terça-feira, 31 de maio de 2016

Vidinha






Parafraseando Adélia: "o que me interessa mesmo é a minha vidinha, porque eu não tenho mais do que ela. eu não tenho mais do que as 24 horas do meu dia, ninguém tem mais do que isso. e é nessa experiência pequenininha, miserável, limitada, carente é que eu vou dar uma resposta ao absurdo da minha existência e do mundo."

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Hoje eu não acordei boa não

Não lembro que idade eu tinha, 8, 9 anos, talvez... Eu e minha irmã fomos com uma amiga visitar seus pais na roça. A adolescente veio para Baldim para estudar. Ficar na roça não dava futuro. Ela era babá numa casa da elite local. Fomos de ônibus até uma parte do caminho e seguimos o restante a pé. Eu ficava impressionada com a segurança da minha amiga, pelo mato, sem medo de se perder, seguindo aquelas pequenas trilhas. Depois de quase 1 hora de caminhada, chegamos. Os pais numa alegria só, em receber a visita da filha. Uma prima dela, da cidade grande, de férias, também estava por lá. Aquela menina branquinha, de cabelo liso, falando tão diferente de nós, chamava minha atenção. Eu a achei tão linda, tão fascinante que não parava de olhar para ela. Lembro que ela insistia em ensinar um papagaio a música de abertura do programa Silvio Santos:
"Lá! Lá! Lará!
Lá! Lá! Lará!
Lá! Lá! Lará! Lá! Lá! Lará! Lará!
Agora é hora de alegria!
Vamos sorrir e cantar!
Do mundo não se leva nada!
Vamos sorrir e cantar!
Lá! Lá! Lará!
Lá! Lá! Lará!
Lá! Lá! Lará! Lá! Lá! Lará! Lará!
Silvio Santos vem aí!"
O que significava isso? A menina tinha televisão em casa. O que aumentou, ainda mais, minha admiração por ela.
À noite, dormimos todas juntas, numa mesma cama de casal. Cobertas artesanais de algodão pesadas sobre nós, espantava o frio. Duas para cima, duas para baixo. Assim nos dividimos na cama, que ficou apertada para tanta criança. Em um determinado momento nossos pés (meus e da minha irmã) roçaram o pé da menina. Ela estranhou: "nossa, seu pé é muito áspero!" Fiquei muito envergonhada. Não tive coragem de explicar que andávamos a maior parte do tempo, descalças. E que o único par de sapatos que tínhamos era economizado para irmos à escola e à missa. O resto do tempo ficávamos era de pé no chão mesmo.
Pela manhã, acordei com o sol entrando pela fresta da telha. Lavamos o rosto numa água gelada que vinha, numa mangueira, de uma nascente no fundo do quintal. O mato ainda estava coberto por uma neblina que escondia a serra, ao fundo. A mãe já na peleja, jogando milho para as galinhas, com os cachorros atrás. O pai, antes de seguir para a roça, preparou nosso café da manhã. O cheiro de um café ralo e doce, passado no coador de pano, inundou a cozinha. Eu sentia muita fome. Não tinha pão. O café foi servido numa canequinha esmaltada que queimou minha boca. Para comer, farofa de queijo. Passei a minha vida inteira tentando repetir aquela farofa, mas nunca consegui. O queijo derretido misturava-se à farinha. Ambos, feitos ali mesmo, pelo casal. Hoje, passado tanto tempo, os adolescentes vêm estudar em ônibus escolares. Não precisam mais andar a pé. Muitos que moram aqui, vão de moto ajudar o pai na roça, depois voltam no final do dia. Inúmeras família vivem uma vida digna, com a agricultura familiar. Alguns, além da carroça onde vendem suas verduras, têm pickup's novas que facilitam um monte a vida na roça. E eu, lembrando Adélia, "tou com medo de apanhar tristeza, encardir de melancolia", pensando que isso tudo está ameaçado com o fim do ministério do desenvolvimento agrário e com a redução do bolsa família. Muitos não têm noção do impacto que isso terá por este sertão afora.
Desesperança e descrença é um troço muito ruim de sentir.
Hoje eu não acordei boa, não!

sábado, 28 de maio de 2016

"Repetir, repetir, repetir até ficar diferente"

Acordei às 3:30 da manhã com um pesadelo que envolvia violência. Os últimos dias não têm sido fáceis para qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade. Horas depois, o menino bateu na porta do meu quarto.
"Mãe, tive um pesadelo."
"Eu também, filho. Entra aí."
O travesseiro dele já debaixo do braço.
Pensei que era a hora perfeita para uma conversa, já ensaiada várias vezes, mas sempre terminada com um falando alto com o outro. Ele se enfiou embaixo da coberta comigo e puxei o assunto. Contei do meu pesadelo e aproveitei para falar de um post que ele colocou no facebook. Eram cenas do filme "doce vingança", onde a protagonista se vinga de um estupro. A legenda que ele colocou era: "Sobre a jovem de 17 anos que foi estuprada hoje por 30 homens, não sou a favor de pena de morte mas nesse caso..." Quando vi aquele post, senti um mal estar. Ser mãe não é fácil. Somos culpabilizadas até pelo machismo, pois segundo alguns, são as mães que educam os filhos. Parece que os filhos não têm pais, amigos, não estão no mundo, recebendo influência de todos os lados. Fico irritadíssima com esse discurso, porque é uma peleja diária levar o menino a refletir sobre questões importantes, aprendidas em outros espaços onde ele circula e trazidas, por ele, para dentro de casa.
Mas, voltemos ao pesadelo e ao post sobre o filme.
Falei do meu mal estar ao ver aquilo. Que se seguirmos no "olho por olho, dente por dente" instalaremos, de vez, a barbárie. Falei das violências cotidianas, a que nós mulheres, somos submetidas. Ele me ouviu durante um tempão. Depois, foi a minha vez de ouvi-lo. Estabelecemos alguns acordos de parceria para o nosso dia a dia. Falei sobre como preciso contar com ele, e que é preciso lutar, diariamente, para matarmos o tirano que existe em cada um de nós. Que precisamos sair do nosso lugar de conforto, se quisermos preservar o que de humanidade ainda nos resta. "Mãe, você deveria ser advogada. Você sempre me faz mudar de ideia. Vou apagar o post."
Repetir, repetir, repetir, até ficar diferente, diz o poeta.
Educar é isso. Dá um trabalhão, mas não há saída fora do diálogo e da reflexão.
E, preciso, urgentemente, levar o menino para assistir uns filmes de arte.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

13 de maio

Neste 13 de maio completam-se 128 anos de uma abolição que nunca se efetivou de fato. Depois da posse do golpista e da tragédia que se anunciou ontem, com a extinção de ministérios importantes e o anúncio dos novos ministros, hoje, comecei o dia, cabisbaixa e desanimada. Firmei meus pensamentos em meus ancestres e ganhei um presente: uma chamada, via skype, com a capitã Pedrina. Pedrina é capitã da Guarda de Massabique Nossa Senhora das Mercês, da cidade de Oliveira, MG. Uma mulher negra, empoderada, uma sacerdotisa, que até a Paris já foi com sua guarda de congado. Mesmo virtualmente me senti abraçada, acolhida e confortada por essa "mãe pequena". "Lembre-se que o pensamento é força viva e que a palavra também é força", disse ela. A capitã, ainda que pela tela, me confortou, me acalentou, me colocou em seu colo. "Ainda vivenciamos os horrores do cativeiro, Dalva", disse. Mas, precisamos continuar resistindo. Como nosso povo faz, há mais de 500 anos. E, cantou:
"Perguntei São Benedito, se o mundo ia acabar
Benedito respondeu: ajoelha para rezar."
Lembrei então de outro, de quem sou devota, Guimarães Rosa: "reza é o que sara da loucura". Por isso, hoje vou rezar ouvindo Clementina de Jesus e saudando aos meus ancestrais e às mulheres pretas que vieram antes de mim! Minha tataravó, Filomena, uma "negra cativa"; minha bisa, Maria Rosa, que ainda viveu os resquícios da escravidão; e minha mãe, Maria Dulce, a primeira feminista que conheci.

Viva as Santas Almas Benditas!

Bença!

Daqui, escuto o som do atrito das rodinhas do skate no asfalto. O menino, que se diz agnóstico, já subindo no shape e deslizando rua abaixo, grita:
- Bença, Vó!
- Deus te abençoe, meu filho.Ela responde com doçura.
Pequenas grandezas que nos salvam nessas horas brutas.

terça-feira, 10 de maio de 2016

Retrocesso

Sempre que eu ando com meu irmão por esses matos, ele me conta, emocionado, do tempo de criança. 13 anos mais velho do que eu, ele viveu coisas que eu não vivi. Quando nasci, a família já morava em Baldim, mas foi uma peregrinação por vários lugarejos, fugindo da fome e da miséria, até chegar aqui. Quando andamos por esse cerrado, ele sempre aponta pr'aqui e pr'ali, dizendo: ali, eu levava comida para o papai na roça; ali, papai plantou um quiabeiro; ali, 'panhamos' manga para levar para a Ceasa.
Na Tiririca foi um dos piores lugares. Mamãe, papai e cinco filhos moravam num casebre. Mamãe contou muitas vezes, que lá, os filhos choravam de fome e ela não tinha o que oferecer. Que, desesperada, saía pelo mato, colhendo picão para fazer farofa. Mato com farinha, era o alimento. Depois bebiam bastante água para aumentar a sensação de saciedade.
Mas, meu irmão também conta que teve tempos de fartura. Foi quando foram morar no Guará. Um fazendeiro muito rico, cedeu parte das terras para papai plantar. Era um pequeno sítio com muitas árvores frutíferas, onde papai plantou e colheu muito. Até peixe tinha numa lagoa a poucos metros da casa e a família conseguiu adquirir um cavalo nesta época. Todos os irmãos e irmãs mais velhos lembram com alegria do vivido no Guará.
Com a consumação do golpe estou me sentindo como se estivéssemos saindo do Guará e dando passos para trás, em direção à Tiririca. No Guará, a terra ainda não era nossa, ainda faltava muito para conquistar, mas a Tiririca foi lugar de fome. E, como diz Adélia Prado, "passar fome não é coisa pra gente, não; passar fome é de uma desumanidade tão exagerada, que só pensar bole com a bile de quem tiver um grão de consciência."

sábado, 7 de maio de 2016

Sororidade


Se estivesse viva, este ano mamãe completaria 86 anos. A última vez que falei com ela, foi alguns dias antes dela morrer, no hospital. Cheguei e tomei a bênção, como ela fazia tanta questão:
"Bença, mãe!"
Com sua voz grave e rouca, entrecortada com a respiração difícil por causa do enfisema pulmonar, ela respondeu:
"Deus te abençoe, minha filha!"
"Como a senhora tá?" Perguntei.
"Acho que dessa vez eu não aprumo mais não!" Respondeu.
Não aprumou. Morreu dias depois.
Uma vez, briguei na rua, como diz o menino, "por causa de homem". Em plena praça de Baldim, festa do padroeiro, cortejo de congado. Como no poema "Briga no beco" de Adélia Prado, "ajuntou gente, escureceu o sol, a poeira adensou como cortina". Eu só recobrei os sentidos quando ouvi o choro do menino. Todo mundo recriminou:
"Como assim, uma socióloga brigando no meio da praça e por causa de homem"?
Até sobrinho-neto, adolescente na época, aconselhou:
"Tia, você não pode deixar sentimento te dominar assim não."
Ouvi calada, arrasada.
Eu, brigara na praça.
Quando cheguei em casa, cabelo desalinhado, roupa suja amassada, pensei que mamãe ia me bater. Lembrei do poema de Adélia. Entre soluços, os olhos vermelhos, disse:
"Era uma fêmea ofendida, mãe!"
Ela olhou dentro do meu olho e disse:
"Eu te entendo, minha filha!"
A abracei, ali mesmo, no meio da rua, e chorei, chorei "até a cratera exauri-se".
Depois, ela saiu andando pelas ruas de Baldim, procurando quem tinha afrontado filha sua. Felizmente, não encontrou ninguém.
De outra feita, eu, numa relação abusiva, depois de sofrer agressão física pela segunda vez, resolvi contar. Meu irmão caçula, na época com uns 15 anos, disse:
"Eu mato aquele desgraçado!".
Mamãe pegou um espeto de churrasco e numa cena de comédia pastelão gritava:
"Ele que não apareça aqui, que furo ele todo."
Minhas irmãs choraram.
Me senti amada, acolhida, mas ainda não estava pronta para uma separação. Minha razão dizia para eu não voltar, mas meu coração desejava o contrário. Desesperada, pedi:
"Me amarrem ao pé dessa mesa, mas não me deixem voltar." Como a mulher do "Caso do vestido", do Drummond, pensei na morte, mas a morte não chegava. Mamãe, vendo minha tristeza, consolava:
"A gente sobrevive, minha filha. Olhe pra mim! Mulher não precisa viver sob domínio de homem, não. Ainda mais homem ruim".
Eu, sofria.
Não conseguindo verbalizar o que sentia, cantei para ela:
"Disseste que se tua voz tivesse força igual
À imensa dor que sentes
Teu grito acordaria
Não só a tua casa
Mas a vizinhança inteira"
Ela então, me pegou pela mão e foi junto atrás do motivo de tanta dor. Algumas irmãs choraram, não acreditaram que depois de tudo, eu reataria.
"Pode esquecer que sou sua irmã", ouvi de uma.
Mamãe, de novo, me olhou nos olhos e disse:
"Qualquer decisão que você tomar, continuará sendo minha filha."
Tempos depois, aprendi com o feminismo que essa cumplicidade que tínhamos uma com a outra se chama sororidade. Mais que mãe e filha, éramos duas mulheres com histórias de vida muito parecidas. Mamãe, pacientemente, me esperou estar pronta.
E, anos mais tarde, quando mostrei a ela, a certidão da averbação da separação, ela sorriu e disse:
"Vamos comemorar!"
E passou um café para nós.

Fechado para almoço

Estou com medo. Como Neo, no filme Matrix, meu sentimento é que estou diante de Morpheus, o deus do sono, que me estende as mãos com as duas pílulas: a azul que me permite continuar iludido; ou a vermelha, que me abrirá os olhos para conhecer a verdade do que está por trás desse mundo que, de repente, se descortinou aos nossos olhos. Quero uma consulta com o oráculo para me orientar, mulher de pouca fé, que sou. Daí, lembro do escritor do Capão Redondo, Ferréz e de seu livro que não me sai da cabeça, "Deus foi almoçar". O romance narra a história de um homem que se vê sozinho, desamparado, depois da separação da mulher e filha. Ferréz disse que quando teve a ideia para o livro, imaginou Deus como um comerciante que fechou as portas do seu estabelecimento para almoçar. Portanto, não adianta pedir, porque ele está em horário de almoço e a hora do alimento, como sabemos, é sagrada. Daí, eu lembro de outro livro que também tem me perseguido  nesses dias: "O evangelho segundo Jesus Cristo", de Saramago, na cena emblemática do diálogo entre Deus e o Diabo:

"Diabo: Não me aceitas, não me perdoas?

Deus: Não te aceito, não te perdoo, quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora.

Diabo: Porquê?

Deus: Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és, um Bem que tivesse que existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imaginá-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria a morte do outro."

É isso! Noiz por noiz! Deus foi almoçar. Estamos sem oráculo para nos orientar, sem Morpheu para nos fornecer as pílulas. Estamos desamparados como o arquivista Calixto, de Ferréz, com o mal à solta. Por outro lado, estar desiludido tem seu lado bom. É sinal de que você perdeu as ilusões. Mas, quando retorna o expediente nessa bagaça? Alguém sabe informar? Ou esse horário de almoço vai durar pra sempre? Enquanto deus almoça, o golpe tá rolando..."

4 de maio

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Tatipirun

A hora da caminhada é sempre muito interessante, só você com seus pensamentos. Hoje, aconteceu uma coisa estranha. Me distraí do ponto onde retorno e continuei a caminhar. Só percebi que já estava no asfalto quando o movimento de carros ficou intenso e caminhões passavam muito perto de mim. Apesar do perigo, meu desejo era seguir sempre em frente. Lembrei então, dos meninos d' "A terra dos meninos pelados", de Graciliano Ramos. Quando cheguei em casa, fui revisitar a história. Tatipirun é uma terra onde todos só andam pra frente: "aqui nós nunca voltamos", é o que dizem por lá. Vai ver, era o meu medo dos retrocessos que nos assombram, que me impelia a seguir em frente. Raimundo, o menino protagonista do livro era uma criança diferente. Tinha o olho direito preto, o esquerdo azul e a cabeça pelada. Como todos mangavam dele, ele só desejava um lugar onde se respeitassem as diferenças e ele pudesse viver quietinho. Até que um dia, cansado das gozações, Raimundo fechou os olhos e se viu atravessando o seu quintal e chegando numa terra onde ninguém era igual. As pedras se endireitavam para que as pessoas pudessem sentar e ficar bem acomodadas. Os rios estreitavam as margens para facilitar a travessia. As árvores baixavam seus galhos para a colheita de seu frutos. Até mesmo o automóvel do qual o menino não conseguiu se desviar, o tranquilizou: "Deixe de besteira, seu Raimundo! Em Tatipirun nós não atropelamos ninguém." E "levantou as rodas da frente, armou um salto, passou por cima da cabeça do menino, foi cair cinquenta metros adiante e continuou a rodar fonfonando." Uma laranjeira que estava no meio do caminho, afastou-se para o menino passar, dizendo amável: "Faz favor!" Raimundo agradeceu dizendo que a árvore era muito educada e a laranjeira respondeu: "Tudo aqui é assim." O menino se espantou com aquele lugar onde "o sol permanecia no mesmo ponto, no meio do céu. Nem manhã, nem tarde. Uma temperatura amena, invariável." E se convenceu: "preciso consertar o meu estudo de geografia." Em Tatipirun as aranhas teciam túnicas coloridas. Ao ver Raimundo com roupas tão estranhas, ela foi logo indagando como ele conseguia se movimentar com aqueles "troços" sobre o corpo, que mais pareciam "arreios". Ela lhe deu uma túnica azul e ele descalçou os sapatos, sentindo a frescura da terra nos pés. Em suas andanças por aquela terra, Raimundo conheceu a princesa Caralâmpia. A princesa tinha uma coroa de flores, um broche de vagalumes e pulseiras de cobras-coral. Assustado, Raimundo gritou: "Credo em cruz! Tire essa bicharia de cima do corpo menina. Isso morde!" Indignado, o vagalume tremelicou: "É comigo?" E as cobras responderam: Não senhor, é conosco. Aquilo é um selvagem. Na terra dele as coisas vivas mordem." Espiando as cobrinhas com o rabo de olho, o menino quis saber como Caralâmpia tinha virado princesa. "Virando!" respondeu a menina. "Aqui a gente vira e desvira". Raimundo ficou deveras intrigado com aquele lugar, onde as pessoas não iam ao dentista, não sentiam dor de barriga, não tinham sarampo, não envelheciam. Eram sempre meninos. Ali não precisavam ser todos iguais, feito rapadura, e cada um podia ser o que quisesse. Depois de muito andar e de conhecer todos os habitantes de lugar tão diferente, Raimundo resolveu voltar para casa. Afinal, tinha seu gato para cuidar e lição de geografia para fazer. Mas estava convencido que Tatipirun não ficava tão longe assim, e que poderia voltar quando quisesse. Era só fechar os olhos.