segunda-feira, 27 de abril de 2015

Ensaboa mulata, ensaboa...

Enquanto esfregava o décimo sexto lençol, ela percebeu gotinhas de sangue  no tecido branco. Os dedos já doíam quando ela ia, lá, pelo décimo primeiro. Mas, perfeccionista do jeito que era, enquanto houvesse uma sujeirinha sequer, ela não parava de esfregar. Depois, ainda colocava para quarar, pois aprendera com a mãe, que o sol tira todas as manchas que as mãos e o sabão não conseguem. Foi só quando esfregava o décimo segundo, que percebeu que os dedos sangravam. Mas tinha que continuar mesmo assim, pois ainda faltavam seis lençóis. Quando colocou o décimo oitavo para quarar sobre a grama do quintal, a patroa enfim, a chamou para tomar o café. Ainda bem, pois a barriga já reclamava. O almoço servido tinha sido pouco, mas ela ficou sem jeito de pedir para repetir. Patrões, normalmente, não gostam de empregados que comem muito. Ela mesma, já ouvira muita patroa reclamar das empregadas comilonas. Os  dias em que lavava roupas pra fora eram bons, porque não precisava se preocupar com a comida. Pelo menos, pra ela e pra filha pequena que sempre a acompanhava ao serviço. Já eram quatro horas da tarde e ela lavava as roupas desde as oito da manhã. Ainda faltava enxaguar e torcer. Para tirar todo o sabão, caprichosa do jeito que era, repetia a operação do enxágue quatro vezes. Neste dia eram só lençóis. Dezoito, todos brancos, de saco alvejado. Ela não entendia, porque sendo ricos, os patrões não compravam outro tecido, mais fácil de lavar. Vai ver era porque a patroa não sabia o trabalho que dava, pensava ela,  enquanto mastigava o pão com margarina. Margarina... Hum... Ela fechou os olhos se deliciando com o pãozinho! O dinheiro pago pelos dezoito lençóis lavados não permitia comprar essa iguaria. Em casa, passavam no pão pasta de gordura fria. Ainda bem que os filhos gostavam. Enquanto engolia o café, ela ia fazendo as contas sobre o que daria para comprar com o dinheiro recebido pela roupas lavadas: meio quilo de toucinho, um quilo de farinha, um quilo de fubá, macarrão para sopa e batatas. Ah, não podia esquecer os pães. Só dava para levar dois, que eram divididos exatamente ao meio, o que permitia a cada um, dos três filhos, comer a metade de um pãozinho.  Como ela já havia comido na casa da patroa, nesses dias abria mão da metade que lhe cabia,  se divertindo com a disputa que os filhos arrumavam entre si, para ver quem ficava com o meio pão da mãe.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Mais uma carta perto do coração


Gabina, amiga querida!

Acabo de despachar João para a escola e o Scooby já suspira aos meus pés. Você já ouviu o suspiro de um cachorro? É uma coisa impressionante. Se eu soubesse, faria um poema sobre isso. É algo entre melancólico e triste.

Que coisa linda a sua carta/resposta. Adoro o seu português mestiço, me soa extremamente poético.Penso que você não deveria fazer revisão da sua tese. Sua fala parece a de uma personagem saída das novelas de Guimarães Rosa. Aquela figura bem específica, mas que ao mesmo tempo é atemporal e universal. Por que não sou escritora? Se fosse, escreveria um romance com uma protagonista inspirada em você. Será que um dia eu consigo?

Olha, essa história da arruda murchar é coisa séria, viu? Outro dia, uma conhecida esteve aqui e me falou que depois que ela deixou uma vizinha apanhar o fruto, o pé de chuchu nunca mais produziu. Segundo ela, "quando o coração não é bom, o olho é ruim e até a mão não presta." Por isso, faz todo sentido o seu ciúme com o jardim. Você já ouviu falar em  radiestesia? Uma vez assisti uma reportagem mostrando como se localiza água usando uma forquilha. Fiquei muito impressionada e passei a acreditar em energia. Por isso eu assumo logo quando estou invejando alguém. Dizem que quando você assume, a inveja perde a negatividade. Eu tenho muita inveja de você, Gabina. Você é tão inteligente! E ainda por cima é linda, fala inglês, sabe nadar, canta super bem, fica de ponta cabeça naquelas posições de ioga e agora, ainda toca um instrumento.  Assumo logo a minha inveja para ela perder a energia ruim e chegar até você, só o amor que sinto, que é imenso. Chega a me dar vontade de chorar.

Você fala da chuva e do frio chegando por aí. Aqui, choveu durante a noite, mas amanheceu com o céu azul e o sol visível. Chove pouco por aqui e praticamente não faz frio, afinal estamos localizados bem na região centro-norte do estado, porta de entrada do sertão.

Bom, vou ali acender duas velas para me inspirar com a escrita. Uma é para Santa Clarice Lispector e a outra, para São João Guimarães Rosa, santos de minha devoção. Peço a eles que me ajudem  a comer minha barata e a me livrar da terceira perna. Descobri que essa tarefa tem que ser diária. Não é assim, comeu, cortou e ficou livre. Não! Se você ficar fazendo muita hora, a barata se regenera, mesmo depois de morta, e aí, temos que começar tudo de novo. E é a mesma coisa com a terceira perna; você corta, mas se não tomar cuidado, nasce outra rapidinho... Aí, ficamos, de novo, equilibrados como um tripé, mas presos ao chão.

Vou trabalhar! Beijo grande em você. Lembranças ao Davi.

Me escreva, Gabina... Me escreva...

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Mais uma carta

Baldim, 20 de abril de 2015.

Glória querida,

Hoje, repito um gesto realizado ainda na infância, escrever uma carta para você. A primeira carta que escrevi na vida foi para você. Eu começava a ser alfabetizada, queria grafar seu nome como lhe chamava, alguém me soletrou as letras, acho que foi a Luia. Durante muitos anos as quatro letras, escritas a caneta, em letra de forma, ficaram marcada na parede da sala: GÓIA.

Hoje, escrevo para lhe dizer da alegria que tem sido conviver esses dias com sua filha Sara e com seus netos, Lucas e Mirian. Sara foi das sobrinhas que menos convivi. Quando ela nasceu a minha vida e a sua já tinham tomado rumos diferentes e convivíamos muito pouco.

Foi com uma alegria imensa que fiquei de longe, observando Sara e João trocarem confidências sobre música. Tão lindo verem esses primos convivendo. João ficou muito  impressionado com a prima que, embora mais velha que ele, divide o mesmo gosto musical pelas bandas de rock. O assombro foi tanto que ele me confessou: "nossa mãe, ela só tem 30 anos e já é mãe de família". E eu completei: "e ainda estuda e trabalha fora."

Entre um cuidado e outro com as crianças (que mãe paciente e amorosa ela se tornou), Sara nos ajudou nas tarefas e ainda fez um trabalho da faculdade. Chamei a atenção do João para o fato de não competirmos em pé de igualdade. Como uma mãe de dois filhos pequenos, que ainda demandam tanto cuidado, trabalha fora e ainda estuda pode competir com os colegas de sala? Ah, a falácia da meritocracia... Ainda bem que, recentemente, ela  conseguiu o Fies. Não pagar as mensalidades faz uma diferença enorme no orçamento familiar.

Glória, consigo perceber na Sara a mesma indignação diante das injustiças sociais que via em você. Ela quer se formar em direito, não para ganhar muito dinheiro e ficar rica, mas para ajudar aqueles que não têm como pagar um bom advogado. Oxalá, ela se torne uma excelente defensora pública. Em uma das que fiz à sua casa, lembro dela pequenininha, chegando com a Débora (acho) da locadora com vários vídeos e lhe entregando um em especial, cujo título era "Justiça" e lhe dizendo, "Mãe, esse a gente pegou especialmente pra você!"

Nesses dias que ela esteve aqui, fomos intercalando "horinhas de descuido" com momentos de tensão. João e Léo brigaram algumas vezes e quando a gente pensava que nunca mais eles se falariam, lá estavam eles já pensando em uma nova brincadeira. Precisamos mesmo aprender a arte da convivência com as crianças.

No primeiro dia, a programação das crianças e do adolescente (João não aceita mais ser chamado de criança) incluía dormir na barraca, armada no quintal. O Léo, segundo os meninos, arregou e sobrou para o João e o Lucas a aventura.

Ontem, teve piscina, caminhada pelo cerrado e futebol à noite. Na caminhada, o Léo, se sentindo o próprio guia turístico, ia  à frente conduzindo a Ana Clara (da Vivi) e o Lucas e explicando tudo. Só pararam e voltaram correndo quando encontraram um monte de bois e vacas pelo caminho.

Na volta teve mais um tibum na piscina, mas desta vez não dormiram na barraca, que sobrou para o Scooby, que confortavelmente, teve um colchão enorme só para ele. Estamos pensando em não devolver a barraca e transformá-la na casa definitiva do Scooby, mas está difícil convencer o Léo.

No apagar das luzes, fui dormir com o coração aquecido, depois de saber que a pequena Mirian confessou à mãe: "eu gosto da tia Dalva."

Parabéns pela família, Glória!

Abração,

sábado, 18 de abril de 2015

Carta

Baldim, 18 de abril de 2015.

Querida Gabina,
Como vai? Tá mais calma?
Por aqui, vou como os meus irmãos congadeiros cantam: "é devagarinho, é devagarinho, é, no rosário eu vou..." Vou alternando momentos mais produtivos com momentos de deserto. Acordei um pouco antes das seis horas com o Scooby arranhando o portão, querendo sair. Para não incomodar a vizinha, que já reclamou várias vezes dos cachorros, levantei e fui abrir. Já que estava de pé, resolvi ligar o computador e trabalhar um pouco. Como tem feriado prolongado a casa vai receber visitas e aí fica mais complicado escrever. Uma pena que o mundo não para pra gente escrever, né? Você continua tendo tpm, enxaquecas, tendo que ir ao supermercado, lavar o banheiro, limpar o quintal, cuidar da horta, ir a reunião na escola do filho, cuidar da saúde, etc. Por falar em saúde, em 10 meses de caminhada não emagreci 1kg sequer, mas melhorei os meus índices de colesterol e glicemia. Tá tudo uma beleza. A barriga, eu acho que só a lipoescultura para resolver, ou a aceitação mesmo.
Ah, tô pensando em adotar uma cadelinha, acredita? Cansei de ficar expulsando ela daqui. Ela está quase sem pelo e com bastante feridas pelo corpo. Acho que vou levá-la ao veterinário e cuidar dela. Como ela é pequenininha, talvez dê para levá-la quando formos embora. Me converti aos cachorros, Gabina! Agora troco segredos com ele. E essa cadelinha tá implorando ajuda. Ai... ai... ai... O João a chama de "Nego V elho" porque quando a conheceu achava que ela era macho. Mas fêmea nenhuma merece um nome desses, não é? Tô pensando um nome bacana pra ela. Gosto de Frida, acho que combina com aquele corpo machucado dela. Agora a pouco ela estava deitada no sofá, lá na varanda, com uma carinha. Ela viu o portão aberto e entrou. Eu fingi que não vi, para não ter que expulsá-la.
Bom, vou trabalhar. Mande notícias e "uma palavra bem amiga". Hahaha
Abração

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Terceirização, não!


Eu também tive experiência com a terceirização. Não, não foi porque contratei algum serviço terceirizado! Eu fui a terceirizada! Fui telefonista, por anos, na antiga Telemig - Telecomunicações de Minas Gerais, antes das "teles" serem privatizadas no governo FHC.

Era o final da década de 1980, num tempo em que poucas cidades tinhas DDD - Discagem direta a distância e a maioria das ligações era feita via telefonista. Para não caracterizar vínculo, a cada três meses, meu contrato era rescindido e eu era contratada por outra empresa. Conheci todas as empresas que terceirizavam em BH: Conape, Conset, Selp, entre tantas outras.

Além da insegurança de ser terceirizada, tinha também a pressão de sermos monitoradas pelas supervisoras que, numa outra sala, fiscalizavam nossos serviços, ouvindo a forma como atendíamos aos clientes. O uso da fraseologia correta era rigorosamente cobrado. - Telemig, boa noite, Dalva! Para onde deseja falar? Com que telefone? Número desse telefone. Um momento, por favor. Como esquecer?

Além disso, trabalhávamos por produção: você tinha por obrigação de atender um certo número de ligações por minuto. Era tudo medido, monitorado, controlado. Até os minutos que você ia ao banheiro e tomava o café. Conversar na "posição"? Imagina!!! Não podia de jeito nenhum... Mas mesmo assim, encontrávamos nossas brechas e fiz amizades, que permanecem ainda hoje, e que nasceram das conversas intermináveis, entre uma ligação interurbana e outra.

Além do estresse do trabalho em ritmo de produção, tínhamos que lidar com a incerteza da renovação do contrato, já que não tínhamos garantia nenhuma de estabilidade. Ganhávamos menos e não tínhamos os mesmos benefícios das telefonistas efetivas. O que eu mais invejava era o plano de saúde que elas tinham: telemed. Até o nome eu achava bonito: TELEMED! 

Muitas companheiras tiveram a sorte de serem efetivadas sem concurso, pelo então governador de Minas, pelo PMDB, Newton Cardoso. (PMDB e PSDB adoram efetivar sem concurso, haja vista, a trapalhada feita em Minas, pelo PSDB, recentemente, com a efetivação de quase 100 mil funcionários estaduais) Não é de estranhar que estes partidos sejam favoráveis à terceirização. 

Eu não tive a "sorte" de ser efetivada na Telemig! Minha primeira carteira de trabalho, inclusive, foi preenchida rapidinho, justamente por conta destes contratos temporários, via terceirização. E foram muitos! Por isso, eu me arrepio toda vez que ouço falar nessa tal de PL 4330. Trabalhador(a) nenhum(a) merece um retrocesso desse. Eu digo não à PL 4330! Nenhum passo atrás!

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Sobre energia...




"o pé de chuchu tava uma beleza! a rama tava linda que só! carregadinha que só ocê vendo! aí, a dona pediu e eu deixei ela panhar. ocê acredita que secou tudo? quando a pessoa não tem o coração bão, o olho dela é ruim também e até a mão num presta. num é qualquer pessoa que pode pôr a mão nas planta da gente não! senão, seca tudo mesmo!"

quarta-feira, 8 de abril de 2015

A delicadeza que nos salva nas horas brutas

 a voz de socorro lira cantando "senhora santana" me embalava, enquanto distraída eu lavava a louça do almoço. só percebi que alguém me chamava no portão quando os cachorros latiram. era maria luca. em uma das mãos ela trazia uma abóbora e quiabos da sua horta, na outra um embrulhinho com sementes. fiquei emocionada com a singeleza do gesto. é essa a delicadeza que me salva nas horas brutas.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

O "meio" pão ou sobre essa gente que gosta de se vitimizar


o dinheiro disponível só dava para comprar dois pãezinhos que eram divididos ao meio. quatro "meios". quem buscava o pão era recompensado com o "meio" da mãe, que raramente comia sua parte. até hoje não se sabe se era por não gostar de pão, ou se para sobrar mais um "meio" para os filhos. só assim, uma das três crianças tinha o privilégio de comer "um" pãozinho inteiro.

enquanto o professor, em sala de aula, enchia a boca pra falar desse "tipo de gente que adora se vitimizar", ela só conseguia pensar na disputa das crianças, na infância, pelo "meio" pão.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Rua da Amargura



A sexta-feira da paixão começou pra mim, com um som de explosão. Era 4 horas da manhã. A notícia chegou instantânea: estouraram um caixa eletrônico. Um não, três. Os três caixas eletrônicos da cidade de 7 mil habitantes foram estourados. 

Às 5 horas acordei novamente. Dessa vez era o som da procissão dos sete passos da paixão. O cântico era o mesmo que o grupo Galpão entoa no espetáculo "Rua da Amargura".  Lembrei da cena onde Teuda Bara, no papel de Maria, chora a morte do filho:
- "Meu filho, e em que estado! Filho que eu amei tanto e com quem morrer só desejo." Maria Madalena tenta acalmá-la:
- "Acalme vossa dor Virgem Maria".
- "Que minha dor acalme? Pede ao Eterno que o sol radiante apague seu fogo intenso, que em gelo torne a larva do vulcão, que ele pode as estrelas apagar o brilho, pode os rios secar, secar os mares, não os olhos da mãe que perde um filho".

Triste coincidência em plena sexta feira da paixão: Dona Teresinha Maria de Jesus, 40 anos, chora hoje, a morte do seu filho Eduardo, uma criança de 10 anos, assassinado ontem, pela polícia, no Morro do Alemão.