do ano fomos para Lisboa, para o estágio doutoral sanduíche. Lisboa foi uma das experiências mais incríveis que vivemos. Fomos morar no bairro da Graça, bairro onde morou a poeta Sophia Breyner. Descobri a rua onde ela morou e a sua casa com vista para o Tejo, na Travessa das Mônicas. O miradouro que leva seu nome era um dos nossos lugares preferidos para apreciar o pôr do sol. De novo, fomos protegidos pelo Deus das Casas.
De Lisboa, viemos direto para Baldim. Dessa vez a casa era a da minha infância. A expectativa era apenas alguns meses e já estamos aqui há quase 2 anos e meio. Foi uma experiência incrível morar aqui. A cidade grande nos exige uma urgência que não existe por aqui. Aqui, o tempo é outro, é percebido de outra forma. Aqui, redescobri o silêncio. Já consigo reconhecer os cantos de alguns pássaros. Vou tomando conhecimento das horas pelo sino da igreja, pela ave-maria no alto falante na hora do angelus. As notas de falecimento e utilidade pública lidas pelo Zé da Bilinha, a risada da Dona Geralda a caminho da missa.
Mas, de novo, está chegando a hora de partir e eu já estou sentindo um aperto no coração. Esse tempo aqui me convenceu ainda mais de como precisamos de pouco para viver. Acumulamos muitos nesses anos, mas nossas conquistas não cabem em malas. Vou sentir falta da minha clarabóia, a janela azul de tramela, a visão do morro, novamente verdinho por causa das chuvas, a algazarra dos periquitos nos pés de manga e jabuticaba.
Só espero que a próxima moradia tenha vista. Como disse a poeta Sophia de Melo Breyner quando se mudou da cidade do Porto para o bairro da Graça, em Lisboa. A mãe insistia que uma casa precisa ser boa por dentro e Sophia retrucava que não, que uma casa precisa ter vista, que ela precisava chegar até a janela.
E o meu desejo é só esse: uma casa com vista. Eu também preciso chegar à janela.

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