domingo, 24 de maio de 2015

Resposta a carta de mãe

Baldim, 10 de fevereiro de 1979.

Oi Mãe,

Cheguei bem, viu? O ônibus furou o pneu logo depois da ponte sobre o Rio das Velhas, ali, quando começa a estrada de chão. Por isso, atrasamos bem e eu só cheguei em Baldim por volta das 10h. Me contaram que o vovô já me esperava no ponto, desde as 7 da manhã.

Quando cheguei em casa, notei que ele tinha arrumado tudo, varreu o quintal, a rua, passou pano na casa. Daquele jeito, sabe? O cimento vermelho ficou todo rajado, mas eu não falei nada. Aceitei o carinho.

Assim que chegamos, como faz todas as manhas pra mim, ele esquentou o  pão e derreteu queijo na chapa do fogão a lenha. Ele estava ainda mais carinhoso. Acho que no fundo, ele tem medo d'eu ir morar com vocês, em Belo Horizonte. Mas eu não tenho coragem de deixá-lo sozinho, mãe. Até porque, antes da vovó morrer, eu peguei ela, várias vezes, chorando e quando eu perguntava por que, ela sempre dizia: "eu tenho medo de morrer e ocê deixar o Izé sozinho". Só de lembrar dela falando isso me dá vontade de chorar.

Mas eu choro mesmo é quando escuto o radinho que a Senhora deixou comigo. A rádio mineira e a rádio cultura tocam todas as músicas que eu gosto. Quando escuto o MBP4 cantando "amigo é pra essas coisas" eu lembro da Luia e das vezes que eu a acompanhei ao Patrimônio, quando ela ia dar aulas na escola rural. Quando voltávamos, a gente sempre cantava essa música, uma perguntando e a outra respondendo. Acho que era para espantar o medo que a gente tinha de voltar a pé, sozinhas. Ela sempre via pegadas na poeira e tinha certeza que era de onça.

Mãe, o vovô já prometeu que todo mês, quando ele receber, vai separar o dinheiro da passagem para eu ir visitar vocês. Ele já percebeu a minha tristeza em ficar longe da senhora e dos meninos. Até disse que se eu quiser, eu posso ir morar com vocês, mas eu nunca teria coragem de deixá-lo sozinho. Mesmo assim, quando a tristeza bate, eu não consigo disfarçar e ele percebe. Como não tem televisão,  eu tenho ido dormir assim que escurece, só para chegar o dia seguinte rápido e o tempo passar mais depressa e chegar logo o dia que eu vou visitar vocês, novamente. Eu queria tanto morar aí...

Bom mãe, vou ficando por aqui. Mande um abraço pra todo mundo.

Bença,

Sua filha,

Dalva

terça-feira, 19 de maio de 2015

"Escrever é triste"

"Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos", já dizia Drummond. "Lá fora a vida estoura não só em bombas como também em  dádivas de toda natureza". E eu aqui, "os dedos sobre o teclado", vagarosamente reunindo as letras e tentando arrancar um capítulo das páginas em branco. Do quintal chega o burburinho das crianças brincando. O irmãozinho grita para o mais velho: "Eu te amo, João Pedro!". Ele responde: "Eu também, Raoni!" . Da mesa da cozinha, carente, chateada por não estar participando da farra, eu reclamo: "Ninguém me ama, até o Scooby hoje me abandonou e foi brincar com vocês." Pela janela, entra outro grito, numa vozinha infantil tentando me consolar: "Eu te amo também, Dalva!". E a vida segue sem mim, porque comigo não é possível contar.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Carta da mãe


Belo Horizonte, 15 de janeiro de 1979.

Oi filha,
Ponho-lhe a bênção.
Como estão as coisas por aí? E Sô Zé Dias, melhorou?
Aqui, as coisas vão se ajeitando. Os meninos pequenos já estão matriculados na escola e os maiores estão todos trabalhando. Ainda não posso ir lhe visitar porque o dinheiro está curto, a maldita inflação come quase tudo. Mal sobra pra comprar um torresmo de vez em quando. Ainda bem que, diariamente, o dono da padaria fornece dez pãezinhos para a sua irmã. Isso ajuda um bocado nas despesas.
Sinto falta do quintal e da horta. Aqui, praticamente não tem espaço, mas mesmo assim, eu consegui plantar uns pés de couve, cebolinha e umas plantinhas no barranco. É pra ver se dá um pouco de vida pra casa nova. A D. Olívia é um amor de pessoa e tem nos ajudado bastante. A Maria, minha vizinha, também tem me socorrido nas horas de aflição. É com ela que eu saio para procurar ofertas nos supermercados. Você sabe, né? Eu fico muito insegura em andar nessa cidade, desse tamanho, sem saber ler. Que falta que os estudos fazem, viu? Ainda bem que com vocês será diferente.
Filha, não se preocupe com o rádio de pilha. Pode ficar com ele o tempo que quiser. Eu sei o quanto que você gosta de ouvir música e que carrega ele para todo canto, quando vai arrumar a casa, ou varrer o quintal. Faça bom proveito que ficarei feliz. Quando der, você vem nos visitar. Fique bem.
Dê lembranças ao seu avô.
Sua mãe,

Maria Dulce

quinta-feira, 7 de maio de 2015

"E lá se vai mais um dia..."


Convivência

Quando nos mudamos para Florianópolis, em 2011, o menino tinha 8 anos. Lá, quando não dava para me acompanhar nas aulas, ele ficava sozinho em casa. Aprendeu a se virar, a fazer pipoca, miojo, de fome não morria. Em 2013, já em Lisboa, foi um salto de autonomia. Ia sozinho pra escola atravessando a cidade no "electrico 28". Na Praça da Figueira conheceu os "trutas" do skate, galera solidária, que dividiu com ele shapes, trucks e rodas.

Há quase um ano estamos no interior de Minas. Agora, o melhor amigo é um adolescente que quando não tem aulas, ajuda o pai na roça e já consegue comprar suas coisas com o próprio dinheiro.  O menino vendo o exemplo, já sonha com um trabalho, esperando ansioso completar 14 anos para entrar em algum programa de "jovem aprendiz" e ganhar a própria grana. Afinal, desde que se entende por gente, a mãe vive de bolsa, o dinheiro sempre contadinho, sem poder fazer "gracinhas".

Hoje, os dois chegaram juntos da escola e foram para o computador pesquisar preços de skate. O amigo, que há pouco tempo ganhou um cavalo de presente, agora quer ser skatista. O menino, mais "experiente", deu uma "consultoria" explicando sobre peças, marcas e sites. Enquanto explicava as vantagens e desvantagens de cada equipamento, o colega ia fazendo as contas de quantos dias de trabalho seriam necessários para adquirir o mais novo objeto de desejo. Navega daqui, navega dali, se depararam com os preços de tênis. 1200 reais em um par. O amigo olha para o tênis no pé, custou 120, cinco dias de trabalho.
- Nó vei, 1200 dava para comprar 10 desse daqui. Mais mil conto e dava até pra comprar uma moto velha pra ir pra roça trabalhar.

Ficaram ali um tempão fazendo contas. Essa convivência tem feito um bem danado ao menino. Acredito que ao amigo dele também.

sábado, 2 de maio de 2015

"Papel, caneta e coração"


as mãos habilidosas no trato com a enxada e a terra, na lavação das roupas e na feitura dos biscoitos se tornavam extremamente desajeitadas nas poucas vezes que ela pegou num lápis. só uma vez a vi insistindo com papel e caneta. foi quando o filho mais velho se candidatou a vereador. durante dias e dias, ela passava as horas de folga bordando as letras no papel: Z E Z E.